No ano em que a realidade lambeu a ponta dos dedos e apagou as velas da ficção, deixando-a à espera de ganhar coragem e fôlego para regressar aqui, bem mais tarde, e armar-se finalmente em valentona, fabricando à distância a audácia do que gostaria de ter dito, a persuasão e as aberturas dos actos que não lhe ocorreram a tempo. Neste ano que denunciou as ficções como uma forma de vidência retrospectiva, de redenção moral da História por via de transfusões de um sangue calmo, frio, distante, o que se impôs foi a não-ficção, a reportagem que se viu obrigada a reinventar um ânimo e uma inteligência capazes de lidar com o conflito entre o catálogo demencial de todas as presentes formas de negação e os tão premeditados e geniais planos de uma destruição salvífica.
À beira do desastre, e quando o próprio ritmo da multidão que animou a vida das cidades se vê remediado através de uma recomposição digital dos nossos comportamentos e hábitos de consumo, os próprios corpos estão ameaçados de se verem tornados em formas de tédio. É difícil saber com que postura sairemos desta crise, com que vícios iremos reatar os laços sociais depois desta forma de diluição no regime virtual. É difícil saber o que se perde à medida que nos entregamos a avatares cada vez mais difusos, numa sincronia que, ao mesmo tempo que nos liga numa rede, nos isola, e deixa de fora esses aspectos de uma espécie de poesia das relações humanas que se perde na tradução para este regime de sinapses tecnológicas. Assim, num ano em que houve uma aparente interrupção, uma espécie de curto-circuito no modelo da globalização, a literatura respondeu através de uma nova urgência, num mundo em que, por nos sabermos condenados, já só nos restará o consolo de gestos heróicos, sobressaltos homéricos, respirando um ar histórico por nos reconhecermos os últimos habitantes de um reino confinado ao regime do espectáculo. E se a ficção entre nós se vê cada vez mais reduzida a um âmbito doméstico e quase sentimental, foi a não-ficção que assumiu a dianteira nos processos de interrogação de tudo aquilo que se suspendeu, de uma crise que veio recordar-nos que não estamos imunes aos desequilíbrios ambientais que provocamos. Na verdade, é possível que sejamos, hoje, vulneráveis de formas que nem imaginamos, e, talvez por isso, num momento em que o ruído era o próprio clamor de uma forma de incerteza e desintegração, este ano, a par da explosão dos serviços de streaming, enquanto os cinemas e os teatros ficaram vazios, a aposta nas séries e filmes de gigantes que se travaram numa feroz competição pela produção de conteúdos de audiovisual, levou a que as aventuras que hoje desbravam novos territórios no campo da ficção sejam levadas a cabo por estas grandes produções televisivas, enquanto os livros foram devorando o espaço das nossas casas, traçando diagnósticos num regime mais indisciplinado. E a primazia tem ido para os géneros exploratórios da não-ficção, com o ensaio a assumir preponderância indo além de uma apresentação esgazeada de meros factos, elaborando conjecturas, historietas e teorias fascinantes para nos lembrar que, antes mesmo dos desafios e crises existenciais que enfrentamos, impõe-se o desafio de entender como a era da informação desencadeou, na verdade, uma era da confusão, um ambiente em que o pânico surge dissimulado, disseminando o género mais baixo das ficções, que são as teses paranoicas, as teorias da conspiração, corroendo a própria confiança nesse regime das verdades tidas por autoevidentes, e que constituíam um chão comum.
Assim, este ano a edição foi decisiva sobretudo na forma como respondeu à crise de cultura e da imaginação que está subjacente a tudo isto, à nossa própria capacidade de integrar o novo conhecimento em múltiplas disciplinas, sejam científicas ou históricas, com o movimento das coisas, e, neste ambiente, merecem destaque apostas corajosas como a da Elsinore ao editar “Pegadas: Em Busca dos Fósseis Futuros”, de David Farrier, que explora a catástrofe das alterações climáticas numa poderosa reflexão que suspende o regime temporal a que estamos aprisionados, pensando em termos de horas, dias ou semanas, para simular um olhar retrospectivo a partir de um futuro distante, forçando-nos a encarar a nossa civilização pelos vestígios que deixará, esse legado – seja ele feito de estradas, cidades ou apenas de todo o lixo que decorará um mundo atravessado pelo arrepio dos silêncios ecoando em ecossistemas colapsados – que perdurará por centenas de milhares ou, até, centenas de milhões de anos. E isto num audacioso exercício literário que nos ajuda a superar a negação e até o luto, através de um olhar prospetivo e terapêutico em que este professor de literatura e especialista em questões ambientais nos instiga “a conjurar-nos a nós próprios como fantasmas que assombrarão um futuro muito longínquo”.
Outro livro que merece destaque neste plano é “A Era do Capitalismo da Vigilância”, da socióloga norte-americana Shoshana Zuboff, um monumental estudo sobre os chamados “mercados de futuros comportamentais”, livro que acaba de sair com o selo da Relógio D’Água, e que assume uma preponderância decisiva no final de um ano em que ficou claro como se está a configurar um regime de “exílio digital”, com as grandes empresas tecnológicas a assumirem, face ao futuro, um poder inaudito na conformação desse horizonte, havendo o perigo de que “a colmeia totalmente interconectada e controlada, que nos seduz com uma vida fácil e consumidora”, promova “um arquitecto digital omnipresente que opera em função dos interesses do capitalismo da vigilância”. Também esta obra insiste que a história não tem fim, e que cabe a cada nova geração criar as suas defesas e impor a sua vontade face a novas ameaças, e que a esperança está no reforço da imaginação face a estes “novos territórios de ansiedade, perigo e violência”.
Sem sairmos do campo do ensaio, num ano em que outros géneros minoritários, como a poesia, nem com raras e fortuitas excepções conseguiram fazer algo que não seja marcar passo, outra edição que ataca de frente essa forma de desespero e impotência que acompanha a “transição da crença para a estética, do envolvimento para a condição do espectador”, é “Realismo Capitalista”, de Mark Fisher, que marca a estreia no nosso país de um dos mais inspirados críticos da cultura nas suas afecções contemporâneas, e que tendo-se debatido com a depressão, denunciou a forma como o capitalismo tardio, ao colonizar as nossas aspirações e anseios, produz culpa e uma série de perturbações psiquiátricas, num “flagelo invisível” que não é apenas um dos efeitos secundários deste regime, mas é central ao fortalecimento deste sistema social, o qual se alimenta dos humores das populações ao mesmo tempo que os reproduz, pois “sem delírio e confiança, o capital não poderia funcionar”.
Por último, nenhum balanço sobre a edição literária pode passar ao lado de “O Infinito num Junco”, de Irene Vallejo, editado entre nós pela Bertrand. Em si mesmo um balanço da própria cultura literária e uma investigação da invenção do livro, remetendo-nos às origens da literatura ainda enquanto tradição oral e, depois, no desenvolvimento dos alfabetos escritos e da epopeia audaciosa que levou à criação da Biblioteca de Alexandria, este livro que foi a grande sensação literária do ano em Espanha, esgotou já uma primeira edição em Portugal, sendo uma obra imensamente empolgante, que nos liga a um caminho que se ramifica entre épocas e mundos imaginários, nessa forma de fugir de casa fechando-se à chave, rodeando-se de exíguas gaiolas, enquanto composições para o nosso instrumento interior são gravadas por sombras de aves de um radiante exotismo, numa instrução que devolve o ânimo ao “pássaro corrompido pelo quotidiano”. E isto em fértil vadiagem pelas áleas e esconsos onde a história do livro é como um sopro ligando-nos a tradições de fascínio, porque, como nos diz Antonio Basanta numa das epígrafes do livro, “ler, mesmo sendo um acto comummente sedentário, devolve-nos à nossa condição de nómadas”.
Neste livro, Vallejo visita e conjuga presenças reais sob nomes quase apagados, anónimos, vozes frágeis ao lado de outras imortais, a vida que entra pela morte ainda entregue a uma peleja insana, carregando o rumor dessas verdades que vão enlouquecendo e se conjugam no murmúrio sem fim de todas as nossas sombras nesse limiar onde o silêncio é a pele que segura tantas inquietações, os universos sonhados por cada civilização, livros que, mesmo se quase esquecidos, zombam da pouquíssima razão a que se aferra a realidade, depois de sonhos tão mais ambiciosos. Na verdade, ela sabe o que fez. Sabe-o melhor que ninguém. E atreve-se a uma profecia ao terminar o seu livro, aguardando que a luz atravesse esse seu inquietante monumento traduzindo-o num espantoso carnaval de formas que ganham vida e cumprem um extraordinário ritual ao longo das horas do dia e da noite: “Esta é a história de um romance em coro ainda por escrever. O relato de uma fabulosa aventura colectiva, a paixão calada de tantos seres humanos unidos por esta misteriosa lealdade: narradoras orais, inventores, escribas, iluminadores, bibliotecárias, tradutores, livreiras, vendedores ambulantes, professoras, sábios, espias, rebeldes, viajantes, freiras, escravos, aventureiras, impressores.”
Este ano fica marcado também por outro sinal encorajador, o aparecimento da Bazarov, editora que já não nos deixaria de mãos vazias nem sem cânticos de feiticeiros modernos, ao lançar-se de forma temerária, com uma ambição desmedida, naquela tradição de altanaria anímica que caracterizou em tempos o próprio regime da edição, e consegue-o nessa trôpega simetria entre o negro e o branco, livros que, pelo seu despojamento, lembram sebentas, traduções que nos surgem como notícias de um lá fora que costuma passar-nos ao lado, cadernos de notas explorando de forma ousada os regimes da ficção literária e do ensaio. E a entrada deste rompante catálogo em cena cruza-se com a má notícia no que respeita à troca da vida por palavras que foi o desaparecimento da Cotovia, editora que vinha já definhando desde os últimos anos de vida do seu editor, André Fernandes Jorge, e que conseguiu apesar de tudo arrancar um bom punhado de penas ao seu canto de cisne, fazendo esquecer apostas meio descabeladas e tontas, com a publicação de uma excelente tradução da “Eneida”, de Virgílio, que é o fruto de um trabalho desenvolvido ao longo de anos e que coroa uma vida de dedicação à aprendizagem e ao ensino das línguas e literaturas clássicas por parte do professor Carlos Ascenso André.
Se a crise pandémica determinou uma desaceleração do regime desaustinado da edição no nosso país, fiel à sua soberania que a faz sobreviver com a sua alma arcaica, a Sistema Solar prosseguiu o seu ritmo regular e exigente de publicação, alheia às velocidades e ritmos que a envolvem mas que não afectam a sua percepção de um tempo mais longo, de uma capacidade de reflexão mais séria e, por isso, mais formativa de um público leitor apaixonado, com a cuidadosa e sensível atenção gráfica de Manuel Rosa, e sob inspiração da odisseia particular desse tradutor-poeta que é Aníbal Fernandes, vem-se erguendo uma das mais obstinadas colecções literárias da nossa edição, onde entram os melhores criadores de histórias, sobretudo de língua francesa, e outras tantas explorações que abdicam da falsa sinalização dos géneros, revirando ou combinando-os, numa atitude que exprime idealmente o próprio fulgor mais desinibido das realmente audazes explorações literárias.
Por outro lado, a suspensão do regime dos festivais e encontros literários, dessas manifestações de uma temporalidade artificiosa que vai promovendo os escritores como mestres de cerimónia, levou este ano as editoras a adiarem essas apostam que dependem essencialmente da rede de apoios institucionais e públicos para fazerem vingar uma certa ideia de cultura que desfila num extremo frenesi e, assim, procura mascarar a radical fragilidade da nossa vida literária e, mais propriamente, o fracasso da ficção em romper com essa ficção menor que domina tudo e que é a da feira das vaidades literárias. O sentimento dominante é o de que a vida do romance há muito foi confinada a uma remastigação de cansadas noções sobre o que deve e pode o romance, de tal modo que a obra dos nossos ficcionistas é, sobretudo, feita do descaro dessas manobras auto-publicitárias, numa agenda preenchida de eventos que faz deles os últimos saqueadores do prestígio da cultura literária. A este respeito, vale a pena recordar as palavras de Artur Portela Filho, desaparecido este ano, vítima da peste que nos assola, um genial provocador que se apagou num soluço, sem especiais honras, e isto depois de ter sido um dos últimos dos últimos, audaz cronista como hoje não nos resta um só, e que denunciava há meio século a ridicularia em que caiu esta “feira das vaidades”. Leia-se, por exemplo, uma crónica com o título “A inevitabilidade do êxito”, em que nos dizia como ficou “difícil escrever um livro medíocre” por cá, como falhar em literatura se tornou “um gesto de pura rebeldia”. Mais, ia ao ponto de afirmar que nas condições actuais, diante de um público obedientemente entusiástico e atento, receptivo a uma literatura que funciona dentro de normas fixas, em que o êxito é a única saída, apresentar “um romance péssimo é um acto de terrorismo”.
Ainda dizia mais nessa crónica, dizia que o público se tornou o álibi do escritor: “É a lotação esgotada, a segunda edição, o ‘best-seller’, o outro lado da montra. É causa e efeito. O princípio e o fim.” E isto não obsta a que reconheça que “o público é uma minoria”. Hoje ninguém é um simples leitor. Esses estão desmoralizados, não se interessam assim tanto pela reinação contemporânea. Sabe como a maioria dos escritores que vendem foram convertidos em “técnicos de autopublicidade”. Por outro lado, o público que se move dentro das coordenadas que lhe foram estabelecidas, esse que segue as indicações publicitárias, tornou-se traiçoeiro. Assim, como nos diz Portela Filho, um ‘best-seller’ já não é uma aclamação. Pode mesmo “ser uma sinistra ironia”. “É unanimidade mas no sentido oposto. Pode ser uma vaia, um apupo, uma chufa.” E o escritor sabe os riscos que corre a partir do momento em que se deixa estigmatizar com o selo de mediocridade, participando numa competição em que o êxito está assegurado, e que passa, assim, a desenrolar-se em torno da quantidade de êxito. Pois já não basta aparecer muito, ser visto, dar entrevistas constantemente, é preciso invadir os espaços, submergi-los com a sua intimidade, conquistar o território aos demais, e entre todo o ruído, estando atento a todas as vagas, mobilizações de última hora, tendências ao minuto, recebendo avisos de uma meteorologia enervante, essa que segue as ansiedades daqueles que vagam com um entusiasmo feroz na direcção que se lhes apontar. E depois há o disparate do arsenal à disposição daqueles que estejam dispostos a ir sempre mais longe, tornando-se o centro das atenções seja por que subterfúgio for. Desconfiados de tudo, de todos, começando pelo público, que os adula numa hora para abandoná-los na seguinte.
Estamos muito longe daquela geração a quem Eduardo Lourenço chamou os filhos de Álvaro de Campos, a milhas dessa prosa que se renovava e se mostrava sã até pela forma como não hesitava em mostrar-se “provocantemente anacrónica”, impondo a sua inconformidade radical face ao farisaísmo da cultura, “com lentidão, mas com constância”. Não se vê em nenhum dos prosadores tão insistentemente premiados e celebrados hoje, em nenhum desses que passam por novos, aquela fecundidade ameaçadora, não se vê sequer um desejo de transgressão nestes que são exaltados num plano que, para se impor, exige o apagamento e a ignorância do que fizeram outros faz décadas, de como nutriram a invenção e o espírito, traçando uma via de insubordinação, uma “desordem profunda da ordem sacrossanta”, obrigando a realidade e a sua representação a um confronto doloroso, a que um olhar impiedoso assentasse sobre as coisas e a época e redimensionasse tudo, pondo a descoberto o regime dos interesses que sempre se impõem e perpetuam, subornando tudo e todos. Não se veem nem sinais já daquela imaginação e sensibilidade profundas de gerações sucessivas impregnando-se do vocabulário, da melancolia destruidora, do tumulto, da raiva lúcida”, anulando “a ficção de pesadelo da ‘Ordem Moral’, e relegando-a, mais que ao plano da contradição, ao da sobrevivência”. Não nos lembramos da última vez em que nos foi dado, através do mundo sonhado pelas nossas letras, sentirmo-nos restituídos nessa rutura decisiva com as convenções e as ideias feitas que nos dê a impressão de que “ali somos vivos e livres”.
A nossa literatura de ficção tornou-se outro obstáculo, um desfile de cadáveres vivos que se enaltecem usando todas as joias de família, ajudando à circulação da peste, dessa falsa sublimidade que nos encerra num regime de ecos cada vez mais fracos, numa representação cada vez mais degradada do mundo e incapaz de contestar seja o que for. No fundo, este plano ficcional acompanha o regime geral de um realismo assoberbado pela informação, essa veiculada de forma a causar choque e pavor, desfazendo todos os impulsos, um regime que, sujeito “à frequência e à desrealização empacotada da exposição mediática, nos deixa apáticos ou rapidamente desmemoriados” (Steiner), incapazes de opor qualquer resistência, sequer de imaginar uma alternativa e de lutar por ela. Ficam apenas as cinzas dos velhos ideais ou valores, o cheiro desolador das utopias vencidas misturadas com estatísticas geladas e inexpressivas que procuram convencer-nos de que não há saída. Que isto é o melhor que conseguimos. Trata-se de uma capitulação da capacidade de invenção literária como forma de propor novos mundos e um desmentido e uma admoestação contra todos aqueles que ousem servir-se dela como de uma salvaguarda contra o vazio, contra esta vitimização absoluta que é sentirmo-nos lançados para um ponto exterior e impotente face às notícias das primeiras páginas dos nossos jornais, “como se nós mesmos não existíssemos senão como espectadores” (Lourenço).
Nisto, aos poucos, damo-nos conta de que as condições de fantasia são, hoje, estritamente racionadas. Desaconselha-se toda a implicação política da arte, que simplesmente volta costas a essas percepções angustiantes, abandonando as ficções que nos chamam de estúpidos, que se riem e zombam dessa ordem que deixámos que abusasse de nós. Esses textos que instigam um desejo de ser expulso do mundo, um convite a inventar outra coisa, pôr-se à margem, dando-se liberdade para explorar a poderosa obscuridade, nutrindo aquela forma de arrojo e esperança que motivou Walter Benjamin a escrever o que escreveu, acreditando que nenhum grande texto se perde precisamente porque espera, e pode esperar ainda que mil anos. Às vezes, encontramo-los já num tal grau de exasperação, que sentimos que são os próprios textos que batem palmas a quem os escreveu e isso vai dando – tem de dar – para o gasto, ou para compensá-los face ao desgosto em cerco.
Como notou Steiner, “a censura do mercado sobre aquilo que é difícil e inovador, que é intelectual e esteticamente exigente consegue ser muitas vezes mais eficaz do que a exercida pela repressão política”. Por isso vivemos, de algum tempo a esta parte, imersos numa imensa noite reacionária, essa que consome todos os sóis porque nenhum deles representa o nascer de um novo dia, uma noite em que são olhadas com a maior desconfiança aquelas zonas de fronteira mestiças que a arte e a literatura exploravam de forma insaciável noutras décadas – territórios que assustam, que geram uma indisposição ou mesmo uma indigestão brutal das noções e leis que nos regem, revirando tudo. “O pensamento puro, a compulsão analítica, a libido sciendi que conduzem a consciência e a reflexão à abstracção, à solidão e à heresia”, estão dados, nos nossos dias como “cancros do espírito”, diz-nos Steiner.
O filósofo iraniano Ramin Jahanbegloo, na introdução às suas “Quatro Entrevistas com George Steiner”, reeditado recentemente pela VS Editor, diz-nos que, hoje, “somos invadidos por uma quebra do ímpeto democrático que dá lugar a uma espécie de indiferença e de deixa andar cívico, em que as paradas do espaço público são reduzidas ao cinismo dos interesses e das ambições individuais”. E liga isto à expansão incontrolável “de uma indústria cultural omnipresente, reduzindo os valores espirituais das grandes obras de arte e das construções filosóficas a uma sucata embalada no vácuo e vendida nos grandes centros comerciais”.
Jahanbegloo defende ainda que “à falta de um itinerário de fidelidade, de exigência e de exemplaridade que se expresse numa longa busca interior, os criadores de hoje, não se proíbem de nenhuma mentira, nem de algo aproximado, para fazerem da sua criação um tema do espectáculo mediático da nossa sociedade”.
A única coisa que vai superando esta forma de censura são esses textos fingidos, elegantemente afáveis e até corteses, mas também impregnados de um travo de veneno, de um certo fulgor satírico, esses passam discretamente entre os cadáveres que de tão perfumados tossicam os seus frágeis enredos, variações da história da carochinha, muito ao agrado de um público que, de resto, gosta cada vez menos de ler, e detesta sentir-se em esforço, quando não mesmo humilhado, posto em causa, forçado a ler o seu próprio desentendimento das coisas. O que há mais são escribas celerados, celebrados pelo seu dom incontinente. O problema é que as ficções não podem ser entendidas como um mero entretenimento. Não nos convençamos de que é possível irmos muito longe sem as ficções.
“O discurso humano não pode sobreviver sem a falsidade”, diz-nos Steiner. “Poderá, inclusive, ter derivado das necessidades da ficção, das múltiplas necessidades de ‘dizer o que não existe’ (na expressão lapidar de Swift). Os nossos conjuntivos, os nossos condicionais, os nossos optativos, os ‘se’ das nossas gramáticas possibilitam uma contrafactualidade indispensável e radicalmente humana. Permitem-nos alterar, remodelar, efabular, cancelar os constrangimentos materiais do nosso mundo empírico-biológico. São os sonhos despertos que libertam a consciência, que nos permitem exprimir por palavras o tempo atmosférico na manhã da segunda-feira depois do nosso funeral. Por isso, todos os tempos futuros, mas também as articulações da memória, desencadeiam o génio ficcional da gramática.”
Este genial mestre de leitura insiste que “a esperança é a gramática”, e que o próprio “mistério da futuridade ou liberdade (estando ambas intimamente ligadas) é sintáctico”. Também Silvina Rodrigues Lopes defende que se lemos é “porque procuramos através do que lemos aquela inflexão das palavras, aquele desvio da sintaxe, aquele brilho das imagens que nos liga aos outros naquilo em que com eles não fazemos comunidade, que nos situa num mundo como partilha de sentido”. Para a Catedrática de Estudos Portugueses da Universidade Nova, se lemos é “porque temos confiança na magia das palavras, na sua capacidade de permitir o encontro, de agir deslocando-nos do deserto que seria a informação transparente e imediata para a obscuridade em que cada coisa pode ter o peso da sua sombra”.
Os textos que nos fazem estremecer à medida que “desfazem o senso comum”, e realizam essa espécie de milagre que é “o desaparecimento do mundo já feito”, instauram a possibilidade de algo novo, algo de inesperado. Sentimos que os próprios pensamentos, as imagens nos atravessam, e estamos assim perante um estilo forte, uma pele que exibe cicatrizes mais profundas, as que resultam desses confrontos decisivos e cheios de consequências. Como defendeu Rilke, “as obras de arte são sempre o resultado de um perigo enfrentado, de uma experiência levada até ao fim, até onde não é possível para ninguém ir mais longe. Quanto mais longe se vai, mais o vivido se torna singular, pessoal, único, e a obra de arte é afinal a expressão necessária, irreprimível, tão definitiva quanto possível dessa singularidade”.
Sabemos que estamos diante de um texto que superou as restrições desse realismo carcerário e do mediatismo dilacerante que nos cerca a partir do momento em que sentimos que as palavras nele se organizam numa liberdade que rompe com essas associações falsas e resistentes com que esta noite reacionária busca capturar-nos num estado de sonambulismo constante. Assim, a possibilidade de dizer tudo, essa prática literária que, em vez de exaltar a liberdade de expressão, a realiza de uma forma que nos sobressalta, leva a que o ar ali se respire com uma pureza que magoa os pulmões; habituados como estamos ao regime de um ar condicionado, através desse texto os pensamentos do autor respiram connosco, e as frases ou os versos são sentidos de forma carnal, afectam-nos fisicamente. Beliscam-nos. Sentimos o seu ritmo como um vírus informático que nos desliga daquela “cadeia de representação” que estabelece de forma insistente uma rede de nexos, a qual nos amesquinha e apouca; cláusulas e proibições que estão constantemente a proceder a uma despromoção (“downgrade”) da condição humana. Ora, os textos literários relembram-nos daquilo que “na liberdade funda a sua própria necessidade”, e no exercício desta liberdade necessária podemos reganhar a confiança nos nossos poderes de leitura, ler mais fundo, adquirir através das palavras e dos ritmos essa capacidade de dizer o nosso tempo, “o tempo como tempo de mudança”. Mas se os textos que lemos apenas nos deprimem, é natural que não tenhamos a menor confiança na nossa capacidade de alterar o rumo das coisas. Como nos diz Silvina Rodrigues Lopes, “se hoje em dia folheamos apressadamente grande parte dos livros, revistas e jornais a que temos acesso, é porque parece que tudo aquilo que contam já tinha sido previsto ou já tinha acontecido, pois cada vez mais prever e acontecer parecem reversibilizar-se”.
“É tão plana uma imortalidade do presente!”, vinca Steiner, lembrando que “são as instrumentalidades do imaginário, do indemonstrável (o poético), são as potencialidades da ficção (mentiras) e os saltos sintácticos para um eterno amanhã que fizeram do homem e da mulher seres tagarelas, coscuvilheiros, poetas, metafísicos, planeadores, profetas e rebeldes contra a morte.” A este respeito, face a este presente perpétuo que nos condena a assistir à realidade como a um filme, sem força anímica para contrariar a degradação do mundo, sofrendo a aproximação do abismo sem nada podermos fazer, este exílio a que nos condenámos aceitando que a condição humana seja reduzida à segurança material esvaziada de toda a interioridade, só nos resta reconhecer que a função de agitador e insone moral entre os homens se tornou, não só a maior honra possível, como diz Steiner, mas a última forma de resistência que nos resta.