Costuma dizer-se para não se julgar um livro pela capa mas neste caso concreto, como aliás na maioria das suas obras, não se pode mesmo julgar o livro pela capa, que é uma autêntica surpresa…
O ‘Felicidade’?
Sim…
É e não é… A capa é um segredo 100% difícil. Há lá uma pessoa que trabalha para a Penguin, que é o Gito Lima, que faz as capas dos livros e já temos uma relação de alguns anos e ele consegue arranjar sempre uma solução engraçada para uma coisa impossível. O livro já estava escrito desde 2018, portanto, o ‘Felicidade’ foi um acaso, estamos em tempos tão difíceis e depois há um livro chamado ‘Felicidade’, não foi de propósito. Mas, por acaso, acho que a capa reflete um bocadinho o livro, na medida em que as personagens estão lá: está lá a Felicidade, está lá o narrador, está o carro…
O ‘Felicidade’ tem alguma coisa a ver com aquele romance inacabado que estava numa pastinha de computador?
Não, não. Por acaso este foi um daqueles livros que comecei a escrever e que sabia que ia correr bem. Não sei, é uma sensação estranha que não costumo ter, provavelmente tenho aquela sensação de não sei para onde é que isto vai e alguma insegurança, mas neste senti que a coisa ia correr bem. Normalmente, quando as ideias me surgem, muitas são ideias que são boas enquanto ideias, mas depois não têm amplitude suficiente para dar uma história, mas isso só sei quando começo a escrever. Eu sou um advogado de acusação bastante rígido das minhas próprias ideias, ou seja, quando elas surgem eu começo a ver todos os problemas que elas podem ter e depois há umas que sobrevivem a este escrutínio e são essas que acabam por resultar em livros. A ideia para este romance já andava comigo há muito tempo e eu andei a elaborar e a tentar perceber como podia contar esta história.
Imagina uma história que depois acaba por desenrolar-se sozinha quando inicia o processo de escrita? Ou isso raramente acontece?
Não. O que acontece é que para mim um romance é como se fosse uma doença para a qual a doença também é a cura – quem o diz é Joyce Carol Oates, e isso faz muito sentido para mim porque não existem histórias sem patologia, sem qualquer coisa que está doente, pode ser uma personagem, um conflito entre duas ou mais personagens, pode ser uma situação exterior. O importante é que essa ideia de doença e de haver qualquer coisa que necessita de ser reparada esteja presente no princípio da escrita. Quanto mais forte for isso mais tempo temos para ir trabalhando.
Diz: “Só vale a pena ler um romance quando temos uma pergunta na cabeça para a qual não temos resposta. Ou, mesmo que tenhamos encontrado resposta, se precisamos de confirmação”. Também é um bocadinho isto?
Ler é diferente de escrever.
Pergunto enquanto escritor e leitor…
Não acho que seja uma pergunta necessariamente. Acho que, no caso do ‘Felicidade’, por exemplo, havia ali uma premissa do que aconteceria se a primeira noite fosse também a última e eu queria um bocadinho escrever acerca desse tema.
[Não consigo pensar [risos]. Desculpe, mas é que a música está muito alta. Desculpe, hoje não estou num dia muito fluente. Tenho dias em que não me apetece falar, não me apetece raciocinar, desenvolver perguntas…
Podemos reagendar, se preferir…
Não, não, isto também pode fazer parte da entrevista [risos]].
Quando o dia começa mal, às vezes é difícil mudar o chip…
Sim, é um bocado. Ok [pausa]. Na parte do escrever, eu não tenho muitas perguntas. O que me interessa na narrativa é ter um ponto de partida suficientemente forte que me dê amplitude para uma história e isso, às vezes, demora cem, trezentas ou quinhentas páginas, depende. Ao contrário de muitos outros ofícios em que as coisas estão mais programadas, por exemplo, na música clássica a pauta começa e acaba, está mais ou menos predefinido, mas claro que depois há muitas interpretações e é com certeza muito difícil, na escrita não há fim: um livro pode durar duzentas ou seiscentas páginas, eu não sei.
Costuma definir isso antes?
Não, isso é impossível de definir. Isso tem a ver com a força com que a história se projeta e, no caso do ‘Felicidade’, eu sabia que tinha espaço para uma história mais ou menos longa, porque não queria contar só a história de um primeiro amor que de repente acaba logo na primeira noite e o segredo do livro está aí. Não quero estar a contar o que acontece, mas também me fazia sentido que as personagens femininas – a Felicidade, a Esperança e a Angélica – fossem três gémeas idênticas. Acho piada a essa situação mas, a partir do momento em que coloquei aquele drama na página, aquela pequena tragédia teve potencial para ir para muitos lados…
‘Pequena tragédia’ é simpático…
É uma pequena tragédia, uma grande tragédia é o holocausto. Claro que é uma grande tragédia pessoal, mas não humanitária. É uma coisa trágica, obviamente, mas eu não queria que o romance fosse trágico, queria que fosse uma espécie de tragicomédia e tem lados muito cómicos, o narrador com 17 anos que de repente se vê desamparado e tem que se socorrer dos pais. Um pai conservador e uma mãe muito liberal, um conflito dentro de casa e ele sem saber muito bem para que lado se há de virar.
A história tem um registo um pouco autobiográfico. Passa-se em Lisboa, onde também cresceu, desenrola-se no período pós-revolução. Nasceu em 1975, foi recordar alguma coisa da Lisboa e da sociedade desse tempo?
Bom, muito através das minhas memórias. O livro começa em 1973, quando o narrador tem 17 anos e nessa altura eu ainda não era nascido. De certa maneira, são histórias de família, eu acho que Portugal, em termos sociais e no que respeita à família, não mudou assim muito de 1973 para 83 ou 93. Não houve uma mudança muito grande no seio familiar, se calhar mudaram as coisas físicas, os eletrodomésticos que temos em casa, os objetos e a maneira como nos relacionamos com os espaços. Mas as nossas relações pessoais, culturais e familiares mantiveram-se muito idênticas. Portanto, eu tendo nascido em 75, consigo perfeitamente compreender como funciona uma família portuguesa desse tempo. Depois, há a questão de atravessar o período da revolução e para mim era muito interessante ver como é que uma personagem reagia à sua tragédia pessoal que, tendo acontecido, ele sente a sua dor e aquele estado de dormência e perante a revolução e a mudança no país fica só a assistir. Mesmo no livro diz: ‘Tenho muita pena de não ser um desses jovens que andam para aí nas ruas a gritar pela revolução mas a única coisa que consigo fazer é assistir’. É esse lado de espetador do que está a acontecer fora e pelo facto daquilo que lhe aconteceu dentro ter contaminado tudo que é um bocadinho o cerne emocional da história.
Falou das trigémeas, o que também é engraçado porque cresceu rodeado de mulheres…
Eu tenho uma gémea e cresci num mundo muito feminino por assim dizer, havia a minha mãe a minha irmã gémea, a minha avó, as minhas tias avós. Enfim, havia uma série de mulheres à minha volta e, portanto, há uma espécie de ligação a esse mundo feminino que é um mundo que para um miúdo pode ser um bocadinho assustador. Julgarmos que recaem sobre nós as expectativas daquelas mulheres todas, uma pessoa tenta estar à altura mas é impossível, não se consegue. Em criança lembro-me deste coro de vozes femininas que ao mesmo tempo me traziam algum conforto mas que também me deixavam inquieto e muito ansioso. Ter que agradar a estas mulheres todas é impossível para um miúdo de 5 ou 6 anos.
Isso fê-lo compreender melhor o universo feminino ou, por outro lado, tornou-o mais introspetivo?
Sim, isso já estava comigo desde muito jovem, essa coisa de ter que me recolher. Por várias razões, mas havia ali um lado meu muito introspetivo e muito virado para mim próprio, o que não é saudável para uma criança. Uma criança deve andar a brincar com as outras na rua, a andar de bicicleta, a jogar à bola, sei lá, depois alguns de nós têm circunstâncias genéticas e culturais, o que também traz essa incapacidade e dificuldade com o exterior. O que acontece é que, perante o contexto familiar, eu acabei por encontrar abrigo e consolo no meu interior, que estava povoado de histórias.
Já ligado à escrita?
Sim, e ligado às várias formas de expressão, como o desenho, mas depois perdi completamente o jeito para desenhar. Nunca tive muito, mas perdi o pouco que tinha e restou a escrita. Restou muito aquela coisa de refúgio no meu mundo interior, que é um mundo muito parecido com este, mas não é exatamente este. Acho que há pessoas que precisam disso, dessa ideia de consolo e a verdade é que durante a minha vida sempre que eu procurei consolo, apaziguamento ou a aquietação da minha ansiedade fora de mim fracassei. Não há nada que aquiete o meu desassossego que esteja fora de mim, nem dinheiro, nem casas, nem namoradas, nem sucesso, nada. A única coisa que me aquieta é o meu encontro comigo próprio e esse encontro dá-se na escrita, na projeção das minhas inquietações e das minhas angústias em forma de metáfora, que só acontece para mim de uma maneira literária. Não consigo explicar isto melhor, peço desculpa, é difícil.
Provavelmente era o filho que qualquer mãe gostaria de ter. Ou, pelo contrário, é motivo de preocupação uma criança tão fechada no seu mundo?
Não, não. Eu acho é que qualquer mãe gosta de ter um filho que vá para a rua jogar à bola com os outros miúdos… Mas não causava preocupação porque não era uma criança atrevida, não era um miúdo que ia para a rua arranjar problemas, estava em casa a ler e a escrever. Em princípio não causa problemas, se calhar as pessoas olhavam–me um bocado como um bicho raro, uma ave rara. Mas houve uma certa altura em que as pessoas que estavam em meu redor começaram a perceber que eu teria uma vocação ou uma tendência para aquilo e começaram a ajudar-me e a alimentar isso também. Sobretudo quando era pré-adolescente, o meu padrasto ajudou-me muito, começou a mostrar-me livros e autores, comprava-me os livros na Feira do Livro e comecei a ler literatura muito novo, aos 12 ou 13 anos dei aquele salto da banda desenhada dos livros mais infanto-juvenis – Sherlock Holmes, Júlio Verne, Agatha Christie -, e passei para a literatura muito cedo, consequência também do meio familiar que reconheceu isso. E eu, de facto, não tinha grande jeito para o desporto, não tinha grande apetência para estar com pessoas, era um miúdo socialmente um bocado inapto.
Na escola foi complicado em relação aos outros, já que não era comum para uma criança ler esse tipo de livros?
Eu não partilhava isso muito com os meus colegas, fazia a minha cena, não olhava muito para o que os outros faziam. Claro que às vezes sentia-me à parte, quando os outros miúdos gostavam de jogar futebol e eu não tinha jeito, sentia-me um bocado sozinho. Acho que esses sentimentos de solidão e de não pertencer chegaram muito depois, quando eu era miúdo não tinha muito essas ideias.
Nesse mundo interior pode entrar alguém para ajudá-lo ou faz esse trabalho sozinho?
Não, claro que há imensa gente que me pode ajudar. Um dos meus grandes desafios e de todas as pessoas que têm profissões mais solitárias é procurar os outros e, ao longa da vida, fui tendo desafios pessoais e profissionais que me obrigaram de certa maneira a sair de mim e do meu mundo e a vir cá fora. Essa ideia de solidão ou de isolamento de um escritor é muito enganadora. Eu estou sozinho quando escrevo mas quando não escrevo preciso de pessoas, preciso de convívio social e de outras coisas que não estejam relacionadas com a escrita. Sei o que é passar muito tempo obcecado com a escrita e isso é um processo que não me conduz a um lugar feliz.
Quando se escreve é preciso mais disciplina ou inspiração?
A mim a inspiração quase nunca me sucede, às vezes surge uma situação que acho que possa ser engraçada de desenvolver numa narrativa mas, como a própria palavra diz, inspiração segue-se a expiração, ou seja, uma pessoa largar aquilo que inspirou. Escrever é uma questão de trabalho e não de ficarmos à espera que aconteça qualquer coisa. Normalmente as melhores ideias e as melhores situações acontecem quando estamos a trabalhar.
A criatividade aprende-se e ensina-se ou é necessário um certo dom a que se dá seguimento? Dá cursos de escrita criativa…
Não sei dizer. Há pessoas que têm um talento inato para a escrita e que a narrativa é algo que está entranhado nelas e há outras que não conseguem alinhavar um parágrafo e que têm muita dificuldade em escrever. De onde vem? Não faço ideia nenhuma. Pelas nossas leituras, mas não necessariamente. É como em todos os ofícios, é algo que se pratica, que se treina. É um processo que demora 20 ou 30 anos a aprender e depois leva-se o resto da vida a aperfeiçoar. É uma ideia um bocadinho estranha a de que os escritores têm epifanias ou que de um dia para o outro descobrem o talento e isso não é verdade, pelo menos na minha experiência. O Saramago levou décadas de trabalho até chegar ao Memorial do Convento. No entanto, temos aquela ideia de que o Saramago um dia acordou e tinha aquela voz dentro da cabeça e desatou a escrever. Foram décadas de trabalho para chegar àquela voz que parece que vem de lado nenhum. Quando isso acontece, é o resultado de muito trabalho, claro que junto com um nível de talento que ninguém sabe explicar o que é.
Em 2004 publica o seu primeiro livro e em 2009 vence o Prémio José Saramago. O que se sente quando se vence um prémio destes e como se gere depois?
Há uma frase do [Soren] Kierkegaard que diz assim: ‘A oração não serve para …’. Acho que tem que ir ver depois ao Google.
Vamos já descobrir isso… Não, não. Espere aí, é assim: ’A oração não serve para mudar a nossa relação com Deus mas serve para mudar a natureza da pessoa que reza’. É uma coisa assim do género [pega no telemóvel e faz a pesquisa]. Ah, é isto: ‘A função da oração não é influenciar Deus, mas especialmente mudar a natureza daquele que ora’. E eu penso nisso imensas vezes quando penso nessas alturas de mudança. Quando recebi o prémio, foi uma coisa um bocadinho inesperada, são sempre muitas pessoas que se candidatam e nessa altura o prémio era para autores abaixo dos 35 anos, agora é abaixo dos 40. Nessa altura eu tinha publicado três romances, ainda não era um escritor. Depois, havia um bocadinho essa ideia, como se fosse uma oração dentro de mim, uma espécie de lengalenga que vamos dizendo a nós próprios e eu fui dizendo a partir dos meus 24 ou 25 anos. Quando escolhi a minha profissão de jornalista, não dava para mim, não me preenchia, deixava-me mais angustiado ainda do que já sou, mais ansioso e não era algo que me fizesse sentir realizado. Foi aí que começou essa oração ou essa conversa comigo próprio, eu um dia vou viver disto e quando chegou esse momento, em 2009, quando recebi o prémio cerca de seis meses antes, ou nove meses, despedi-me do trabalho que tinha, que era um trabalho das 9h às 17h, e propus-me a viver da escrita. Não tinha rede, tinha algum dinheiro de lado, mas não muito, dava talvez para um ano, no máximo tinha trabalhos de freelancer, mas dei um salto. Hoje identifico assim. Na altura pensei: ‘Se fico agarrado a este trabalho que me dá segurança económica o risco é estar aqui dez anos e olho para trás e arrependo-me dos livros todos que não escrevi, da vida que não tive por ter medo’. Um dos grandes obstáculos para a nossa felicidade, se é que existe, é de facto o medo. Agora, quando olho para trás e para a vida que tive, não me arrependo dos erros mas sim das coisas que não fiz porque tinha medo. Nós somos humanos e todos erramos, tentamos o nosso melhor e às vezes falhamos, mas os livros que não li, os sítios onde não fui, as pessoas que não consegui amar, as aventuras todas que podia ter tido e não tive por medo, disso sim, arrependo-me. Nessa altura pensei: ‘Estou com medo? Estou, mas se não dou este salto isto nunca vai acontecer’.
É uma pessoa que arrisca?
Eu diria que sou menos medroso, embora cauteloso. O salto que dei naquela altura foi recompensado e eu até às Três Vidas [livro que ganhou o Prémio Literário José Saramago], o que ganhava com os livros era irrisório. Se eu não tivesse recebido o prémio a minha vida não teria mudado naquela altura e provavelmente teria chegado aqui de outra maneira. O prémio facilitou muito esse percurso mas, na minha cabeça, também foi consequência da minha oração de que um dia iria ser escritor.
O prémio veio validar a sua definição enquanto escritor?
Depende. Eu acho que um escritor a nível profissional não é só uma pessoa que escreve, da mesma maneira que um advogado ou um médico-cirurgião é um ofício altamente especializado, que demora muitos anos a aprender.
Hoje existe a sensação de que qualquer pessoa pode publicar um livro. Isso incomoda-o?
Não, as pessoas fazem aquilo que querem da sua própria vida. Eu tento não dar opiniões sobre o que os outros fazem. Agora se me perguntar se isso é um escritor profissional eu respondo que não, não é. Se eu não passo pelo escrutínio das fases todas que implicam tornar-me escritor e queimo etapas, os resultados não podem ser muito bons. Mais uma vez digo: cada pessoa faz aquilo que quer; e se acha que é bom para si pagar para publicar um livro, como se faz nessas editoras que são gráficas, então não tenho absolutamente nada a dizer.
Dentro do processo de escrutínio que mencionou, como funciona a fase da sugestão ou alteração de texto? Por vezes, sente-se frustrado com isso?
Não, nada. Ao longo dos anos trabalhei apenas com duas editoras: a Maria do Rosário Pedreira e a Clara Capitão, na Penguin, com quem já estou há oito anos e adoro. A melhor coisa que me podem fazer é dizerem-me que aquilo que fiz não está perfeito, que precisa de trabalho, de acrescentos e de ser reescrito, gosto mesmo desse processo e sem isso eu não seria o escritor que sou hoje. Não teria olhado para os meus erros e insuficiências e não os teria aperfeiçoado, sem isso não há progressão. É fundamental para mim ter uma editora com quem tenho uma relação pessoal e profissional.
Escreve e espera que o leitor goste ou escreve a pensar no leitor pondo de lado a sua própria forma de pensar?
É muito difícil responder a isso. Eu sei que tenho leitores e que há muita gente que compra os meus livros e tenho-lhes essa dívida de gratidão e, por isso, nunca publico nada que acho que seja ‘B’ ou ‘C’, só publico aquilo que acho que é mesmo bom – a prova disso é que tenho o computador cheio de coisas ‘B’ e muitas ‘C’, coisas que não me saíram bem, que não desenvolvi o suficiente.
Chega a mostrar a alguém?
Às vezes mostro, mas hoje em dia já nem sequer lá chego porque já sei identificar. Sinto isso, que aquilo não está a funcionar. Tendo essa noção à partida já estou a respeitar o leitor, é uma outra forma de respeito. Não escrevo a pensar no que o leitor irá gostar, penso naquilo que como leitor eu iria gostar, e sou um leitor com alguma experiência e nos meus livros o mais crítico. Se escrever um livro que me satisfaça também irei satisfazer os leitores que têm um olho mais crítico, mas a minha dívida com os leitores é estar presente sempre que posso e nos últimos 15 ou 16 anos tento estar presente. Neste último ano menos, porque enfim…
Quando sente que é tempo de lançar um novo livro?
Normalmente isso são conversas que tenho com a editora ao longo do tempo e vamos decidindo qual é a melhor altura, visto que eu neste momento estou a escrever em três frentes: os meus romances mais literários, policial – vai sair outro agora na primavera – e comecei a publicar ensaio. Como eu quero continuar a trabalhar nestas três frentes, para mim é interessante pensar que se calhar publico mais do que um livro por ano mas de géneros diferentes.
Às vezes mudar o registo, por exemplo, para um ensaio, como o Manual de Sobrevivência ajuda a descomprimir e a renovar histórias?
Sim, ajuda a mudar de registo. Eu sou um escritor tendencialmente de romance, mas descobri que gosto de escrever ensaios e vou tentando equilibrar com a editora. Tenho sempre muita coisa por publicar e escrevo também com alguma antecedência.
Passar a ter o selo do prémio José Saramago nos livros seguintes aumentou a ansiedade, nomeadamente n’ ‘O Bom Inverno’, publicado a seguir ao ‘As Três Vidas’?
Sim, mas era porque a vida estava a mudar. O prémio Saramago muda a tua vida. Por outro lado, para os escritores que recebiam o prémio naquela altura, era o prémio com mais ressonância em Portugal. De repente, de 1000 exemplares passavas a vender 10.000, é uma diferença muito grande e, para mim, também foi um momento de mudança, em que arrisquei e o prémio apareceu e eu senti esse peso porque também era ainda muito novo. Aos 33, 34 anos, ainda te estás a descobrir como escritor, mas senti que não podia demorar muito tempo até publicar um próximo livro, até porque queria aproveitar a energia que o próprio prémio traz. O facto é que deu bom resultado: o ‘O Bom Inverno’ acho que foi o meu livro que mais vendeu e não é o que gosto mais. Mas foi o meu livro que mais vendeu por causa dessa catapulta.
Um bom escritor pode ser avaliado pelos prémios que ganha ou pelos livros que vende? Como referiu, antes do prémio vendia muitos poucos exemplares e depois do prémio foi uma explosão… Não vendia muito poucos. O ‘As Três Vidas’ já foi um livro que vendeu bastante bem, mas até ao ‘As Três Vidas’ tinha feito poucos livros: o ‘Hotel Memória’ e ‘O livro dos homens sem luz’. O ‘Hotel Memória’ acho que vendeu cerca de 2000 exemplares, foi pouco. No ano do prémio, o ‘As Três Vidas’ vendeu um bocadinho mais, mas mesmo assim nada que se comparasse ao que vendeu o ‘O Bom Inverno’, houve ali uma espécie de explosão. Por dentro continuas a ser a mesma pessoa, só que por fora as coisas estavam a mudar a uma velocidade bastante grande.
O que o assustou?
Não me assustou, mas eu não sabia daquela vida e acabei por demorar alguns anos até me reencontrar como escritor. Tive ali um período de experiências como, por exemplo, a ‘Anatomia dos mártires’. É assim, eu acho que o ‘O Bom Inverno’ e a ‘Anatomia dos mártires’ são experiências e não exatamente romances, depois, a partir de o ‘O Ano Sabático’ já começa a entrar um bocadinho no meu universo novo e a partir de o ‘ O Luto de Elias Gro’ acho que entrei noutro registo, mais adulto, mais eu.
Por falar nisso, o ‘O Luto de Elias Gro’ integrou o Plano Nacional de Leitura. Deixou-o naturalmente feliz?
Claro, nos anos todos em que fiz viagens pelo país inteiro, fui a centenas de escolas e o que eu vi eram alunos que, em todas as turmas, em cem alunos há cinco ou seis que se interessam por livros, ou pela leitura de um modo verdadeiro. E isso não é uma má estatística se pensares nas coisas todas, não é mau. Alguns vinham falar comigo no final e eu via que estavam um bocadinho limitados em termos de planos do Governo no que dizia respeito às leituras e o PNL veio abrir portas para os professores poderem dizer: ‘aqui está um escritor que está vivo, ainda é mais ou menos jovem e que escreve’, eu e dezenas de outros. Isso é muito bom porque os miúdos podem ter acesso a uma coisa que se calhar lhes diz mais, uma literatura com a qual se conseguem identificar mais do que se calhar com coisas do século XVIII ou XIX.
Que ideia tem da evolução digital e desta nova forma de leitura: nos tablets, telemóveis…
O que eu sei, e vejo-o pelas vendas, é que a leitura em E-books é muito residual ainda, não é significativa, mas já é mais do que o era há dez anos. Por mim, não uso tablets, quando leio em computador normalmente são artigos ou coisas para ensaio, mas romances leio sempre em papel. Se não encontrar o livro cá, porque está esgotado, então compro e leio em E-book, mas é em último recurso. Acho que é um livro na mesma para as pessoas que gostam de tablets e é muito mais fácil de transportar para férias e essas coisas todas. Depende do gosto de cada um. Eu prefiro o papel, é o meu gosto pessoal.
A título de curiosidade, quando escreve um romance parece pegar em pontos da sua vida nem que seja para iniciar. Já alguma vez um familiar ou amigo se viu retratado num livro seu e tenha ficado aborrecido a ponto de ir falar consigo?
Já, já houve algumas coisas das quais eu me arrependo. Houve uma situação com um escritor italiano, cujo nome prefiro não dizer, que se viu retratado num dos meus livros e que não gostou e ficou magoado comigo, algo que entendo. Houve algumas situações de familiares e amigos que se julgaram retratados naquele livro e com as quais tive que ter conversas mais longas para explicar que se tratava de ficção e que não eram eles que ali estavam retratados, mas um escritor não se pode dar ao luxo de querer agradar a todos nem de querer isentar-se daquilo que faz. Não estou a dizer para levar a coisa para o lado Karl Ove Knausgård, que retratou a sua vida, esse sim terá problemas graves com aquilo que escreveu e aliás assume-os. Ele já sabia quando escreveu aqueles livros que iria ter repercussões. Eu não quero fazer isso, obviamente, mas não consigo deixar de me isentar e de não estar presente ou de não trazer algumas coisas de pessoas que conheço para os meus livros e isso é normal. Se há pessoa que sai lesada dos meus livros sou eu próprio [risos]. Mas pronto, claro que não deve ser agradável uma pessoa ver-se retratada, sobretudo quando o escritor não teve intenção. Mas, mais uma vez, se isso aconteceu a alguém, peço desculpa, não foi por mal.
Passaram 16 anos desde que publicou o primeiro livro. Como vê esta fase atual do seu percurso literário? Consegue dividi-lo por fases?
Consigo, acho que esta é uma fase um bocadinho mais adulta, já não tenho urgência de provar nada, não tenho mesmo. Não acho que tenha de demonstrar que sei escrever ou que sou bom escritor, já não tenho essa preocupação que tinha muito. Ao princípio queremos muito mostrar aquilo que valemos e eu acho que já mostrei o suficiente para estar apaziguado com isso.
Isso acalma um bocadinho a angústia de que fala?
Sim, acalma Enquanto cidadão sou uma pessoa normalíssima, não tenho interesse nenhum em ter exposição pública. Gosto de falar consigo, mas não gosto de dar entrevistas. Acho que a minha vida pública enquanto escritor, e isto vai parecer estranho, tem sido não dar opiniões, o que é muito difícil de fazer. Esta história do julgamento e de opinar aqui e ali – no Facebook, Instagram, Twitter e as redes sociais todas -; eu só tenho duas e são profissionais, e esse não dar opiniões não se trata só de uma questão de me preservar, mas de uma questão de que quanto menos ajo nesse sentido menos a minha cabeça quer agir – é uma espécie de treino. Embora eu tenha as minhas opiniões, porque sou humano, não as dar e não me exprimir sobre todos os assuntos e guardar essa energia muito forte para a escrita tem sido para mim fundamental. Porquê? Porque para a escrita toda a opinião nasce de uma espécie de raiva e a raiva nasce de uma esperança muito disparatada de que o mundo devia ser de acordo com uma ideia muito perfeita que eu tenho na cabeça. Um mundo em que as pessoas não buzinam, em que os cães não ladram à noite, em que toda a gente se porta bem. Um mundo em que as pessoas nunca se separam e nunca discutem, em que nunca ninguém me faz mal, enfim, esse mundo e a raiva nasce no facto de o mundo não ser assim.
Este último ano, com a pandemia, veio ajudar a criar ainda mais esse mundo de revolta?
Neste último ano sim, tive momentos muito complicados, mas o que me foi ajudando foi viver um dia de cada vez e isso também é uma forma de oração, que muda a pessoa que reza e que produz esse discurso para si próprio. O Anthony Hopkins dizia uma coisa muito engraçada: ‘Hoje é o amanhã com que eu ontem estava tão preocupado’. Acho que é uma coisa que faz muito sentido, sobretudo nestes tempos tão complicados. E, afinal, a vida continua, não morremos todos, não houve nenhum desastre nuclear, a pandemia está mais ou menos controlada e, portanto, é viver um dia de cada vez. Para mim, muito disto do estar vivo tem sido ir dando devagarinho esses passos dos quais tenho tanto receio, mantendo a perspetiva de que no dia de hoje está tudo bem. São muito raros os dias em que está tudo mal, muito raros mesmo.
Mesmo com a porta do carro avariada e o aquecedor estragado?
[risos] Mesmo com a porta do carro avariada e o aquecedor estragado.