«O seu pai era um amigo muito querido, e ao desgosto de o termos perdido junta-se o infinito pesar que sempre experimentamos perante o desaparecimento de um grande homem. A minha admiração pela sua obra única nunca cessou de aumentar ao longo dos cinquenta anos que durou a nossa amizade», escrevia Calouste Gulbenkian a Suzanne Lalique-Haviland em 1945, o ano da morte do mestre vidreiro e joalheiro francês René Lalique (n. 1860). Ninguém colecionara as suas joias como Gulbenkian, que em 1912, ano da última exposição de joias organizada por Lalique na sua loja da Place Vendôme de Paris, tinha adquirido já um total de 69 peças do artista. Notava ainda Gulbenkian nessa mesma carta: «Orgulho-me de possuir, creio bem, o maior número de obras suas que ocupam um lugar privilegiado entre as minhas coleções».
Eram na maioria joias, que Gulbenkian não adquiria contudo para uso corrente. Colecionava-as como quem colecionava obras de arte, tinha-as expostas em vitrines na sua residência de Paris. Já na década de 1920, o magnate viria a pedir a Lalique que desenhasse peças de decoração para o seu apartamento na Avenue d’Iéna de Paris. O próprio joalheiro Henri Vever falava à época de um «colecionador entusiasta» das criações de Lalique, um arménio então instalado em Inglaterra «aparentemente possuidor de uma centena delas».
Na produção de joias de Lalique centrou-se uma exposição organizada pela Gulbenkian que data já de 1988-1991. Agora, pela primeira vez em três décadas, o Museu Calouste Gulbenkian volta a dedicar uma grande exposição ao mestre joalheiro francês, desta vez centrada na sua relação com o vidro, matéria-prima que incorporou na joalharia de forma inovadora. «A inovação de Lalique é a utilização do vidro que habitualmente não eram feitas em vidro. E as suas joias que misturam por exemplo prata, pérola barroca e vidro são em si uma inovação total», nota Luísa Sampaio, curadora da exposição René Lalique e a Idade do Vidro, que pode ser visitada até 2 de fevereiro.
«A exposição de há 30 anos era uma exposição que mostrava o melhor de Lalique existente na Coleção Calouste Gulbenkian. Havia um foco sobretudo sobre as joias, as grandes protagonistas dessa exposição. Esta exposição centra-se sobretudo na produção vidreira, na produção industrial de Lalique, mostrando também a fase do vidro artesanal e mostrando como é que nasce o interesse do Lalique pelo vidro, ainda no período Arte Nova quando ele por volta de 1900 decide substituir pedras preciosas por vidro para encontrar transparência».
O processo da descoberta do vidro como matéria-prima que viria a tornar-se fundamental, central, na criação de Lalique, de uma primeira fase de manufatura, ainda no período da Arte Nova, até uma mais tardia em que passou a produzir peças em série, numa fábrica que chegou a empregar 400 trabalhadores, no momento em que se assume como «industrial-criador», é percorrido numa exposição cronologicamente ancorada em dois momentos-chave da arte do século XX: a Exposição Universal de 1900 e a Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas de 1925. René Lalique e a Idade do Vidro contou com a colaboração do Musée Lalique de Wingen-sur-Moder, em França, mas com exceção de duas peças — um cálice e um vaso — tudo o que está em exposição pertence à coleção da fundação.
«Quando um artista encontra algo de belo, deve disponibilizá-lo para que um grande número de pessoas o possa apreciar», disse um dia o artista sobre a passagem da sua produção da manufatura à produção em série. «Ele não é um ourives, essencialmente, é um joalheiro. Era normal que fizesse um cálice todo em prata. Numa primeira fase monta uma peça de prata para introduzir o vidro no cálice e na peça de ourivesaria, até que se liberta das estruturas da prata ou habituais nas joias para se dedicar exclusivamente ao vidro e o vidro exprimir-se sozinho».
É em 1900, explica Luísa Sampaio, que «Lalique descobre que o vidro tem um potencial fantástico pela sua transparência, pela sua maleabilidade, pela sua capacidade de ser esculpido, de certa forma, faz uma joia completamente inovadora, e depois começa a centrar-se nos objetos integralmente feitos em vidro. Primeiro no tal período artesanal, com a tal técnica da cera perdida, que é uma técnica da escultura, e finalmente na fase do vidro industrial, fazendo peças de série — de grande qualidade, mas peças de série».
Além de um vasto número de jóias e de peças de decoração, René Lalique e a Idade do Vidro incorpora ainda outros elementos como mascotes de automóveis ou painéis decorativos, todos eles produzidos em vidro — entre as criações de Lalique num período mais tardio contam-se por exemplo seis fontes de vidro que criou em 1932 para o Rond-Ponit dos Champs-Élysées ou, no ano anterior, os 38 tocheiros de quatro metros de altura que decoravam as paredes da sala de jantar do Normandie da Compagnie Général Transatlantique, então o maior paquete do mundo, além dos 12 monumentais lustres instalados na sua zona central.