Europa, China e EUA depois de Biden

Mesmo havendo a noção de que uma Administração Biden, está mais voltada para a relação transatlântica e para a cooperação multilateral que a Administração Trump, há também a noção que a diversidade de políticas europeias – internas e externas – se reflecte e muito, na atitude em relação à China

por S. Araújo

Num documento da Carnegie Endowment for International Peace (CEIP) de 9 de Julho deste ano (How the Coronavirus Pandemics Shattered Europe’s Illusions of China), Philippe le Corre e Erik Brattberg chamavam a atenção para um esfriamento nas negociações dos governos e nas atitudes dos povos, entre a Europa e a China. E as razões mencionadas para tal esfriamento tinham a ver, para além do circunstancialismo criado pela Pandemia Covid 19, com o declínio da esperança numa China mais liberal económica e politicamente e com reforço na liberdade do mercado interno. Mas bem pelo contrário, com uma escalada do autoritarismo e de repressão dos direitos humanos em Hong-Kong e no interior da própria China.

Os sinais de desconfiança de Bruxelas vinham já de um documento de estratégia, publicado em 12 de Março de 2019, ainda na Presidência de Jean-Claude Juncker[1]. Dentro de um espírito de simpática generalidade notava-se já ali o aflorar de algumas dificuldades e discordâncias. Mas foram a “agressiva diplomacia pandémica, a repressão em Hong-Kong e Xinjiang e a recente guerra comercial com a Austrália, que despertaram a suspeita e a reacção às políticas de Pequim”.

Para além de outros aspectos, e por uma questão de elementar realismo, mesmo havendo a noção de que uma Administração Biden, está mais voltada para a relação transatlântica e para a cooperação multilateral que a Administração Trump, há também a noção que a diversidade de políticas europeias – internas e externas – se reflecte e muito, na atitude em relação à China. E que, por isso mesmo, reconhecendo a importância dos documentos de intenção e as propostas, haverá que, caso a caso, ir vendo as situações e as reacções espectáveis entre os 27 países da União.

O “rascunho” do Projecto da EU, revelado pelo Financial Times na sua edição de 30 de Novembro passado – “A new EU-US Agenda for global change” – traz algumas novidades e sugestões.

É um documento claramente político que assenta na expectativa de um desanuviamento da relação no pós-Trumpismo, atribuindo ao unilateralismo norte-americano uma descoordenação da Aliança euroamericana e um enfraquecimento perante as intenções e pretensões de Pequim.

Refere-se também a uma reintrodução de factor ideológico, pegando nas repetidas referências da candidatura Biden-Harris a uma “Aliança das Democracias” para enfrentar o que será um suposto perigo autocrático – representado pela China, mas também pela Rússia ou pela Turquia de Erdogan. O “unilateralismo” de Trump é apresentado como o principal responsável por um isolamento de políticas que tem que, urgentemente, ser revisto.

Outros aspectos referidos como prioritários são a regulação conjunta do investimento chinês na Europa e nos Estados Unidos, a eventual ameaça chinesa nas tecnologias ligadas ao 5G, uma acção comum no seio da OMC.

Os propósitos parecem claros e, a nova Administração norte-americana, uma ressurreição do Establishment da Costa Leste, com muitos elementos da Administração Obama – e até sobreviventes da Administração Clinton – tem o perfil ideológico funcional para alinhar no Projecto. E aqui será difícil, senão absurdo, que o Partido Republicano, com ou sem Trump, se vá opôr a esta política, dados os alertas que foi repetindo, nos últimos anos, sobre o “perigo chinês”, o “vírus chinês”, a ameaça da China para a segurança dos Estados-Unidos e do Mundo Livre, reacendendo um clima de Guerra-Fria.

Outro aspecto bem diferente é o entendimento entre os 27 desta política: apesar de haver uma clara mudança, a nível popular europeu e americano da percepção da China, o conglomerado de interesses criado, nos últimos trinta anos, entre o Ocidente e a RPC pesa muito. E pesa nos dois sentidos – do investimento euroamericano na China, e na consequente deslocalização, para a China, de muitas indústrias; e do investimento, melhor, da aquisição, por interesses chineses de posições na economia europeia e norte-americana.

Além disso, no decurso de 2021 vai dar-se, na Europa, um acontecimento muito importante, com a saída do governo de Berlim, da chanceler Merkel, depois das eleições legislativas no Outono. E também há incógnitas sobre a formação e composição do próximo governo alemão, num panorama partidário altamente fragmentado, com partidos que vão desde a esquerda radical à direita identitária, e todos com representação parlamentar.

É também muito diversa a posição dos governos e das comunidades empresariais europeias em relação à China. Países, com governos tão ideologicamente diferentes como a Itália, a Hungria, a Sérvia e Portugal, têm importantes investimentos chineses – em bancos, em indústrias, no imobiliário, na saúde. Além disso Pequim criou, não por via de solidariedade ideológica, mas por interpenetração de interesses, importantes apoios, em termos de políticos influentes (muitos deles de partidos conservadores) e também grandes espaços de manobra na comunicação pública. Tudo isto num tempo e num clima político-ideológico que, na China, era diferente.

Haverá áreas – a questão climática, a defesa dos direitos humanos, a protecção das telecomunicações – onde a cooperação Europa-Estados-Unidos, sobretudo numa Administração Biden, não serão difíceis. Mas será muito mais difícil, por exemplo, actuar em áreas como o controle de investimentos em função da segurança nacional. De qualquer modo, com uma Administração filo-atlântica e filo-europeia, será mais difícil, a nível europeu, justificar uma ideal “terceira via” perante o dilema China-Estados-Unidos, sobretudo se se chegar – e está a chegar-se – ao momento das escolhas dilemáticas.

   

[1] Ch. European Comission and HR/VP contribution to the European Council, EU-China a Strategic Outlook