Já não sei já há quanto tempo li A Sombra do Vento e, confesso, grande parte da história varreu-se-me da memória. Mas recordo-me bem da sensação de encantamento com que os meus olhos percorriam cada página. Não fui o único: Carlos Ruiz Zafón era o autor de língua espanhola mais lido em todo o mundo.
Mais ainda do que o enredo – apesar de empolgante e bem montado – penso que era a sua capacidade exímia para criar ambientes que verdadeiramente apaixonava o leitor. Conseguia transportar-nos, aparentemente sem esforço, para o interior de uma mansão faustosa, para a nave de uma igreja decrépita, para a mesa de um café barulhento, para uma rua muito antiga do Bairro Gótico de Barcelona. E recompensava-nos com frases mágicas e ideias que eram verdadeiros achados. Como esta, que o Senhor Sempere diz ao seu filho Daniel: «Cada livro, cada tomo que vês, tem uma alma. A alma de quem o escreveu e a alma daqueles que o leram e viveram e sonharam com ele».
Há quem acredite que é preferível não conhecermos pessoalmente os nossos heróis para que eles nunca deixem de o ser. Há cerca de quatro anos, quando tive a oportunidade de entrevistar Zafón em Lisboa, obviamente ignorei essa máxima. Preferi correr o risco. E, de facto, achei-o completamente diferente de como o imaginava – mostrou uma atitude profissional, pragmática e uma visão pouco romântica do ofício da escrita.
Porém, ao abrir o livro que acabara de ser publicado na altura, logo o encantamento se produzia de novo. Olhando para este excerto de O Labirinto dos Espíritos, não é difícil perceber porquê: «Começava a andar, mas lembro-me de que me pesava a roupa, os sapatos e até a pele. Cada passo que dava exigia mais esforço que o anterior. Ao chegar às Ramblas, notava que a cidade ficara suspensa num instante infinito. As pessoas tinham detido o passo e pareciam congeladas como figuras numa velha fotografia. Um pombo que levantava voo desenhava apenas o esboço esborratado de um bater de asas. Grãos de pólen flutuavam no ar como luz em pó». É como pintar com palavras.
A morte de Zafón em junho passado apanhou-me completamente de surpresa e foi das que mais me tocaram neste ano rico em infortúnios. Não apenas por tê-lo conhecido, mas sobretudo pela sua juventude (deixou-nos aos 55 anos) e por ser um grande escritor pelo qual era difícil não sentir uma enorme admiração, empatia e uma pontinha de inveja.
Ele era capaz de emprestar aos seus livros (mesmo que à custa de muito labor e artifício, como vim a descobrir) uma aura de magia e de inocência que pensávamos ultrapassadas ou mesmo impossíveis num tempo de cinismo e de desencanto.
Felizmente, conseguiu completar a série d’O Cemitério dos Livros Esquecidos. Os seus nunca o serão.