A vida interior das esculturas

A exposição que até janeiro de 2021 ocupa a galeria principal da Gulbenkian põe em diálogo a tradição e a arte contemporânea. Esculturas Infinitas. Do gesso ao digital dá visibilidade ao acervo de gessos da Faculdade de Belas Artes e casa-o de forma surpreendente com esculturas recentes.  

Encarado como uma espécie de parente pobre da escultura – por comparação com materiais mais nobres e duradouros como o marfim, o mármore ou o bronze -, o gesso desempenha ainda assim um papel fundamental na história desta disciplina e nos seus processos. E, na mais recente exposição na Fundação Gulbenkian, que marca a despedida de Penelope Curtis (o seu contrato como diretora do museu terminou em agosto), assume um protagonismo pouco habitual. Esculturas Infinitas. Do gesso ao digital (patente até 25 de janeiro de 2021) junta ao acervo de gessos da Faculdade de Belas Artes obras de 18 artistas contemporâneos, dos quais apenas dois nacionais.

«Há cinco anos vi a reserva dos gessos das Belas-Artes de Lisboa e para mim foi uma descoberta porque era uma coleção muito rica, mas quase invisível», recordou Penelope Curtis. «Queria ter a oportunidade de mostrar a coleção, que é muito rica e muito desconhecida, aqui nesta galeria tão bonita. Mas desde o início achei que não era suficiente mostrar só os gessos, queria encontrar uma maneira de falar mais da prática das moldagens, porque é uma técnica muito atual, está por todo o lado».

A ideia germinou, pois, há cinco anos. Dois anos depois, ganhava outro fôlego. «Estava a falar com o ex-presidente da École de Beaux-Arts em Paris, que quis fazer a exposição antes de Lisboa, porque estavam a planear o museu dos gessos em Paris e a exposição podia servir como lançamento do museu», continua Curtis. «Abrimos a exposição em novembro, mas infelizmente no dia seguinte começou uma greve nacional em França e depois veio a covid. É um alívio finalmente ver a exposição aberta», reconhece a britânica. «Aqui é mais variada [do que em Paris], há peças antigas, clássicas, esculturas gregas e romanas, mas temos também as peças mais quotidianas como folhas [ornamentais], arquitetura, moldes».

Rogério Taveira, artista visual e professor nas Belas-Artes, esclarece: «Esta é uma parte do nosso acervo, que tem muitas peças, algumas com estados de degradação acentuados. São peças que ao longo dos tempos tiveram papéis distintos. Serviam, e algumas ainda servem, sobretudo para as aulas de desenho, para os alunos fazerem desenho à vista. No início havia algum trabalho de escultura, mas isso foi desaparecendo, uma vez que os alunos pretendem uma abordagem mais contemporânea».

Também o próprio Rogério Taveira optou por essa «abordagem mais contemporânea» no filme que realizou sobre o acervo de gessos da FBA. «Comecei por gravar o som dentro destas peças», refere, para captar as diferentes reverberações dos materiais – são esses sons estranhos que o visitante ouve à entrada da exposição. Depois Rogério Taveira experimentou introduzir câmaras. «Começaram a aparecer figuras, estes fantasmas».

Ali ao lado, a obra de Francisco Tropa, curiosamente intitulada Penelope, também explora e dá visibilidade ao espaço oco que existe no interior de uma escultura – designado na gíria por ‘macho’. «É um vazio fabricado», explica o artista, «escavado à mão na areia». A fundição que produziu estas moldagens fechou entretanto. «Era talvez o único sítio da Europa onde ainda se trabalhava assim», lamenta Tropa.

 

Da escultura grega à internet: formas que circulam

Sendo o tema da exposição a moldagem e a reprodutibilidade da escultura (na linha do ensaio do filósofo alemão Walter Benjamin sobre ‘A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica’), Thierry Leviez, um dos curadores, chama a atenção para uma obra de Oliver Laric que representa em ponto pequeno, e em triplicado, um caçador e um cão. «Quando começámos a fazer a lista dos artistas, Oliver Laric foi uma escolha bastante óbvia», salienta Leviez. «É um artista particularmente interessado na forma como as ideias e as formas circulam em certas áreas ou eras. Isso para nós é um fenómeno muito comum, porque na internet as ideias e as formas circulam instantaneamente. Mas para ele é algo que já se encontra na escultura grega ou romana ou nos templos japoneses. Ele faz scans 3D muito detalhados de esculturas que estão em museus e em coleções públicas, e depois coloca-os online numa base de dados, onde estão disponíveis gratuitamente. Podem ser descarregados e usados para qualquer coisa, já foram usados para cenários da Eurovisão, de programas de televisão ou de videoclipes».

O caçador e o seu cão foram moldados a partir de uma escultura do século XIX, que por sua vez bebia inspiração na tradição greco-romana. O material usado é dos nossos dias: uma resina sintética, mas a que o artista adicionou substâncias naturais e pigmentos de modo a fazer um efeito que evoca o marmoreado.

 

A pele de um edifício

Muito diferentes são os dois ‘relevos de parede’, à primeira vista abstratos, da alemã Asta Gröting. São obras que requerem uma explicação. «O que Asta Gröning faz nesta série a que chama ‘Fachadas de Berlim’ é um molde direto sobre as fachadas de edifícios da cidade», começa Rita Fabiana, também curadora. «São fachadas que no momento da realização destas esculturas tinham ainda marcas de balas ou obuses da II Guerra Mundial. Ela vai fazer uma moldagem direta sobre essas fachadas, vai fazer aquilo a que chama uma ‘exposição longa’. Através desse processo, capta numa película (que é feita de silicone e de juta, para lhe dar alguma estrutura) todos os motivos da fachada mas também todas as poeiras, os restos de tijolo e as marcas. O que era vazio, resultado da perfuração das balas, transforma-se em relevo. É evidente que há uma intenção documental, que permite guardar certos detalhes, certas características, sobretudo estas marcas da guerra, que com os restauros e com a transformação urbana vão desaparecendo. É um trabalho que tem muito a ver com a ideia de tornar visível, de perpetuar uma certa visibilidade dos edifícios, mas também de mostrar o que não é visível ou não é dizível».

Aquilo que parecia uma composição abstrata metamorfoseia-se perante os nossos olhos num pedaço de memória. «E o facto de ela utilizar este silicone diretamente sobre as fachadas», continua Rita Fabiana, «dá-lhe quase um aspeto de pele, e faz esta relação entre as cicatrizes da guerra sobre os edifícios e as cicatrizes da guerra sobre os corpos».

Continuando a falar de corpos, deparamo-nos com dois gessos da escocesa Christine Borland. Resultam, diz-nos Penelope Curtis, de «um modelo anatómico que ela encontrou em Edimburgo, no College of Surgeons». Tratava-se de um écorché, «um cadáver que tinha sido esvaziado para estudo médico, mas tinha sido preparado como uma imagem de Cristo», nota Curtis. «Temos aqui uma combinação de medicina, arte e religião. Era um gesso antigo, do século XVIII, muito danificado. Ela restaurou-o e nesse processo descobriu que, se o virasse ao contrário, alterava completamente o sentido, ficava a parecer um anjo, por isso ela transforma-se de uma figura muito morta numa que parece ganhar vida». O contraste é de facto enorme: aquilo que, de barriga para cima, é um cadáver torturado, virado ao contrário ganha uma leveza esvoaçante.

 

Um diálogo que funciona

De Edimburgo passamos para Londres, com a China como destino final, pela mão de Simon Fujiwara, artista sediado em Berlim que há cinco anos foi convidado para participar na Bienal de Xangai. «Em 2011 houve motins em Londres, e o artista decidiu envolver um dos participantes, Rebekkah, de 16 anos», refere Armelle Pradalier, o quarto elemento da equipa curatorial. Para levar a manifestante «a pensar sobre o mundo globalizado», Fujiwara levou-a à China para lhe mostrar como eram feitos os bens de consumo que ela usava. «Visitaram grandes fábricas onde é produzida tecnologia, televisões, telemóveis, roupa e sapatos», comenta Pradalier. Pela postura e traços da escultura exibida não é difícil perceber onde a viagem terminou: no local onde foram em 1974 foram encontrados por agricultores restos do famoso exército de terracota do imperador Qin. O artista representou o seu modelo «como se fosse uma jovem guerreira do seu tempo», diz-nos a curadora francesa, emprestando-lhe as características de um dos oito mil soldados do imperador Qin entretanto desenterrados, mas ao mesmo tempo chamando-lhe a atenção para os seus privilégios no mundo globalizado e para «a produção em massa».

Para terminar, regressemos ao ponto de partida. Apesar da sua posição central no espaço da galeria, a coleção das Belas Artes acaba por ficar com um papel secundarizado face às obras recentes. Dir-se-ia que os gessos históricos dão o tom e o ambiente à mostra, mas não se afirmam tanto individualmente. Em todo o caso, o casamento funciona. É talvez nesta sua exposição de despedida que Penelope Curtis melhor consegue cumprir um dos desígnios a que se propôs no seu mandato: pôr a arte contemporânea a dialogar com a tradição de uma maneira que faz sentido e que estimula o visitante.