Por Joaquim Silva Pinto, Gestor
Os debates televisivos foram determinantes para o triunfo eleitoral de Marcelo Rebelo de Sousa. No primeiro confronto, registou-se uma construtiva oposição ideológica com o porta voz da CDU, deixando-o confinado à progressiva decadência, local e até já sindical, da coligação comunista no paradoxo de ser ardorosa defensora da sub-dependência nacional dos apoios comunitários, sendo estruturalmente contra a União Europeia na sua projetada cooperação supranacional. Veio depois o cordial paternalismo em relação à candidata do BE, lisonjeando-a, amansando-a, remetendo a discípula de Francisco Louçã ao complexo de não ter demonstrado a agressividade a que vinha, frustração de que não mais se libertou em debates subsequentes ou ações de rua.
Guardou Marcelo o vigor polémico para o recontro com Tiago Mayan fundador da Iniciativa Liberal, partido que, desde a saída do seu primeiro presidente, não superou as limitações do liberalismo dogmático, incapaz de interiorizar a orientação do liberalismo sustentável, vulgo progressista, segundo o pensamento designadamente de Nathan Schlueter* apontado como motivo de reflexão por João Espada e Pedro Ferro, por ser uma diretriz liberal respeitadora das exigências societais e ambientais próprias do nosso tempo. Marcelo, ao distanciar-se do posicionamento da Iniciativa, estava no fundo a enviar mensagem ao PSD, que em futuro próximo deverá ser o condutor de um amplo movimento liberal progressista, agora que a globalização veio pôr em causa a social democracia, tal como Sá Carneiro defendia por inspiração nórdica europeia nos anos sessenta do século passado. Foi para o eleitorado mais credenciado um debate muito interessante, que aliás catapultou Mayan para o reconhecimento público, que bem poderá justificar vê-lo aspirar à presidência da Câmara Municipal do Porto ou autarquia vizinha.
Particularmente aguardado o debate com André Ventura justificando ter sido, no conjunto dos realizados na campanha entre a totalidade dos candidatos, o mais visto. Contava Ventura forçar uma seguinte volta, ou pelo menos vingar como segundo eleito distanciando-se dos restantes. Foi Marcelo sincero ao reconhecer a legitimidade jurídica como partido político do Chega, repudiando embora o estilo agressivo desse agregado reivindicativo. Fixou-se sem demasiada ênfase nalguns propósitos expressos por Ventura e sua heterogénea base de apoio, evitando assim uma polémica, que só reforçaria as aspirações políticas do opositor. Acabou o debate como convinha a Marcelo: uma deceção mediática com o pretendente esvaziado nas suas aspirações.
Assim chegámos ao debate final entre os dois teoricamente possíveis candidatos a reencontrarem-se numa fase seguinte, se a força da esquerda pusesse em causa o perfil centro direita de Marcelo, por mais que, durante o mandato a terminar, houvesse mantido equidistância. Estava, pois a contundente Ana Gomes disposta a um demolidor ataque para gáudio do seu eleitorado recrutado entre dissidentes da CDU, a maioria dos correligionários do BE e do PAN, bem como muitos socialistas anti-soaristas, embora alguns citando o falecido líder como tendo sido o contrário do que fora no essencial.
Para tanto não hesitara em escolher para diretor/mentor da campanha Paulo Pedroso, apesar das contraindicações por melindrosos rumores relacionados com o escândalo Casa Pia, porque assim incomodava Ferro Rodrigues e Ana Catarina Mendes, ambos ligados no passado e talvez ainda a Pedroso, mas sobretudo porque este é indiscutivelmente o mais afirmativo defensor da Frente Popular emergente de uma institucionalizada aliança de toda a esquerda de formação marxista. Daí ter sido a minha amiga Isabel Soares inconsistente ao ajudar Ana Gomes aceitando ser sua mandatária, visto a Fundação Mário Soares a que agora preside, ter tido como financiamento inicial a verba excedente da campanha centrista do MASP II. Por outro lado, não me lembro de ver Ana Gomes intervir em qualquer dos MASP. Se apoiou Mário Soares foi com excessiva sobriedade.
O comportamento de Marcelo nesse debate merece ser considerado um caso de estudo de como politicamente se deve levar o opositor ao tapete. Desarmada ficou a extremista pelo facto de ser, desde logo, tratada por Senhora Embaixadora lembrando-lhe o habitual perfil dos diplomatas, sem esquecer o empenho que pusera, honra lhe fosse, na defesa da independência timorense, valorizando com isso a projeção da língua e História portuguesas. Com isso teve a visada de agradecer. Depois, foi a condução do debate numa troca de argumentos no estilo atenciosíssimo, para no final Marcelo virar subitamente o disco. Pegando na descabida insinuação de Ana Gomes de que a demora na evolução do processo judicial respeitante ao grupo Espírito Santo, se estivesse a dever ao facto do principal arguido ter sido interlocutor frequente de Marcelo, antes deste se candidatar a Belém havia cinco anos, o reelegível considerou-se ofendido, pregando uma lição de ética a Ana, que a ouviu de cabeça baixa, sob o olhar de largos milhares de eleitores, uns deliciados, outros amargurados consoante pró ou contra. Adivinha-se que a socialista terá regressado furiosa consigo mesma por lhe haver faltado capacidade de reação. Por seu turno, Marcelo recusou aceitar os cumprimentos de alguns amigos próximos, porque é essencialmente um interlocutor cordial. Nesse momento político exigia-se, porém, a prevalência musculada, que demonstrou saber ter quando necessário.
A partir dos debates o resultado estava definido, a menos que a abstenção fosse para além dos limites realmente respeitados. Havia-se criado três níveis, o do campeão a atingir, apesar de todos os obstáculos que tivera de ultrapassar, os 60% desejados; o segundo baseado na disputa entre Ana Gomes e André Ventura na casa dos 10 a 15%; finalmente os restantes com inexpressivos resultados, todos eles muito aquém do que pretendiam. Ou seja, Marcelo venceu, convenceu e ditou as regras do comportamento previsível entre as formações políticas intervenientes na campanha. O discurso de vitória, no período de generalizada apreensão coletiva face à situação sanitária e suas repercussões sócio económicas, teve a dignidade e projeção do titular que o País necessita para a Chefia do Estado em período severo da vida Nacional onde as perspetivas de retoma apontam para um horizonte a médio prazo. Marcelo afirmou perentoriamente que será o mesmo homem. Contudo, a circunstância previsível será tão diferente da anterior à pandemia, que nos influenciará a todos. Vamos ter o Presidente Novo sem eleger um novo Presidente.
Grande agitação se vai processar politicamente na esquerda com a redução progressiva da CDU, que será a primeira formação política a insistir pela coincidência da antecipação de eleições legislativas com as autárquicas, para salvar a face mantendo-se acima dos 6%. Crescerá uma frente popular integrando socialistas, militantes do BE e do PAN, cuja liderança tanto poderá ser entregue a Ana Gomes, que não morreu politicamente, como a um experimentado dirigente do PS, que ultrapasse as veleidades de jovens auto convencidos. Afastadas as hipóteses de António Costa, que após a inglória presidência europeia e as confusões relacionadas com a pandemia estará generalizadamente queimado, bem como de Carlos César e Ferro Rodrigues por múltiplas razões, apontam-se como candidatos Santos Silva, ministro de variadas pastas e predador eficiente, ou o desaparecido António Vitorino.
Marcelo terá de se controlar evitando denunciar preferências. Exercício ainda mais difícil no que respeita à também inevitável renovação da direita onde o PSD não pode atrasar a substituição de Rui Rio, sob pena do Chega conquistar, na escolha de candidatos e no impacto discursivo, mais de um terço do eleitorado comum. Contudo, confia-se que a saída de Rio se revista da dignidade que este merece como homem sério e bem-intencionado, apesar dos erros sobretudo por omissão. Bem gostariam muitos que a nova fase do partido fosse entregue a Passos Coelho, mas como amigo deste julgo perceber estar efetivamente assumido pelo próprio o firme propósito de não regressar ao protagonismo politico a curto prazo. Sendo assim, parece-me positiva a solução que ouvi de fonte segura, que naturalmente nunca iria divulgar prejudicando o impacto oportuno.
Uma coisa é certa: Marcelo vai dispor da feliz situação de poder arbitrar entre dois blocos estruturalmente bem definidos, cada qual com um partido prevalecente, ou seja remetendo a CDU e o Chega para o lugar próprio de partidos reivindicativos, aos quais por definição se perdoam exageros na proposição das reivindicações. Será que Marcelo Rebelo de Sousa poderá corresponder ao desafio que se lhe oferece? Pessoalmente respondo que sim. Intuitivo como é alia a essa vantagem uma quase simultânea capacidade de reflexão, o que é raro. Tem nervos de aço, ralha sem se zangar. Possui um qualificado grupo de fiéis entusiastas entre os quais se contam dois irmãos exemplarmente dedicados. Sabe pensar não deixando de sonhar. Mas, obviamente, o leitor pode duvidar. Não esqueçamos, todavia, Santo Agostinho quando salientava que se o presente do passado é a memória, o presente do futuro se chama Esperança. A mensagem templária das capelas (sempre) imperfeitas materializada no Mosteiro da Batalha, como tão bem explicava o culto arquiteto filho que, tal como desabafei no inicio desta série de artigos, inesperadamente vi partir.
*Sustainable Liberalism
https://www.thepublicdiscourse.com/20-12/127322(2019)-07)