“Fui convidado para fazer Gigis um pouco por todo o lado”

É uma figura incontornável do universo da restauração portuguesa. Pelo seu restaurante passaram milhares de figuras do mundo económico, político ou social, mas a grande estrela é mesmo Gigi, o chefe da Quinta do Lago. Com o seu feitio inconfundível, dá alma a um dos melhores restaurantes de peixe e marisco do país. Ontem fez…

36 anos de restaurante, 70 anos de vida. Nestes anos qual foi a principal transformação do mundo?

Eu trabalhava em seguros, tinha saído da tropa. E hoje em dia penso que ainda bem que saí. Houve as fusões, na altura em que os seguros e bancos ainda eram coisas recomendáveis. No meu tempo – nos anos 60, 70 – os banqueiros ainda tomavam conta do dinheiro dos contribuintes, o dinheiro dos contribuintes era sagrado. E nos seguros a mesma coisa. Anos depois cheguei à conclusão de que uma das primeiras mudanças do mundo foi essa.

Os banqueiros e os seguros deixaram de ser respeitáveis?

Houve umas fusões – eu também estava um pouco desmotivado, tinha vontade de ter uma loja de vinho e nessa altura fiz uma loja do vinho no Bairro Alto que correu lindamente. Queria mudar, estava a imaginar-me aos 60 anos barrigudo de whisky em balão. E disse: ‘Ou mudo agora ou não mudo’. Tiveram uma grande influência as minhas idas ao Brasil com os meus irmãos, que já na altura tinham uma pousada em Búzios, com um grande restaurante. Tiveram também uma grande influência os meus amigos Joaquim Machaz [um dos donos do hotel Tivoli], e o Manecas Moceleck [figura carismática da noite lisboeta dos anos 80 que esteve à frente das discotecas Stones e Bananas] e isto começa com esse caldeirão, digamos assim. Resolvi mudar. E as coisas proporcionaram-se. Na altura fiz o seguro de um helicóptero e até ainda me lembro da matrícula. Era o CSAI, de uma companhia chamada Heliávia. E depois do seguro – que era de um amigo comum nosso – foram feitos uns voos de divulgação. E um dos voos calhou com a abertura do Bananas em Vale de Lobo. E nós viemos de helicóptero para o Algarve. O Manecas, o dono do helicóptero e eu. A Heliávia hoje em dia é uma companhia de alugueres mas na altura foi uma coisa muito inovadora… um helicóptero em Portugal? Estamos a falar de 84, ainda não tínhamos entrado para a CEE. Viajar de helicóptero em Portugal, uma coisa que agora é comum, na altura era surreal. O Manecas estava, justamente, a fazer um Bananas em Vale de Lobo em 84. E nesse ano nós passávamos a vida a ir almoçar ao Passos, na praia do Ancão. No Passos havia uma carne magnífica, que era o T-bone, mas eu, se como dois dias carne, ao terceiro já não consigo. Então desafiava o Manecas para irmos pela praia até à da Quinta do Lago, ao restaurante onde estou hoje, de uns chilenos, os Naraianos. Tinham um conjunto musical, e chegaram do Chile, fugidos do Pinochet, a quem o André Jordan [então dono da Quinta do Lago], como sempre, abriu portas. O André Jordan tinha sempre uma porta aberta para refugiados, pois ele próprio o foi durante a II Grande Guerra. Como a Quinta do Lago estava no arranque, eles abriram o restaurante, e a especialidade era o ceviche. Na altura desafiei várias pessoas para irem comer o ceviche, mas quase ninguém queria. Eu pagava três doses e comia sete ou oito!_Hoje está na moda e todos o querem. Entretanto, o Manecas acaba o contrato do Bananas e no ano seguinte é desafiado para vir para a Quinta do Lago. Convida-me e eu disse-lhe que colaborava, mas não ia estragar a nossa amizade, até porque tinha a loja do vinho em Lisboa que estava a correr lindamente. O Manecas meteu um amigo nosso em comum como sócio dele, que era o Tó Felizardo, companheiro das corridas. Mas eu colaborei. Houve esse ano de colaboração. Entretanto volto ao Brasil e no ano a seguir regresso a Portugal com a ideia de comprar o Quebra Coco, na praia dos Tomates, ou outro restaurante junto à praia. Quando disse ao Manecas, em Lisboa, que fui lá abaixo para comprar o Quebra Coco’, ele perguntou-me por que não ficava com o restaurante. Quando ele me disse que não ia continuar, marquei um almoço com o André Jordan, na Pérola, por intermédio de um amigo nosso, Filipe Vieira da Rocha. E foi assim, viemos para o Algarve. Por incrível que pareça, a última companhia de seguros onde trabalhei, hoje em dia a Allianz, deu-me uma licença sem vencimento de seis meses convencida que eu ia voltar. Aí o André Jordan também fez um contrato de seis meses à experiência, renovável. Falei no projeto, mas verdadeiramente o que tinha em mente, e a falsa modéstia é a pior das vaidades, era aos 34 anos fazer um verdadeiro projeto de praia – na altura os restaurantes tinham sardinha, sol, sangrias tintas com licor e vinhos em wine cooler

Não começou com sandes?

Não, não. Elitizei. Nunca tive sandes. Tive salada de atum com feijão frade, começou assim. E com peixe grelhado. Muito rusticamente. Na verdade, elitizei, mantendo uma traça, o elegante rústico, digamos assim. Nessa altura, inclusive, a Gigi Bola, foi inventada aqui.

Ideia sua?

Eu e o meu querido ‘irmão’ Machaz bebíamos uma coisa que era a Bola Bola, conhecida como pêssego bellini – consiste em picar o pêssego e juntar espumante, no final dá para comer o fruto. Fazia isso já na loja de vinhos no Bairro Alto, com um espumante que era do Luís Pato. Quando cheguei cá abaixo a coisa surgiu. Primeiro comecei com os pêssegos mas a seguir aos pêssegos veio o sumo de laranja. A Bola Bola foi evoluindo e eu deixei o nome Gigi Bola. Gigi da minha parte e Bolas que era o nome que eu chamava ao Machaz. Há 36 anos. A coisa correu muito bem, mas muito timidamente ao princípio.

Vivia na parte de baixo do restaurante?

Sim, vivia. Tínhamos um apartamento em Vilamoura mas os filhos fizeram uma ‘ditadura’ para vir para aqui. Aliás, praticamente era uma casa na praia. Agora está muito na moda alugar casas na praia. Na altura tínhamos aqui um quarto enorme, que hoje é o armazém dos vinhos. Mas tínhamos dois quartos, na verdade. Encarei isto como um projeto de vida. Tinha vendido tudo, a minha casa de Sintra, a Rei Seguro, que era uma seguradora que tinha com o António Ferreira de Almeida, ligado aos carros antigos, de que eu já partilhava o gosto. Na verdade, estava mesmo com um projeto de mudança de vida. Não quer dizer que agora não mude de vida aos 70. Como dizia o professor Celestino da Costa: ‘Ó Gigi, a gente pode ir fazendo projetos até aos 100 e depois logo se vê’.

Mas não havia o restaurante Flor da Várzea em Sintra?

Isso foi o recurso para empregar o meu pessoal daqui do Algarve no inverno; também continuei com a loja do vinho. A loja do vinho foi uma coisa muito fascinante para mim porque era no Bairro Alto, foi um sucesso, precisamente em frente à A_Bola. Na altura havia o Vítor Santos, Aurélio Márcio, Farinha… que eram grande nomes do jornalismo e passavam por lá. Na verdade até aconteceu um fenómeno engraçado, que foi terem feito uma notícia sobre a minha loja de vinho – um jornal desportivo que só dava notícias de desporto! O título era ‘Amigos e vizinhos’, isto em 1984/85.

Como se chamava a loja?

Bezanas Wine Shop, uma loja pequenina mas com os melhores vinhos. Tinha saído dos seguros, que era um negócio responsável, muito difícil…

Mas saiu porquê?

Não queria estar metido em fusões de pessoas e de companhias. Começaram as grandes fusões nessa altura. Tanto de companhias como depois de bancos, mais tarde. Não quis entrar nesse projeto, mas a loja do vinho era uma coisa fascinante porque vendia muito, fosse em provas, no Natal ou ao Pap’Açorda. Na altura o Bairro Alto era uma fábula, uma coisa extraordinária, havia o Frágil, a loucura dos anos 70, 80… E se alguém no Pap’Açorda pedia um vinho que não estava na carta, perguntavam se eu tinha – por exemplo, o Barca Velha de 64. E eu tinha. Mandavam buscar, pediam o preço, fazíamos contas… Um cliente que pede um Barca Velha não pergunta o preço. Ganhava o Pap’Açorda e ganhava eu.

Uns anos depois fez um leilão de vinhos e alguns atingiram preços exorbitantes.

Uma Magnum de 57 foi vendida por 2000 ou 3000 euros para colecionadores. Voltando às praias, digo que a grande inovação das praias talvez tenha começado um pouco em mim. Antes era sardinha, sol, moscas e sangria tinta com licores. Nas praias do Algarve não havia frapés com gelo. Havia wine cooler em barro, aqueles termos onde se mete a garrafa lá dentro. Havia uma exceção aqui no Algarve que já fechou, infelizmente. Era um restaurante fantástico mas não era bem de praia. Era o Camané, na ilha de Faro. Era um grande restaurante de cozinha algarvia, já inovado, já tinha louças personalizadas. Antes não havia isso, como eu tenho agora. Antes era travessas de inox ou de barro, como também tive ao princípio.

Como caracteriza o seu tipo de clientes na altura?

Eram estrangeiros, residentes e visitantes da Quinta do Lago, onde eu apostei. É dessa altura que vêm os Agnelli e o conde de Lesseps, por exemplo. Sempre tive o apoio tanto do André Jordan – que era o dono da Quinta do Lago, e é como família para mim – como de um André também importantíssimo na minha vida, que era o André Gonçalves Pereira, o professor. O professor deu-me um grande apoio sempre, um apoio embirrento. Tenho saudades das embirrações dele. O professor geria muito bem a coisa e alimentava os dois restaurantes.

Quais?

O Passos e o Gigi. Os portugueses adoram polémicas, por isso é que há aqueles programas de futebol. O português não gosta de dizer que gostou de dois restaurantes. É como o tempo. Ou se queixa de que está frio ou de que está calor, ou que está de chuva…

Que episódios mais estranhos teve nos últimos tempos?

Um grupo de chineses que veio de avião privado de Xangai, para investir na Quinta do Lago. Rigorosamente eles vinham para ver coisas no Algarve. Odiaram a Quinta do Lago porque os chineses têm duas coisas que não gostam. Primeiro é atravessar uma ponte com chapéus de chuva; a outra é medo de tsunamis.

Como assim?

O chinês bronzeado é pobre. Por isso, o chinês milionário tem de ser branquinho, não ter um raio de sol no corpo. A única coisa que salvou aquilo foram os camarões tigres e os carabineiros. Até levaram. Fizeram uma encomenda, levaram para o hotel, estenderam tudo em cima da cama. Os chineses aqui junto à praia têm medo de tsunamis. Cheira-lhes… Aqui nunca tivemos um tsunami mas aquele enquadramento da ria… faz-lhes confusão. Ficaram encantados com a comida, mas não compraram nada na Quinta do Lago porque há outra coisa que os chineses não gostam: de sítios com pouca gente. Foram para Vilamoura, gostaram dos prédios mas ficaram fascinados com uma placa que dizia ‘Casino’…

 

Leia a entrevista na íntegra na edição impressa do SOL. Agora também pode receber o jornal em casa ou subscrever a nossa assinatura digital.