Um dia destes, num concurso televisivo qualquer, uma cantora que dá pelo nome de Áurea surgiu com um decote bastante revelador. Os atributos físicos da jovem foram objeto de muitos comentários, e num blogue foi publicado um vídeo humorístico onde aparecia o decote da cantora em grande plano – mas, subitamente, na abertura da camisa surgia a espreitar… Pedro Abrunhosa.
Assim, na sessão seguinte do programa, Áurea surgiu com uma blusa rigorosamente fechada mas vestindo uma sugestiva minissaia. Então, o cantor António Zambujo, júri do mesmo concurso, fez um comentário bem-humorado: «O Pedro Abrunhosa a semana passada saiu por cima, esta semana sai por baixo».
O que Zambujo foi dizer! Logo se levantou um gigantesco coro de protestos! Choveram as inevitáveis acusações de ‘machismo’ e outras piores. Perante este ataque, vendo-se acossado por vários lados, António Zambujo acabou por se confessar arrependido da piada que dissera.
Este episódio é um bom exemplo dos tempos hipócritas que vivemos. As redes sociais estão cheias de insultos, de palavrões, de ódio, o espaço público está cheio de ‘obras’ brejeiras (vejam-se as cantigas de Quim Barreiros com expressões como «o bacalhau quer alho» ou «mete o carro, tira o carro na garagem da vizinha»), as livrarias expõem nas montras títulos tão eruditos como Para Cima de P…, mas de repente toda a gente se sente escandalizada com uma observação picante mas absolutamente inocente, e até com graça.
Enquanto a maior parte dos comentários que circulam na net são simplesmente ordinários, de mau gosto, revelando pessoas com maus fígados, o comentário de Zambujo era bem aplicado à situação e revelava um certo humor. Acredito, de resto, que Áurea não se tenha sentido ofendida. E Abrunhosa ainda menos.
Mas a ‘malta’ não perdoou a Zambujo. Porquê? Porque hoje pode fazer-se tudo, pode dizer-se tudo, pode chamar-se «palhaço» ao Presidente da República, só não se pode dizer algo que de perto ou de longe fira o ‘politicamente correto’. Aí, fica o caldo entornado! A frase que soe a piropo, a graça que sublinhe os atributos femininos, é imediatamente catalogada de ‘machista’ e julgada em tribunal popular. As pessoas vigiam-se, policiam-se, denunciam-se, apontam o dedo aos ‘hereges’ que não cumprem os códigos, que desafiam a cartilha.
As redes sociais são hoje no espaço virtual o equivalente às multidões no espaço real: atuam cegamente, implacavelmente, e ai de quem lhes caia nas mãos. Lá se realizam julgamentos populares. Os linchamentos que dantes se faziam na rua fazem-se agora nas redes sociais. O mal é mundial. Vimos atores com a carreira interrompida, expulsos dos estúdios, execrados, massacrados, por episódios ocorridos há 20 ou 30 anos. Que terrível mundo este!
Vicente Jorge Silva criou uma expressão que levantou grande polémica na época mas que ficou: ‘Geração Rasca’. Ora, essa geração tomou conta do país, hoje está em todo o lado, impõe as suas regras, tem os seus vícios privados mas exibe públicas virtudes, indigna-se com observações sem maldade mas não tem pejo em destruir pessoas na praça pública. Tritura-as, magoa-as, fere-as. Mostra-se impiedosa na denúncia dos comportamentos ‘inconvenientes’.
São tempos cínicos, hipócritas, doentios, safados, aqueles que vivemos.
E talvez o pior de tudo é que muitas vezes os atingidos, em vez de reagirem, em vez de denunciarem a hipocrisia, de se indignarem, vêm fazer ato de contrição, dizer que não deviam ter dito o que disseram. Vêm cheios de medo dizer-se arrependidos, vêm pedir desculpa aos ‘ofendidos’ e a todos os que se afirmaram ‘chocados’ com as suas ‘horríveis’ observações. E com isso fortalecem os polícias que enxameiam as redes sociais. Dão-lhes força.
Para a próxima, eles farão pior. E os Zambujos desta vida, cheios de medo, pensarão maduramente antes de falarem, só abrirão a boca depois de pensarem dez vezes, deixarão de lado toda a espontaneidade, evitarão um piropo inocente ou uma graça picante com medo de caírem sob a alçada dos censores.
Não sei como será o futuro com esta gente.