O livro da autoria de Alexandre Patrício Gouveia, Os Mandantes do Atentado de Camarate – O Envolvimento Americano, defende a tese de que os autores do atentado foram cinco elementos ligados à administração Reagan devido aos obstáculos criados ao comércio ilegal de armas. Esta tese faz sentido para si?
Foi uma tese que comecei a defender em 1995. Era, nessa altura, diretor de informação da TVI e tínhamos uma investigação jornalística liderada pela Inês Serra Lopes que nos conduziu a elementos que consolidaram a ideia de nos que o tráfico de armas poderia ser o móbil do crime. Mas não o tráfico de armas para África, que era a suspeita que mais circulava. Poderia estar ligado ao Irangate – a guerra Irão/Iraque começara em outubro de 1980. Houve elementos que nos apareceram na investigação e que permitiram levantar a hipótese de Amaro da Costa ter caído na linha de tiro de uma grande operação clandestina internacional. A TVI chega a pôr no ar uma peça com essa pista e, também em 1995, é essa hipótese que figura na acusação particular que as famílias fazem entrar na Justiça no fim do ano: Irangate. Isso fazia mais sentido porque parecia-nos difícil que portugueses matassem o primeiro-ministro e o ministro da Defesa por causa de tráfico de armamento para Angola ou para Moçambique. Era um bocadinho excessivo. Este livro levanta pistas muito importantes que dão mais consistência a uma explicação que se foi consolidando por outras descobertas desde 1995 e sobre a qual não tínhamos ainda visto o suficiente do lado americano e do lado do Irão.
Gostaria de falar sobre os dias que se seguiram à queda do avião porque tudo apontava para um acidente. Havia poucas evidências que sustentassem a tese do atentado ou houve má vontade em investigar todas as hipóteses?
Houve bastante má vontade. Houve um erro técnico. O parecer técnico da Direção-Geral da Aviação Civil apontou logo para a tese de um acidente provocado por uma falha do motor esquerdo à descolagem. Está completamente comprovado que isso é falso. Essa tese sustentava que o motor esquerdo tinha parado porque não tinha combustível. Faz alguma confusão como é que um avião não tem combustível. Está provado que é falso. Essa explicação não tem consistência, mas se calhar desmoralizou a Polícia Judiciária (PJ). Isso pode ser a desculpa para a PJ ter negligenciado grosseiramente indícios de sabotagem de que teve conhecimento logo no dia 5 de dezembro, nomeadamente o rasto.
Nos dias a seguir à queda do avião colocou a hipótese de ter sido um atentado?
Ao início achava que era um acidente, mas fui formando a minha opinião pela leitura dos relatórios. As várias contradições que detetei levaram a que começasse a ter dúvidas e, mais tarde, a certeza de que foi um atentado. Essa mudança para a certeza de que foi um atentado deve-se à confirmação inequívoca do rasto, no inquérito parlamentar, em 1986. O que é que o rasto quer dizer? Se o avião largou um rasto, deixou cair materiais que eram papéis, alguns queimados, entre o topo da pista e o local onde embateu… São 600 ou 700 metros de voo. Isso quer dizer, em primeiro lugar, que tinha um buraco. Se não tivesse um buraco não saíam esses materiais. Em segundo lugar, esses materiais estavam queimados e se estavam queimados era porque o avião tinha um fogo a bordo. Isto é um atentado. Não foi com certeza com uma picareta que abriram um buraco. É preciso as pessoas perceberem que este atentado foi muito sofisticado. Este atentado foi feito para simular um acidente à descolagem. Quando falamos de uma explosão é um pequeno engenho explosivo. Se fosse uma bomba toda a gente via, toda a gente tinha percebido. O avião não explodiu, não caiu devido à explosão. Caiu devido aos efeitos que essa pequena explosão provocou dentro da cabine. Por isso é que existiram dúvidas.
Encontra alguma explicação para a resistência da Justiça em relação a este caso?
Isso teria de ser investigado. Pode ser uma reação corporativa. Terá havido alguém a mando dos mandantes do atentado que tivesse sido agenciado para sabotar a investigação? É possível. Quem? Não sei. A haver alguém estaria mais na parte técnica porque a parte técnica foi estrategicamente essencial para inutilizar a investigação. A politização do processo também o prejudicou porque durante algum tempo, como havia a tese do acidente, havia muita gente a pensar que a tese do atentado era para atingir politicamente algumas pessoas.
Quem eram essas pessoas?
Para atingir Pinto Balsemão, que era primeiro-ministro e estava confrontado com as críticas dentro do PSD, o general Eanes ou os comunistas. Houve foguetes na Margem Sul quando morreu Sá Carneiro. Isso gerou uma certa tensão nalguns espíritos durante alguns anos. Mas a partir da quarta Comissão Parlamentar de Inquérito as decisões foram aprovadas por maioria e depois por unanimidade. A quarta Comissão terminou em 1991.
A Justiça ainda podia ter atuado…
Podia. Isso é uma coisa inacreditável. A quinta Comissão terminou em 1995 e há um despacho do Ministério Público (MP), nessa altura, que se abstém de acusar em tribunal, que é uma vergonha. É verdadeiramente deplorável face aos indícios que existiam e à iminência da prescrição. A inércia corporativa manteve-se e é por causa deste despacho do MP que as famílias decidem fazer uma acusação particular, para que não prescrevesse, ainda em 1995. Ainda arranjam forma de o José Esteves escapar à notificação e o processo ficou apenas com o Sinan Lee Rodrigues, que estava preso no estrangeiro nessa altura.
Alexandre Patrício Gouveia critica a atuação do poder político, nomeadamente do então primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão. Concorda com estas críticas?
O Alexandre Patrício Gouveia tem uma legitimidade que mais nenhum de nós tem. Ele é irmão de uma das vítimas. O irmão dele foi morto no atentado. É normal que ele viva essa questão com muita intensidade. Esta experiência do Alexandre Patrício Gouveia resulta de vários anos de contactos diretos e de múltiplos desapontamentos. Francisco Pinto Balsemão estava, em 1981, debaixo de fogo [era contestado internamente] e poderia ter sido levado a pensar que a questão de Camarate era fogo político contra ele. Pode ter sido isso. Mas obviamente devia ter tido a grandeza de separar os assuntos. Houve um comportamento estranho do Expresso, desde sempre até hoje. E, no Governo, também houve resistências, como no episódio do inquérito público. Acumulara-se nas cúpulas desconforto crescente com as fragilidades dos dados oficiais e crescia uma grande insatisfação nas bases. O Freitas do Amaral exigiu, em outubro de 1981, a seguir ao relatório da PJ, a abertura de um inquérito público. O Estado abria um inquérito para quem tivesse dados novos. O dr. Pinto Balsemão resistiu muito a isso e na altura também o ministro da Justiça, Menéres Pimentel. Este, mais tarde, arrependeu-se e reconheceu que tinha errado. Mas o primeiro-ministro opunha-se muito a isso.
O que o levou a empenhar-se tanto na tentativa de descobrir a verdade sobre Camarate?
Meti-me nisto por um dever moral. Lembro-me de ir a uma sessão de esclarecimento e alguém perguntar: o que se passa com o processo de Camarate? Eu lá disse aquilo que estava a acontecer. E essa pessoa disse-me: ‘Se tivessem sido vocês a morrer e eles tivessem ficado vivos já tínhamos sabido o que tinha acontecido’. Nunca me esqueci disso. Foi a voz do povo. Nós tínhamos a obrigação de levar até as últimas consequências a investigação desta matéria. Era muito amigo do Adelino [Amaro da Costa]. Era o meu melhor amigo nessa altura. Era como se fosse meu irmão. Acho que consegui contribuir para apurar a verdade, mas sinto alguma frustração por não termos conseguido chegar à verdade completa. Há coisas que hoje são absolutamente claras e isso deve-se apenas às comissões parlamentares de inquérito. E muito ao Augusto Cid.
É claro que foi um atentado?
Sem margem para dúvidas. Isso é inquestionável. O que ficou por apurar com segurança e com provas irrefutáveis foi os autores materiais e morais, o motivo e o alvo do crime. Há uma convicção muito forte de que o alvo era o Amaro da Costa e que o móbil era o tráfico de armas no que viria a ser o Irangate. Há um dado importantíssimo e que é o nosso triunfo. A certa altura as famílias recorrem para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por não ter sido feita justiça. E o Estado português usou, na sua defesa, o trabalho das comissões parlamentares de inquérito para provar que não era verdade que o Estado não tivesse feito nada. Não utilizou o trabalho do Ministério Público. Isto é um bocadinho sonso, revela alguma hipocrisia na ação do Estado, mas é a prova de que aquilo que tem valimento é o que o Parlamento fez.
A política em Portugal teria sido diferente se Sá Carneiro e Amaro da Costa não tivessem morrido tão cedo?
Teria sido muito diferente. Sá Carneiro era uma pessoa carismática e com uma autoridade instintiva. Ele tinha tido um grande desgaste no seu começo no PSD com várias ruturas e tensões. Muitas pessoas tinham uma ideia distorcida dele.
Consideravam que era uma pessoa instável…
Achavam que era uma pessoa conflituosa. Mas, em 1980, emergiu como uma grande estadista, não teve foi tempo para continuar. Não chegou a durar um ano. Era de facto uma pessoa com grande autoridade. As pessoas calavam-se para o ouvir. Era um homem grande. O Amaro da Costa era um vulcão de energia e de alegria. Uma pessoa muito bem-disposta. Um homem de grande lealdade. Ele sabia que era o número dois e queria ser o número dois. Houve várias tentativas de intriga, mas era escusado porque Freitas do Amaral e Amaro da Costa eram pessoas que tinham uma grande estima um pelo outro e uma enorme lealdade. Foi uma peça muito importante para a criação da relação estreitíssima entre as direções do PSD e do CDS.
Era uma boa relação ao contrário do que é habitual nas coligações.
Era exemplar. Não havia patifarias e resistiam impecavelmente às pressões das bases. E, portanto, se Camarate não tem existido julgo que o PSD e o CDS se iriam fundir ou federar e a AD era institucionalizada. A institucionalização da AD foi um tema que chegou a ser discutido. Não sei como seria, ninguém sabe, mas isso seria profundamente natural. Essa classe dirigente estava a formar-se ali à volta do Governo e dos seus círculos mais próximos. Isso daria um caráter muito poderoso a essa AD.
A AD não conseguiu sobreviver à morte de Sá Carneiro…
A AD acabou. No dia 4 de dezembro caiu o Cessna e caiu a AD. A AD morreu ali. O que sobreviveu foi uma coligação clássica entre dois partidos. Deixaram de ter um líder respeitado. O Balsemão não era o líder da AD. Acho que nem falava na AD. Freitas do Amaral estava bastante descontente e só cumpriu muito penosamente porque queria fazer a revisão constitucional e a subordinação do poder militar ao poder civil. Mas com Sá Carneiro teríamos a AD e teria sido tudo diferente. Cavaco Silva não teria sido primeiro-ministro. Tinha sido Sá Carneiro por muitos e bons anos.
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