Abro o livro grosso à procura de uma passagem específica. Seria quase assombroso que a página aberta ao acaso, em perto de 600 possíveis, se revelasse a pretendida. Mas isso não acontece. Navego ao sabor da intuição, leio uma frase aqui e outra ali, até que ao fim de cinco minutos encontro o que procurava.
«Deve ter sido uma situação interna muito complexa, porque Ocampo não assistiu à sessão solene, talvez pela fácil solução de Espitia e pelas nossas excelentes classificações. E afinal pelos meus resultados pessoais, que me mereceram como prémio especial um livro inesquecível: Vidas dos Filósofos Ilustres, de Diógenes Laércio».
O livro que tenho aberto nas mãos e do qual transcrevo estas palavras é também ele inesquecível: Viver para contá-la, a autobiografia do colombiano Gabriel García Márquez.
Devo confessar que estava à espera que a referência a Diógenes Laércio fosse um pouco mais longa e desenvolvida, porventura enumerando alguns dos méritos da sua obra. Mas o facto é que esse simples adjetivo bastou para que desde então eu não sossegasse enquanto não tivesse na minha biblioteca aquele «livro inesquecível».
Como é evidente não foi fácil, e demorou o seu tempo. Nas livrarias comuns, onde mesmo um livro publicado há um ano ou dois anos já é considerado uma relíquia, não existem edições dos clássicos à espera que um especialista qualquer, ou um maluquinho (o meu caso), se lembre de um momento para o outro que precisa absolutamente de uma obra escrita há quase dois mil anos. E mesmo nas minhas incursões em alfarrabistas não me lembro de alguma vez me ter deparado com um exemplar deste clássico grego.
Mas havia um sítio onde talvez o encontrasse. E assim, num fim de semana há mais de dez anos, dirigi-me para a Rua Duque de Palmela com uma ‘fezada’ especial. Na secção própria da livraria Buchholz, lá estava ele à minha espera:Diogenes Laertius – Lives of Eminent Philosophers, em dois volumes de capa verde. Não eram baratos, nem podiam ser: tratava-se da melhor edição possível, a da Loeb Classical Library, com a chancela da Universidade de Harvard.
As vidas dos filósofos – ora aí está, sempre me pareceu, uma boa porta de entrada para a história da filosofia. Os factos concretos e as curiosidades biográficas dos grandes homens ajudam a tornar mais acessíveis as suas ideias e pensamentos.
Nos anos que transcorreram desde esse sábado de boa memória, já tirei o primeiro volume da estante por um par de vezes. Mas acabei sempre por voltar a arrumá-lo. Porquê?
Pensando sobre o assunto, consegui identificar o motivo: foi o facto de se tratar de uma edição bilingue que fez com que nunca levasse a leitura por diante. Haver uma página em cada duas que não consigo ler (as páginas pares são em grego, as ímpares em inglês) é para mim uma verdadeira ‘pedra no sapato’. Parecerá uma estupidez – e é! – mas quando pego num livro tenho de o ler do princípio ao fim, incluindo notas, bibliografia e tudo.
Também isto, por muito absurdo que pareça, tem a sua razão de ser. Descobri-a há pouco tempo, quando um primo me contou que usava com os filhos o mesmo truque para encorajar a leitura que os meus pais usavam comigo. Confessei-lhe que já não me lembrava que truque era esse. «Só lhes compro um livro novo quando tiverem terminado o que estão a ler», recordou. Calculo que seja por isso que, tantos anos depois, ainda não li as Vidas dos Filósofos Ilustres. Não consigo simplesmente ignorar notas de rodapé ou saltar páginas. Mesmo que sejam em grego. Se o fizesse, sentiria que ficava a dever alguma coisa a alguém – quem sabe, a mim próprio.