Texto de Teresa Carvalho
E no entanto o anúncio, feito na última terça-feira pela ministra da cultura, daquela que pretende ser a mais importante consagração literária da língua portuguesa, suscitou as mais variadas e desencontradas reacções: surpresa, camoniano contentamento descontente, entusiasmo, discordância, incomodidade, irritação e até contestação, estas últimas sobretudo relacionadas com as fidelidades de Aguiar e Silva ao regime de Salazar e com o seu conservador modelo pedagógico praticado na Universidade de Coimbra, onde se licenciou em Filologia Românica, se doutorou em Literatura Portuguesa, exercendo aqui o seu principal ofício de professor, continuado na Universidade do Minho, para onde se transferiu em 1989 e onde foi catedrático do Instituto de Letras e Ciências Humanas. A massa opinante de um lado e de outro da paleta reactiva, de um modo geral pouco disponível para o convívio com obras situadas em elevado plano de exigência, passou ao largo da apreciação literária, como tantas vezes acontece, limitando-se a citar a famosa “Teoria da Literatura” (1967), que guarda lá em casa na mesa de leituras, em cima ou em baixo, a servir de calço, conforme o caso. Inicialmente publicado em fascículos, esse essencial cartapácio é habitualmente considerado o expoente máximo da sua obra.
Por muito criticáveis que possam ser os posicionamentos que assumiu no passado e a sua personalidade académica, nunca sectária, aos desgostosos talvez não tenha ocorrido que o Prémio Camões não se destina a premiar um liberal de excelência da lusofonia, mas antes foi instituído, em 1989, como forma de reconhecer autores "cuja obra contribua para a projecção e reconhecimento da literatura de língua portuguesa em todo o mundo". Ao Sol, o professor Aguiar e Silva disse desconhecer o charivari mas sempre foi adiantando que “haverá aqui confusões tremendas entre valores estético-literários e valores ideológicos. Há pessoas que põem acima de quaisquer valores, o valor de um partido ou de uma ideologia, o que comigo nunca aconteceu.”
Eis o mais traduzido e o mais citado académico português na sua área de estudos, vítima do equívoco e da noveleta frívola para consumos efémeros, um género que atrai como um íman o peito lusitano. Camões, sensível às questões do mérito, haveria de se desgostar. De resto, onde há prémios, há irritação. E a irritação costuma crescer com o grau de importância dos prémios. Bolsonaro irritou-se, e pelos mesmos motivos, pelo Prémio Camões 2019 ter sido atribuído a Chico Buarque, a ponto de afirmar que não assinaria o diploma de atribuição do Prémio. Sousa Lara irritou-se com o “Evangelho Segundo Jesus Cristo” e afastou Saramago da candidatura ao Prémio Literário Europeu. Aníbal Cavaco Silva não compareceu nas cerimónias fúnebres do Nobel português porque fizera uma promessa à família e não queria que a família se irritasse.
Tendo-se dedicado especialmente ao estudo da teoria da literatura, esfera em que a importância do seu ensino e o reconhecimento da sua investigação galgou o rectângulo nacional, e à literatura dos períodos maneirista, barroco e modernista, a sua tábua bibliográfica é extensa e reserva espaço largo à obra de incidência camoniana. Os seus ensaios camonianos constituem um dos pontos altos do ensaísmo português, praticado numa escrita que articula magistralmente a argúcia e a erudição e onde se manifesta, por vezes, quer um circunspecto apetite irónico, quer momentos coloquiais que matizam uma imensa erudição. Nela entram, como tónicas, o rigor, a clareza, a sobriedade.
Foi no explosivo Jorge de Sena que começou por apoiar o seu Camões Maneirista, que defendeu na Sala dos Capelos da vetusta Universidade de Coimbra, a contragosto do orientador de tese, que não conseguia sequer imaginar a “figura varonil, heróica e magniloquente de Camões, com a espada numa mão e noutra a pena, a comportar-se com ademanes amaneirados…”
Escreveu Camões n’ “Os Lusíadas” que os prémios é melhor merecê-los sem os ter do que possuí-los sem os merecer. Muito embora Aguiar e Silva sinta esta distinção como o “coroamento de uma longa carreira literária consagrada ao ensino e à investigação na literatura portuguesa e na teoria literária”, e está nisto muito acompanhado, disse ao Sol que trocaria este galardão – sem pestanejar [“isso nem se pergunta!”] – pelo Parnaso de Camões de que fala Diogo do Couto. “Isso seria encontrar o Graal da literatura portuguesa, o seu símbolo sagrado. Temos o testemunho de que era constituído por obra lírica mas também por filosofia.”
Em Camões, com quem tem mantido um trato intimo e permanente (50 anos bem medidos), investiu uma avultada soma de energia. Ouviu-lhe a voz, dialogou com ele, meditou-o, expressou-o, ofereceu-lhe um dicionário – o “Dicionário de Luís de Camões”, publicado pela Caminho em 2011. Ainda nos idos de 70, nas suas “Notas sobre o cânone da lírica camoniana”, ocupa-se do que chama “o mais complexo e mais importante problema textológico de toda a literatura portuguesa – a fixação do cânone da lírica de Camões”, dando especial atenção ao contributo de cancioneiros manuscritos portugueses e espanhóis, pelos quais tem fama de ser um perdido. A sua mão alcançou fontes que serviram a outras indagações camonianas. “O mundo dos manuscritos é um mundo fabuloso – afirma – tem alguma coisa de borguesiano e, por vezes, surpreendentemente, surge um manuscrito valiosíssimo de que não se tinha conhecimento. O Cancioneiro Fernandes Tomás, que durante décadas e décadas esteve sonegado à investigação de quem o queria conhecer, vim a encontrá-lo em cópia na Biblioteca Geral da UC e ninguém sabia da sua existência”.
O Prémio Camões diz ser fundamental ler os textos na sua letra originária, conhecê-los, de modo rigoroso, na sua materialidade: “Os textos vão-se desgastando, há interpolações, contrafacções, roubos. A letra é um elemento fundamental no processo de conhecimento do texto literário, o que é necessário é não ficar prisioneiro do literalismo genológico porque temos de transitar para o campo da hermenêutica para ter uma compreensão aprofundada e sempre nova; um texto é um objecto dinâmico”, acrescentando ainda que, “a partir da escrita, o autor ganhou sobre o texto um direito muito especial, e ficámos a dever isso à Escola de Alexandria, ao alexandrinismo, o berço da filologia europeia.”
A relação de Aguiar e Silva com a obra da figura máxima das letras portuguesas manifesta-se numa espécie de glossário comunicativo onde se contam expressões como: “gosto muito forte” “fascinada admiração”, “fidelidade amorosa”. Alguns dos seus títulos neste campo também não são, a este respeito, propriamente silenciosos: o premiado “Camões: Labirintos e Fascínios” (1994) ou “Jorge de Sena e Camões. Trinta Anos de Amor e Melancolia” (2009).
O seu interesse em Camões distribui-se pela Lírica e pela Épica, unidas no título “A Lira Dourada e a Tuba Canora: novos ensaios camonianos” (2008), que lhe valeu o Prémio D. Diniz da Casa de Mateus, atribuído por um júri do qual fazia parte o camonista Vasco Graça Moura (1942-2014), que o incluiu no rol das suas “musas”, referindo-se à renovação dos estudos camonianos, para a qual Vítor Aguiar e Silva contribuiu. Ambos mantiveram uma cordial polémica centrada num famoso soneto de Camões, “O dia em que eu nasci moura e pereça…”. Se para o Prof. Aguiar e Silva ainda é um problema para reflectir, pois “se não encontro, em estrito rigor filológico, razões que me levem a acreditar que é de Camões, também não tenho motivos muito fortes para dizer que não é”. Graça Moura tinha opinião contrária, porque este soneto lhe dava aquilo que chamou “especial guinada”. “Foi em nome dessa 'guinada', afirmou o nosso premiado, que entraram na lírica camoniana numerosíssimos poemas que não pertencem seguramente a Camões”. E acrescenta: “Manuel Faria e Sousa, o maior estudioso da obra Camões até hoje, quando encontrava um poema que tinha muito mérito e muita qualidade dizia: “só pode ser do meu poeta” [risos], porque sentia a tal guinada de que falava o Graça Moura”. Já no que respeita ao Novo AO sintonizavam. Tanto assim que foi um dos signatários da petição Em Defesa da Língua Portuguesa contra o Novo Acordo Ortográfico, ao lado do autor de “Os Lusíadas para Gente Nova”
O título do seu mais recente livro, "Colheita de Inverno: ensaios de teoria e crítica literárias”, publicado em junho pela Almedina, faz vibrar a melancólica corda camoniana. O autor fala-nos de queda, de invernia, perda.
No retrato do camonista quando jovem verteu-lhe “alguns pingos de melancolia”: um renitente d' “Os Lusíadas”, a estraçalhar oitavas e a colher aridez, algum enfado e nenhum prazer estético. Durante anos o grande Poema foi para si “uma envelhecida, magniloquente e venerável galeria de mitos e heróis”. Se é verdade que Aguiar e Silva durante muito tempo sobrevalorizou a lírica de Camões relativamente à épica, desde há cerca de uma década que passou a ler e a interpretar de modo um pouco diferente a relação entre uma e outra. Foi “um erro de juízo da minha parte”, confessa. Hoje, considera “Os Lusíadas uma obra sem paralelo na literatura portuguesa de todos os tempos. É o livro onde melhor e mais profundamente Camões se exprimiu a si próprio e à sua cosmovisão de português”. E a verdade é que, aos 81 anos, ainda sonha com a possibilidade de editar a epopeia camoniana com um comentário que se aproxime do comentário das edições italianas de Petrarca, Ariosto, Dante, claro, porque “faz-nos falta uma boa edição devidamente comentada d' Os Lusíadas, “esse poema belo – não há que fugir da palavra – que é remédio para as chagas da nossa história.