Cavaco Silva revisita 35 anos de poder

No derradeiro livro de uma já longa bibliografia, o político que mais eleições venceu em Portugal deixa dois guiões: um para a oposição, outro para a governação. Em duzentas páginas milimétricas, Aníbal Cavaco Silva despede-se da escrita, mas não da vida pública, à qual continua atento e crítico. Entre a enumeração de marcos nem sempre…

Esta terça-feira, Aníbal Cavaco Silva apresentará aquele que é, nas suas palavras, provavelmente, o seu último livro – intitulado Uma Experiência de Social-Democracia Moderna.

O ‘provavelmente’ com que antecede essa revelação ilustra um homem público que, após as funções que exerceu, deixou sempre obra escrita – e vasta – sobre os seus mandatos.

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O dia escolhido para o lançamento é simbólico, como que se a chave do seu último testemunho viesse encerrar um ciclo no aniversário da data que o abriu: a 6 de outubro de 1985, Cavaco Silva, líder do PSD há pouco mais de quatro meses, era pela primeira vez eleito primeiro-ministro.

Para Manuela Ferreira Leite, ao SOL, seria o início de uma «tremenda transoformação do país e da sociedade».

 

Passaram 35 anos

Tornaria a vencer duas eleições legislativas, ambas com então inéditas maiorias absolutas de um só partido (e, até hoje, por repetir no seu), alcançando também vitórias maioritárias para a Presidência da República em 2006 e 2011.

Uma Experiência de Social-Democracia Moderna não se trata de um memoir político, ao estilo de Quinta-feira e Outros Dias (os seus dois volumes de memórias presidenciais) ou das Autobiografias Políticas publicadas no início do século, também em dois volumes, em 2002 e 2004, nem tão pouco de uma coletânea de discursos, como as editadas em meados da década de ‘90, ou de um livro mais teórico, como os dedicados à União Monetária, no final da mesma década.

Uma Experiência de Social-Democracia Moderna é uma obra breve, de duas centenas de páginas, mas preenchida; diferente da bibliografia cavaquista a que os seus leitores estão acostumados.

O registo metódico e factual é omnipresente, o que é já tradição, mas há uma vertente política – partidária, ideológica, estratégica – mais evidente, mais solta, mais visível, se comparada com a narração quase historiográfica das suas memórias enquanto primeiro-ministro e Presidente – ou mais académica das suas publicações enquanto economista e europeísta.

Este é um livro de Cavaco como líder político, nacional, social-democrata; não apenas sobre o que fez, mas sobre o que é e foi enquanto tal. Não sendo um programa, é a história de uma visão consumada – a tal social-democracia moderna dos seus Governos e seu legado estrutural –, mas também a atualização dessa visão para futuro. Cavaco conta como foi e por que assim é.

Não sendo uma obra de prestação de contas, como as de pós-Governo e pós-Belém, é um livro que retrata a obra feita (e projetada por si) e que deixa também luzes sobre a grande questão que rodeia a área política que Cavaco Silva liderou durante dez anos: o que fazer do centro-direita, da social-democracia portuguesa, neste novo século?

Num tempo em que as obras públicas, a industrialização, as infraestruturas e o dinheiro europeu regressaram ao debate político contemporâneo, o novo livro de Cavaco Silva, já redigido no início deste ano, quase aparenta um propósito pedagógico – tanto para aqueles que atualmente governam, como para aqueles que a governar almejam.

O centro-direita, que não ganha eleições em Portugal há meia década, recebe um guia daquele que mais triunfos lhe ofereceu na história da democracia. O Partido Socialista, que receberá nos próximos anos a maior injeção de fundos desde a adesão à União Europeia, ganha um testemunho daquele que presidiu aos anos de maior convergência portuguesa com a UE.

Há, então, referências ideológicas, para dentro, exemplos executivos, para fora, e alguma oposição. No primeiro campo, que abre o livro, o património político do Partido Social Democrata é elevado por via da figura do seu fundador, o homem que trouxe Cavaco para a política, Francisco Sá Carneiro.

Para Cavaco Silva, são esses valores fundamentais que é vital recuperar e promover como objetivos: a independência da comunicação social, a concertação social, a equidade na tributação de rendimentos, a igualdade de oportunidades, o acesso aos cuidados de saúde, a defesa do ambiente e do ordenamento do território, a economia do mercado e a livre iniciativa privada, a solidariedade e a justiça social – «na recusa quer do socialismo, quer do conservadorismo» e da «dicotomia esquerda-direita».

A procura de um partido interclassista, de operários e empresários, comerciantes e funcionários públicos, artistas e cientistas, jovens e idosos, é recordada como génese do PSD. Uma súmula, é sabido, hoje distante da realidade eleitoral do partido.

 

Oposição, de ontem para hoje

Por todo o livro, a retrospetiva histórica vai servindo de lição para os dias de hoje. O ‘aluno’ mais corrigido é, lendo ao perto, o Governo do Partido Socialista liderado por António Costa.

A liberdade de imprensa, por exemplo, das feridas do PREC ao fim do monopólio estatal da televisão em 1992, com as primeiras emissões privadas (SIC e TVI) no país, é lembrada como feito – e colocada em contraste com «episódios da nossa história mais recente». Diz Cavaco, em clara referência ao apoio financeiro do atual Governo aos media: «Acresce que a dependência do Estado, seja pela via da propriedade dos meios de comunicação, seja pela vida da subsidiação pública dos mesmos, prejudica a independência do jornalismo, que tão fundamental é para o escrutínio do funcionamento do sistema político».

Quanto à concertação social, a crítica é igualmente feita à base de memória e atualidade. Cavaco lembra os quatro acordos de concertação social assinados durante os seus Governos e, de seguida, compara-os pesarosamente com a «a desvalorização do papel dos parceiros sociais nos anos recentes, transferindo matérias de negociação que lhe são próprias para o poder de decisão do Governo e da Assembleia da República». O alvo do corretivo, mais uma vez, é explícito: a solução governativa à esquerda, sustentada em posições conjuntas parlamentares e dependente de negociações constantes entre os partidos (PS, BE, PCP).

Na questão da tributação, quando Cavaco Silva critica a ausência de uma preocupação dos decisores políticos com a matéria – «que se limitam a ver nos impostos um meio de extrair recursos aos cidadãos para financiar a despesa pública» –, não é igualmente difícil distinguir de que decisores fala.

Na Educação, quando salienta a taxa de escolarização de cerca de 100% nos primeiros ciclos do ensino básico em 1995 (quando saiu de São Bento), termina lamentando «opções políticas recentes» em que prevaleceu «a ideologia sobre o objetivo de garantir a qualidade de ensino, independentemente da provisão do bem ser pública ou privada». «É um erro e um retrocesso que não ajudam à redução das desigualdades sociais nem ao fomento da mobilidade intergeracional», escreve Cavaco. O ex-primeiro-ministro foi, há semanas, signatário de uma abaixo-assinado crítico do Ministério de Educação devido à imposição da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento a dois alunos de Famalicão.

Na questão económica, citando um estudo do Banco de Portugal publicado em 2019, Cavaco nota que «o processo de convergência real da economia portuguesa não prosseguiu nos últimos 25 anos, isto é, depois de 1995» – precisamente quando o seu Governo cessou funções.

 

Legado físico

O restante livro é esculpido em torno de projetos que envolveram – ora em projeção, ora em concretização – os Governos de Aníbal Cavaco Silva, ainda que hoje de forma não tão reconhecida. Na Cultura, a Fundação Serralves, o CCB e as aldeias históricas. Nas Infraestruturas, o aeroporto Francisco Sá Carneiro, as pontes de São João, do Freixo e Vasco da Gama, as autoestradas e a via do Infante ou, por exemplo, a barragem do Alqueva. Na Industrialização, a fábrica de automóveis de Palmela (Autoeuropa) e a importância do gás natural – ainda hoje bem presentes nos fóruns económicos nacionais. Nas matérias sociais, a erradicação de barracas em Lisboa e no Porto.

No capítulo dedicado a Serralves, a sociedade civil nortenha recebe largo elogio do ex-primeiro-ministro e Pedro Santana Lopes um curto puxão de orelhas. Relata Cavaco que o então secretário de Estado da Cultura teve problemas no relacionamento com o conselho de administração da Fundação, que o acusava de «interferir na gestão, não respeitando o espírito de autonomia e independência que presidira à sua criação». «Santana Lopes desempenhou estas funções até 29 de dezembro de 1994, tendo então sido exonerado a seu pedido, ressentido e entristecido comigo por não o ter promovido a ministro, quando o tinha feito em relação a dois outros jovens políticos do PSD seus colegas», conta Cavaco Silva, na altura chefe do Governo.

Quanto ao Centro Cultural de Belém, Cavaco confessa «um certo prazer pelo facto de os detratores os terem engolido em seco [aos ataques contra o projeto] e fingirem esquecimento daquilo que disseram», deixando um cumprimento a Jorge Sampaio, então presidente da Câmara de Lisboa, por se ter recusado «a alinhar» nessa «polémica artifical» – cumprimento esse que repete, capítulos depois, devido à «total abertura» de Sampaio a colaborar com o Governo de Cavaco na resolução do problema de bairros de habitações degradadas.

O percurso político de Cavaco Silva manteria uma ligação especial ao CCB, aí lançando a sua candidatura presidencial de 2005 e também as suas primeiras memórias em Belém. Num tom mais pessoal, e com evidente estima, Cavaco presta tributo a Vasco Graça Moura, que não só integrou os seus Governos como presidiu ao Centro Cultural de Belém. «Refiro-o não apenas pela amizade que nos ligava ou por o considerar um dos maiores génios da cultura portuguesa contemporânea (…) Faço-o, porque à medida que os anos passam mais se sente a falta da sua intervenção cívica e política para a valorização da vida democrática do país. Imagino o que teria escrito sobre a governação da ‘geringonça’…».

 

A discreta, mas sempre presente, homenagem

Há uma invulgaridade neste livro cuja omissão prestaria um mau serviço ao leitor. Cavaco Silva quase se aproxima, momentaneamente e com sentido de humor, de um registo intimista. No capítulo dedicado às autoestradas Lisboa/Porto e Lisboa/Cascais, o ex-Presidente narra mesmo a sua visita habitual ao dentista, seu amigo, com consultório na Invicta, o Professor António ‘Tó’ Felino. «A consulta propriamente dita é, normalmente, antecedida de um almoço (…) É conversa de amigos sobre a família, a universidade, a política e o mais que vem à cabeça, e que depois tem continuidade no consultório, na confortável cadeira do dentista», conta o autor. «Nesta situação, para não perturbar a broca, limito-me a ouvir o que o Tó, imperturbável no seu trabalho, vai dizendo. É uma situação em que me sinto em total desvantagem comparativa, sem poder mesmo abanar a cabeça para expressar discordância ou concordância», escreve, com graça.

Nesse capítulo, Cavaco analisa o impacto das regras comunitárias nas obras públicas com alguma ironia. Por imposição da Comunidade Europeia, na construção da autoestrada, mantiveram-se passagens subterrâneas ecológicas para que as rãs pudessem migrar de um lado para o outro da via. «As cobras, agradecidas, passaram a colocar-se à porta dos túneis para mais facilmente atacarem e comerem as rãs», lembra, novamente com humor doseado. «E eu, que detesto cobras, desde que, aos meus dez anos, no Algarve, na Praia dos Olhos d’Água, pisei uma e ela se enrolou na minha perna, e que fujo do canal de televisão National Geographic sempre que elas aparecem, vejo nessa história um exemplo de como as boas intenções dos regulamentos comunitários podem produzir maus resultados».

Mas o pontual foco mais autobiográfico – se quisermos, mais humano – ao longo deste seu último livro é, sem dúvida, protagonizado pela família de Cavaco Silva, «o seu grande pilar».

As referências ao futuro são regularmente acompanhadas pelo pensamento nos seus netos e, nos parágrafos iniciais de cada capítulo, Maria Cavaco Silva é uma constante, até como referência cronológica entre a vida pessoal e o percurso político do marido.

Pelas páginas de Cavaco, sente-se essa discreta, mas sempre presente, homenagem. «Agora vou menos ao Porto. Eu e a minha mulher vamos sempre de automóvel, percorrendo a autoestrada A1», por exemplo. «Liberto de funções públicas, vou com a minha mulher mais frequentemente ao Algarve», como outro exemplo. Ou, para estabelecer melhor uma data marcante, como o anúncio da candidatura a Presidente, em 2005: «Teve lugar em 20 de outubro de 2005, ao fim da tarde, dia em que celebrava 42 anos de casamento», faz questão de lembrar Cavaco.

É raro o capítulo sem menções a Maria Cavaco Silva.

 

A energia de ‘85

O ex-Presidente da República tem, então, uma manifesta atenção ao simbolismo das datas, não sendo por acaso que o livro será apresentado no aniversário da sua primeira eleição como primeiro-ministro.

Acerca dessa campanha, o SOL conversou com José Luís Fernandes, que integrou a organização da mesma e a viu de perto. O social-democrata refere, sobretudo, «a disciplina e o profissionalismo» de Cavaco Silva como candidato, «nunca falhando um único compromisso» e «chegando a proferir mais de vinte intervenções num só dia».

«Naquela altura, não havia as transmissões televisivas que há hoje ou a rapidez em comunicar que há hoje. Era preciso ir aos sítios, organizar tudo com rigor, cobrir muito território. Fazíamos centenas de quilómetros por dia. Felizmente que o Presidente [na altura, candidato a primeiro-ministro] tinha uma enorme resistência física; costumávamos dizer que tínhamos a sorte de ter um corredor de barreiras», recorda Fernandes, que estaria mais tarde como assessor de Cavaco em Belém.

«Ao contrário do que hoje se presume, Cavaco Silva era um homem com um contacto popular muito frequente. O lado mais distante que se supõe na governação é o oposto da realidade, do que era no contacto com as pessoas, com os portugueses», afirma também o veterano de campanhas do cavaquismo. «Havia uma energia especial».

 

Quando o PSD saiu à rua no Alentejo

Quem também se lembra dessa energia é Carlos Moedas, ex-comissário europeu e ex-secretário de Estado do PSD. A primeira vez que foi a um comício no PSD, na sua terra natal, Beja, foi para ouvir Aníbal Cavaco Silva em campanha eleitoral.

Ao SOL, Moedas lembra a importância desse tempo como uma altura em «que as pessoas acreditavam que a sua vida podia, verdadeiramente, melhorar». «Esperança. Acho que esperança é a palavra que melhor descreve o que se sentia ali», recorda o europeísta, dos seus dias de juventude.

«Para um miúdo do Alentejo era particularmente entusiasmante ver um homem que não vinha das elites, que tinha subido a pulso, que representava uma verdadeira meritocracia, ali, como candidato a primeiro-ministro», diz ao SOL, com a memória de que era a primeira vez que o PSD fazia um comício em Beja na rua, ao ar livre, e não num recinto fechado, por razões de segurança. Pela primeira vez, a social-democracia saía à rua no Alentejo.

 

A incessante vigilância

Em quatro anos de vida pós-presidencial, Aníbal Cavaco Silva publicou três livros – um ritmo de produção literária notável para um homem que, aos 81 anos, teve – e tem – uma vida pública, familiar e académica cheia. Entre a memória e a atenção que mantém, Cavaco Silva termina, provavelmente, a sua bibliografia política em 2020 com uma obra que vai de Francisco Sá Carneiro, sua referência, à atualidade, que lhe merece duras críticas.

O tempo e as suas múltiplas legitimações populares conferem-lhe uma autoridade que poucos, na praça política, possuem. A sua experiência e consciência desperta oferecem uma retrospetiva que tem pouco de nostalgia. É de hoje e de amanhã que Cavaco fala, alavancado na enumeração de um legado tanto físico quanto político. Terça-feira, certamente, não será apenas da data a comemorar que falará.

Munido, despede-se, com a «serenidade que brota do sentimento de dever cumprido».

«Goste-se ou não», foi assim.

 

Um ensaio de Sebastião Bugalho

O SOL agradece a generosidade do arquivo da sede nacional do PSD