Agora que pelas praias de todo o mundo o mar parece devolver as velhas e hediondas carcaças ideológicas que, por ingenuidade, julgáramos vencidas, alguma coisa nos diz que a memória está a ceder, e do mesmo modo nos damos conta de que a Europa já foi outra coisa. Talvez a própria atenção como ela se formava em períodos de maior consciência, e a cultura que disso dependia, se mostre incapaz de ler o que das ruínas persiste nestas cidades tocadas por grandes guerras e grandes poetas. Joan Margarit lembra-nos de como foi ser um jovem europeu nesse século terrível, atraído por cidades chuvosas, e por poetas que “faziam-nos sentir heroicos/ políticos, cultos,/ predadores de uma literatura/ que acabou para sempre.”
Mas como sabemos, o fim de uma coisa tende a ser o prelúdio de outra. E
Margarit é certamente um dos grandes poetas europeus do último século, alguém que retomou a lição de Goethe ao deixar a biografia ser absorvida pela obra, atravessada pela “flecha de sombra” do desejo, esse sentido que o tempo apaga, mas de cuja ferida uma fissura ou fenda persiste, para que, bastando que o vento sopre, logo dela se desprenda um assobio distinto, o qual continuará a comover a carne pelos séculos que ainda cultivem nela um ouvido musical. No diálogo permanente com os clássicos, no resgate dessa atmosfera mais vasta que atravessa a consciência e que, se a impressiona, também a torna resistente ao embate da vida, Margarit sempre frisou que o seu entendimento das coisas nascera do “choque com a realidade./ Foi aí que começou a poesia”.
E para não estarmos com grandes rodeios, veja-se um poema dos que nos transmitem a lição que Margarit diz ter aprendido muito cedo com a sua avó iletrada, a de que o amor é claridade e dureza ao mesmo tempo, e que a coragem é tão necessária para amar como para encontrar a verdade. “A lembrança precisa de dizer algum nome/ para conviver com aquilo de que tem medo./ Pensa nela: começou a perdê-la/ quando a abraçou na primeira noite./ O homem quebra o passado como um mealheiro/ e dentro só havia escuridão./ Nos ossos do tempo não há ternura./ Já não existem os lugares./ As raparigas já são velhas ou estão mortas.”
“Fui um homem prático./ Brusco, fiel, solitário. Agradecido”, assim se descreveu certa vez, alguém que, tendo em conta as suas origens, a miséria que sentiu na pele, o ter perdido, aos quatro anos, uma irmã, que morreu de meningite, por falta de remédios, não se podia dar ao luxo de “renunciar à sensatez”, e desconfiou sempre dos excessos líricos. Foi com Neruda que aprendeu a desvincular-se de um certo romantismo, tendo reconhecido que na juventude a sua influência “esteve a ponto de devorar-me, tendo-me custado uma década para livrar-me da sua sombra excessiva”. Mas foi com ele, e com outros poetas como Rafael Alberti, Salvador Espriu, Gabriel Ferrater ou Joan Vinyoli, que aprendeu o respeito pelas obrigações sociais, mas não a ponto de delas ficar prisioneiro, e com os anos, à medida que a vida carregou para a sua própria intimidade perdas brutais, como as das duas filhas, Anna e Joana, soube ligar-se à poesia como uma razão eterna, apreciando essa música difícil, tantas vezes muda, que toca a vida inteira de um homem, insistindo que é importante saber ouvir onde nos leva.
Com o passar dos anos, os seus versos foram-se tornando mais descarnados, tendo-se dado conta de que “a verdade está muitas vezes em certos sítios onde a beleza não tem nada a fazer”. Fugindo de todo o hermetismo, deu uma lição de clareza, com composições de uma contenção extraordinária, em que repassava memórias, derrotas e alegrias por igual, num ríspido galanteio, entretecendo uma emoção poderosa em versos firmes, sem adornos, buscando aquele disparo, “perigoso e certeiro”, cujo eco não mais se dissipa.
“Um bom poema,/ por mais belo que seja, tem de ser cruel”, diz-nos em “Casa da Misericórdia”, alvejando o anjo de Rilke, e seguindo a sua sombra enquanto desce pelos degraus do seu estertor.
Num outro poema do mesmo livro, “Cemitério e mar”, exprime a tensão recíproca que a vizinhança entre eles gera, como se o mar transmitisse a sua convulsão ao espaço onde os mortos deveriam descansar. “O mar está amarrado. Puxa, dá voltas/ durante os temporais como se tentasse/ arrancar do seu fundo as correntes./ Assim é a solidão, pensa agora,/ acorrentada não sabemos a quê,/ guardando obsessões, dores e erros/ dentro de uma amarga escuridão transparente.”
Margarit nasceu na madrugada de 11 de maio de 1938, em plena Guerra Civil, em Sanaüja, uma aldeia na província de Lleida, a poucos quilómetros do ponto onde a frente de Aragón acabava de ceder, marcando o início da derrocada para os republicanos, bando ao qual Margarit pertencia por vínculo familiar, e cuja derrota uma vida inteira não chegaria para engolir. Embora em sua casa se falasse catalão, era uma língua sussurrada, como uma tímida blasfémia, um orgulho íntimo, mas frágil, e, se se pusesse a escrevê-la, dava erros de ortografia. Por isso, por que da sua língua materna não conhecia exactamente o rastro que a fixasse, começou a escrever em castelhano, e, aos 25 anos, publicou o seu primeiro livro “Cantos para la coral de un hombre solo” (1963). Com formação em Arquitectura, em 1968, era já catedrático de Cálculo de Estruturas na importante Escola de Arquitectura de Barcelona. E a sua especialidade permitiu-lhe integrar a equipa que dirigiu as obras da catedral da Sagrada Família de Gaudí, mas tinha também um especial orgulho por ter participado na reabilitação dos precários edifícios da emigração nas décadas de 50 e 60 em Sant Roc, La Pau ou el Besòs.
Depois de, no início da década de 80, ter traduzido para o castelhano um dos livros de Miquel Martí i Pol, poeta de quem era próximo, foi por incitação dele que Margarit percebeu que enquanto não escrevesse na sua língua materna haveria sempre algo da sua sensibilidade e experiência que escaparia aos poemas. Foi assim que, só por volta dos 40 anos, adquiriu esse diálogo entre as duas línguas, escrevendo primeiro em catalão, mas andando de uma versão para a outra, admitindo desvios, deixando que o eco do castelhano viesse burilar o original.
Se as questões sociais perpassam a sua obra, e a sua infância não deixa de lhe mostrar a tentação da história para se repetir, este poeta procurava defender antes de tudo a cultura assumindo uma visão bastante crítica do consumo, da facilidade com que arte e entretenimento hoje são equiparados, acusando essa “opulenta miséria” que nem sabe que é miséria… “É o final de um sonho. É o momento/ de democratizar a arte./ Nenhuma árvore alta./ Espantosamente ricos e, por isso,/ espantosamente pobres.” Diz-nos ele que “de um entretenimento saímos os mesmos que entrámos, passageiros de um tempo que, na melhor das hipóteses, terá sido indolor”. E adianta: “Por outro lado, ao concluir a leitura de um bom poema, já não somos os mesmos. A nossa ordem interior fez-se mais ampla.”
E se Margarit foi um poeta que gozou de uma invulgar popularidade, sendo muito lido em toda a Espanha, e especialmente na Catalunha, onde os seus livros atingiam tiragens a que, normalmente, só os romances podem hoje aspirar, ainda encarou o adiantado da hora neste século XXI, sublinhando que “as notáveis mudanças produzidas na nossa complexa sociedade não trouxeram nada de novo ao homem ou à mulher na sua solidão existencial, a não ser torná-la mais evidente”. Acrescentando que aquilo em que somos capazes de incidir é ainda no superficial, e que a poesia só começa “onde acaba a superfície”. E nessa reflexão que surge em epílogo a “Um Hivern Fascinant” (2017), recorda uma discussão que teve com os alunos de uma das suas aulas de Cálculo de Estruturas, nos anos 70 na Escola de Arquitectura de Barcelona. “Eles defendiam a liberdade que alguém que pretendesse ser um bom arquitecto teria de acreditar fosse no que fosse, por exemplo que a terra era plana. De facto, tratava-se já do programa de perda de peso da humildade e da dignidade – cada um faz e fala do que sabe – a par de uma idealização (outra falsidade, portanto) da importância do próprio desejo.” E rematava: “Seguramente, grande parte da arte e da política anda hoje à volta destas questões.”
“Perderás a dignidade se perderes/ a luz familiar do mito”, avisara nuns versos décadas antes. Noutro poema dirá que “todos os dias a têm, a luz mítica,/ até aqueles que acabam derrotados,/ quando adormecemos à frente do televisor.” De algum modo, e muitas vezes com os recursos mais pobres, com aquilo com que qualquer homem conta, o que tem de mais honesto, a sua dor, Margarit traçou um improvável caminho de regresso ao fascínio do passado, a essa aristocracia do tempo que a Grécia representou. Mesmo se tudo à nossa volta se degrada, perde o peso da humildade e da dignidade, este poeta lembra-nos que toda a beleza, mesmo essa que mais nos fere à distância, em fragmentos de poemas e de estátuas ou mármores invocando antigas glórias, tudo isso é a poeira do mundo, tal como as palavras. Um desejo de ordem é o impulso que permite reaver essa dignidade.
“Diria que se deve ser audaz na hora de escrever o poema e humilde antes e depois de o escrever”, diz-nos ele, acrescentando que “só a mediocridade não sabe como suportar o jogo duplo da humildade e da audácia”. Assim, os poemas importam na medida em que não se confundem com o resto, pela ordem interior que convocam, abrindo a hipótese de, mesmo na mais exasperante solidão, se firmar um momento do sagrado. Um encanto que o poeta encontrou apenas na música, arte de que sempre se serviu para traçar paralelos e rechaçar a ideia de que a poesia não passa de outro género literário. Noutros momentos, isto estende-se também à arquitectura, a que se dedicou profissionalmente. “De tanta arquitectura só fica/ a solidão do muro./ A sua força./ Estou a olhá-lo no quintal de onde me sorria/ a Joana. Já não tenho de construir.” É por aqui que se entende essa nota que atravessa a desolação e traz um estranho consolo, uma felicidade que contém toda a amargura e dor, mas que lhes sobrevive, uma certa crueza que permite admirar a vida, mesmo nos vazios e nas perdas que nos deixa. Neste sentido, a poesia de Joan Margarit expõe-se enquanto “testemunho e testamento”, como vincou Miguel Filipe Mochila, e não apenas nos últimos livros, quando sentiu a morte a apressá-lo, mas já antes.
Roberto Bazlen numa das suas “Notas Sem Texto”, dizia isto: “Outrora, as pessoas nasciam vivas e pouco a pouco iam morrendo. Agora nascem mortas – algumas conseguem tornar-se, a pouco e pouco, vivas.” A obra deste poeta catalão, lida antes ou agora, sempre assume um ângulo retrospectivo, um balanço de revisitação e, às vezes, de ajuste de contas. Há nela um certo alcance próprio de uma posteridade que se antecipa, que nos vem dizer aquilo que algum dia a carreira das mais duras perdas irão ditar. É uma poesia que responde a esse desejo de, a pouco e pouco, nos dar vida, mesmo quando só restam as memórias, mesmo quando a única vitória que nos resta é uma conciliação com o fim. “O apego à vida acaba muito antes/ do que supõem os jovens.// Tudo arrefece, e precisamos/ desse cansaço de termos amado./ Para desejarmos o que já se vai aproximando./ Tão diferente.”
Na última entrevista que deu, ao El País, insistiu que não nos podemos esquecer que somos animais, e que a razão porque levamos a vida a sério é pelos riscos que esta nos impõe. Sem as perdas, entende o poeta, “não consideraríamos isto uma vida”. No epílogo ao livro “Casa de Misericórdia”, recorda como o título lhe veio na visita a uma exposição com o mesmo nome, e conta como, perante as condições terríveis que fizeram das Casas da Misericórdia abrigos contra a intempérie nos anos do pós-guerra, ainda que fossem “instituições de uma grande severidade, às vezes à beira da maldade”, são o que há, a única hipótese de salvação que restou a muitos. “Pus-me a pensar na dureza a que pode chegar a vida das pessoas e nos poucos recursos que temos para fazer frente a todo o tipo de perdas e fracassos (…) Este era o ponto central da minha reflexão: é daqui que precisamos partir para tentarmos chegar aos subúrbios do que chamamos felicidade. (…) E, neste sentido, a mente dava um salto para a poesia, para o pouco que um poema talvez sirva para ajudar a suportar a dor e as ausências. Mas não há mais nada, e isso sim é triste, muito mais triste é a intempérie sem os versos. A poesia: uma espécie de Casa da Misericórdia.”
Miguel Filipe Mochila, o maior responsável por fazer de Margarit um dos raríssimos poetas estrangeiros que venceu as barreiras aduaneiras, indo além do beatério improfícuo dos trezentos leitores que frequentam as missas da poesia portuguesa nos nossos dias, resumiu assim o seu perfil: “o Joan Margarit é um poeta moral, porque mortal. Os seus leitores e as suas leitoras conhecem bem a densidade da sua companhia, vazada daquela seriedade e daquela verdade, assente sobre uma vida com efeito vivida, e sem efeitos, sem concessões à autocomplacência, buscando fixar o tanto que amou, pessoas, poemas, músicas e lugares, desde uma honestidade que pela crueza achava redenção, pela dignidade uma beleza funda que os versos sempre resgatavam, fazendo-se nisso universais.”
Embora Egito Gonçalves no-lo tivesse já dado a conhecer por meio de um punhado de poemas numa antologia de poesia catalã (“Quinze Poetas Catalães”, 1994), foi em 2009, numa edição belíssima da hoje extinta Ovni, que os tradutores Rita Custódio e Àlex Tarradellas, com a maior sensibilidade, nos apresentaram a uma das obras capitais de Margarit, uma obra que, depois de lida, deixa aberta “uma porta por onde tu cada vez/ vais mais longe e, então, voltas mais tarde”.
E foi então que o poeta primeiro se deslocou a Portugal para falar da sua obra, tendo dado uma memorável entrevista a José Gouveia, no programa Bairro Alto, da RTP2, e participando numa sessão na Casa Fernando Pessoa na qual leu vários dos seus poemas, traçando um contraste espantoso com o registo o tom tantas vezes cruel da sua poesia, lendo com um vigor invulgaríssimo e que mais ainda envergonha tantos poetas desses que se arrastam em homílias insuportáveis, como se a poesia não fosse mais do que a persistência de velhos rituais em homenagem a uma fé há muito perdida. Mochila lembra-o e “aquela ancestral juvenilidade do apaixonado deslumbrado e responsável, sabedor da sorte urgente e do peso do poder que no seu dom carregava”. Num testemunho prestado a este jornal, o tradutor faz questão de enfatizar a diferença e, por isso, a força do seu encanto, e como este se opunha à solenidade balofa desses poetas que tanto agradam ao poder. “Quantos e quantas o ouviram recordarão decerto a sua incomparável declamação comovida, que nunca se fez publicitária. Odiava, sim, tudo o que cheirasse a utensílio panfletário, a negócio emproado de poesia maiuscular, a puñetera politiquice, a bem-parecente e bem-pensante farsa. E amava e cuidava tão devotamente esses seus ódios que eram eles já a segunda mais pura expressão da seriedade do seu amor à vida e à poesia.”