Este tributo a uma casa onde a irreverência era o prato do dia é publicado esta semana sob formato de livro: Tal&Qual – Memórias de um Jornalismo (Âncora Editora). É um testemunho coletivo que preserva, assim, o legado de um jornal que testou limites e que nos traz acontecimentos icónicos da vida do semanário extinto em 2007.
O Gonçalo parece estar apostado em preservar a memória do jornalismo. Lembro-me de falarmos quando lançou O Inspetor da Pide que Morreu Duas Vezes e de comentar que esta é uma classe que maltrata o passado, os seus mestres e os jornais. Este livro enquadra-se nessa senda?
Gonçalo Pereira Rosa (GPR): É exatamente essa a minha preocupação e suponho que a do Zé Paulo também. Somos ótimos a contar as histórias dos outros, mas temos muitos vícios para contar a nossa própria história e narrar a saga dos nossos projetos jornalísticos. E até para evocar as grandes histórias do passado – se tiver de recapitular, acho que não chego aos 30 volumes de memórias feitos ao longo do séc. XX dos jornalistas. E esta é uma profissão rica, que deixa marcas, que interfere – muito ou pouco, mas interfere – na política do país, e deveríamos ser muito mais reflexivos. Pela parte que me toca, este livro é uma continuação deste esforço de continuar a fixar um bocadinho da memória do séc. XX, neste caso de um período curto, de 80 até 2007, embora o livro se foque sobretudo de 80 a 2000, que é o período rico do Tal&Qual (T&Q).
Acham que há algum pudor dos jornalistas? Afinal, o jornalista nunca é notícia…
José Paulo Fafe (JPF): Isso é conversa fiada! O jornalista pela-se por ser notícia. Acho que é preguiça, fundamentalmente. Aliás, eu fui preguiçoso porque este livro está falado há dez anos. Fiz muito pouco, recolhi os vinte e tal depoimentos para este livro, mas convenci este senhor a fazer um texto, que é um texto brilhante e que é o que lhe tinha dito: um texto de enquadramento histórico do T&Q. Está ali tudo, o T&Q está todo ali. No dia em que alguém quiser saber o que foi o T&Q, está no texto do Gonçalo Pereira Rosa, mais até do que nos outros textos.
Qual foi o gatilho para este projeto avançar?
JPF: Uma conversa telefónica no dia 25 de abril deste ano.
GPR: E talvez um bocadinho da saturação da pandemia, de estarmos fechados.
JPF: Estava no mercado de Cascais e liguei ao Gonçalo por outra coisa diferente, e foi assim. Encarreguei-me de recolher todos os depoimentos e ele falou com pessoas que eu pensei que ele não conseguisse falar. A_história, os anos e as relações são sempre desgastantes.
Ia perguntar precisamente se esse teria sido outro entrave. Vemos, em muitos projetos jornalísticos, muitas pessoas saírem a mal.
GPR: Há zangas para a vida. Diga-me o nome de um jornal e eu digo-lhe o nome de quatro pessoas fundadoras que deixaram de se falar…
JPF: Talvez o facto de o Gonçalo ter tido esse papel de ser a pessoa de fora – é a única pessoa que escreve neste livro que não trabalhou no T&Q – tenha sido determinante. Não digo que ele consiga sentar à mesa algumas pessoas, mas conseguiu falar com elas sobre o T&Q, o que já é muito bom.
E se fosse no seu caso, acha que não iria conseguir?
JPF: Não, eu não conseguia. Até porque, em alguns casos, não me sentaria à mesa com algumas pessoas também. (risos)
GPR: Mas é uma boa metáfora para responder à pergunta inicial, de como a fundação de um jornal, que é um ato criativo por definição, é também, com demasiada frequência, o princípio de uma briga para toda a vida.
Deixam aqui muito claro que ao longo dos quase 30 anos de vida houve muitos T&Q dentro do T&Q.
GPR: Perfeitamente.
JPF: Houve, e para mim há uma coisa engraçada. Para mim, o T&Q não morreu quando eu saí, longe disso. Saí dia 31 de agosto e depois continuei com uma coluna até 31 de dezembro de 1999 mas, para mim, morreu dois anos depois. Costumo dizer uma frase feita, mas que é verdade: o T&Q, até aí, contava a vida tal e qual ela era. Quando deixou de o fazer, o jornal morre, e morre durante cinco anos.
Esteve muito tempo nos cuidados paliativos.
GPR: Esteve, ao que não é alheia a mudança para para a última proprietária, que não tinha vocação nem respeito pela história, boa ou má, do título que tinha comprado no meio de outros. Digo algures que o T&Q começou por ser filho único; depois, a dada altura, teve de repartir o pão com outro filho, mas ainda eram dois filhos importantes…
JPF: Mas já foi difícil quando foi fundado o 24 Horas.
GPR: Que vai buscar alguns dos melhores jornalistas e parte do investimento. E era um jornal diário que faz surgir a tendência de que, se havia uma boa história, era logo publicada, não se esperava por sexta-feira. Mas, na minha interpretação, o golpe definitivo é transferência para a Lusomundo. Passou a ser tratado como um título que eles não percebiam. Alguns dos administradores tinham estado na barricada contrária de algumas das polémicas-chave nos anos 80.
JPF: Nós éramos a segunda classe do jornalismo. Pensavam eles que nós não contávamos e achavam que o T&Q era um produto menor. Mas, provavelmente, vendia mais do que eles, nós ganhávamos mais do que eles, divertíamo-nos a trabalhar, tínhamos essas grandes vantagens. A Catarina Vaz Guerreiro… não sei se ela escreve isso no seu testemunho, mas contou-me por telefone uma imagem felicíssima que quase me emocionou: que quando saía de casa para ir trabalhar no T&Q, descia as escadas de dois em dois degraus, de tão contente que ia. Acho que era uma imagem de como se trabalhava no jornal, com alegria e vontade. Era estimulante trabalhar ali. Foi uma jovem jornalista que deixou de ser jornalista, como muitos dos que escrevem ali – começaram, mas depois saíram e nunca mais trabalharam em jornais.
Vocês próprios brincavam com isso da ‘segunda liga’, diziam que o troco do Expresso dava para comprar o T&Q.
GPR: O Hernâni Santos, o chefe de redação, disse uma coisa curiosa: que as pessoas tinham alguma vergonha de mostrar que estavam a ler o T&Q, então punham-no no meio do Expresso.
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