O xadrez para a viabilização do Orçamento do Estado para 2021 complicou-se ontem mais um pouco para o Governo. Os votos contra do CDS, da Iniciativa Liberal ou do Chega não surpreendem, mas o Bloco de Esquerda, um dos parceiros da anterior legislatura, não aliviou o discurso. Bem pelo contrário. Endureceu-o.
A deputada e dirigente do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua lembrou ontem ao Executivo socialista que o Orçamento do próximo ano é “diferente” e há uma obrigação das contas públicas para responderem “a uma das mais graves crises económicas e de saúde pública porque vai mexer ainda mais com a vida das pessoas”.
Mais tarde, a própria coordenadora do partido, Catarina Martins, replicava nas redes sociais a mensagem da deputada, repetindo um caderno de encargos do qual o BE não abdica para viabilizar o Orçamento do Estado para 2021: “A responsabilidade perante a crise é ir além dos anúncios e construir respostas eficazes: travar a vaga de despedimentos; proteger o SNS com mais profissionais; impedir recursos para o Novo Banco sem nova auditoria; uma proteção social que retire as pessoas da pobreza”.
A expressão ir além dos anúncios também foi explorada por Mariana Mortágua horas antes. O Bloco de Esquerda tentou esvaziar algumas propostas do governo, anunciadas como medidas com pendor social. “O Orçamento do Estado para 2021 não comporta anúncios que não traduzam medidas concretas. Não comporta anúncios fúteis, como a medida de diminuição da retenção na fonte que é apenas propaganda e não terá impacto na vida das pessoas. Essa medida terá apenas um impacto de dois euros no rendimento mensal das famílias com salários acima dos 900 euros, não é com este tipo de medidas que Portugal vai combater a crise”, atirou a parlamentar bloquista, arrasando a medida da equipa de João Leão e António Costa.
Mas houve mais. O apoio extraordinário para quem não tem acesso ou direito a qualquer prestação social de apoio, tal como está desenhada no Orçamento de 2021, também fica muito aquém do que o BE pediu. O partido de Catarina Martins queria uma medida que se estendesse durante um ano. A versão na proposta governamental só permite um apoio de cerca de 502 euros (valor máximo) por seis meses à maioria dos destinatários.
Além disso, é preciso tornar mais caro o despedimento para travar “a vaga de despedimentos”, avisou Mariana Mortágua, com um aumento das indemnizações.
No capítulo do Serviço Nacional de Saúde, é preciso uma real contratação de médicos e condições suficientes para os manter no SNS. E claro: “a retirada do OE de 476 milhões de euros”, destinadas à Lone Star. Que comprou o Novo Banco, com garantias do Estado. Sem isso, o Bloco de Esquerda manterá as suas divergências de fundo com o executivo socialista. E o impasse mantém-se. “As divergências que neste momento existem não são diferenças de detalhe, são diferenças do centro da resposta à crise”, avisou Mariana Mortágua, lembrando, contudo, que a porta está aberta ao governo caso queira reconsiderar nestas quatro medidas. Mas há um prazo: a votação na generalidade do Orçamento, ou seja, até 28 de outubro. A margem negocial para a especialidade, como aconteceu durante cinco anos, já não chega para o BE. E o Governo arrisca mesmo um voto contra dos bloquistas caso não ceda nestas matérias.
Também o PCP fez o discurso sobre as respostas “parciais e muito limitadas” do Governo no Orçamento do Estado para 2021. João Oliveira, líder parlamentar do PCP, disse mesmo que qualquer sentido de voto, ou seja, até o voto contra. “O PCP admite qualquer sentido de voto, vamos fazer uma análise mais detalhada do OE para ver se há correspondência do anúncio das intenções e do que consta realmente do Orçamento do Estado”, declarou João Oliveira no Parlamento, lembrando que o seu partido não cederá a pressões ou chantagens.
Na lista de ex-parceiros do Governo da anterior legislatura também está o PEV. José Luís Ferreira lembrou que foram “poucas”, as medidas acolhidas pelo Executivo na proposta orçamental, O deputado do PEV apresentou, por por exemplo, a proibição de empresas “ligadas a offshores” terem acesso a apoios públicos. É um sinal, mas não chega. O PEV exige mais e a direção do partido irá avaliar, agora, o sentido dos ecologistas. Ou seja, está tudo em aberto.
E a estratégia do PAN, agora com três deputados, não será muito diferente. Inês Sousa Real, líder parlamentar do PAN, queixou-se da falta de rasgo ou de ambição do governo. Mas, a parlamentar lembrou que o Governo admitiu continuar negociar com o seu partido. Logo, o PAN fechará a sua posição durante o debate da especialidade. E o primeiro-ministro terá de ter em conta o PAN, caso o BE vote contra. Neste quadro, o PS precisará também da abstenção do PCP e do PEV para conseguir superar os votos contra o orçamento. Ainda assim, o documento passaria sempre por escassa margem, talvez um voto diferença. As próximas semanas o dirão.
Certo é que o PS voltou a exigir ao BE que não coloque linhas vermelhas todos os dias, mantendo o braço de ferro.
À direita, o líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, anunciou o voto contra, por “escravizar” a classe média, “com impostos e tornar as famílias mais pobres e dependentes dos subsídios do Estado”. Também a Iniciativa Liberal, pela voz do seu líder, João Cotrim de Figueiredo, anunciou um voto contra o Orçamento, porque “atrasa e dia Portugal”. Mais: “Vamos ultrapassar um recorde triste. Com 100 mil milhões euros só em despesa pública”, atirou.
Por sua vez, André Ventura, do Chega, lembrou que as contas de 2021 são um “ataque ao bolso da classe média”, sinalizando o voto contra.
primeiros sinais do PSD Do lado dos sociais-democratas, Afonso Oliveira, prometeu, apenas, que o seu partido iria estudar o orçamento e remeteu uma decisão para o dia 21 de outubro, nas jornadas parlamentares do PSD. Ao que o i apurou, não se antecipa nenhuma mudança face a 2019, ou seja, o PSD deverá votar contra o documento. Até lá, o presidente do PSD, Rui Rio, assiste à distância às tensões entre os parceiros de esquerda. Mas, ontem, replicou no Twitter uma análise ao Orçamento feita pelo presidente do Conselho de Estratégia Nacional do partido. “Por decisão do Governo e dos seus parceiros, vamos sair desta crise com um Estado ainda mais omnipresente, pesado, ineficiente e consumindo cada vez mais recursos”, escreveu Joaquim Miranda Sarmento no jornal Eco. Assim, parece estar a ser preparada a narrativa do voto contra do PSD.
Belém aponta o erro Entretanto, algo inusitado aconteceu à dotação orçamental para a Presidência da República. Marcelo Rebelo de Sousa pediu um Orçamento similar ao dos últimos três anos, cerca de 16, 8 milhões, mas os mapas entregues no Parlamento apontam um valor de mais de 32 milhões. Um erro que Belém não deixou passar ao lado. “Infelizmente, a proposta de lei do Governo contém um erro no novo mapa de classificação orgânica em que os montantes são praticamente duplicados, o que acontece também com outras entidades” escreveu a Presidência da República no seu site oficial, numa atitude inédita desde que Marcelo Rebelo de Sousa é chefe de Estado.