No Vaticano, ninguém queria que o Papa Francisco fizesse esta viagem ao Iraque, a mais perigosa em todo o pontificado. Afinal, estamos a meio de um pico de covid-19, semanas após um duplo atentado suicida matar 32 pessoas num mercado de Bagdade, dias após milícias xiitas atingirem com mísseis bases americanas.
“Se ouvires pessoas do topo do Vaticano, os seniores, ninguém o tem encorajado a ir. Dizem espera, espera, adia!”, escreveu um repórter da America Magazine, uma revista jesuíta. Ainda assim, contra tudo e contra todos, o sumo-pontífice não abdicou de avançar com a primeira visita Papal ao país. De ver com os seus olhos a devastação deixada pelo Estado Islâmico, de reunir com cristãos, yazidis, mandeístas, sunitas e xiitas, na região onde nasceu Abraão.
“Anseio encontrar-me convosco, ver os vossos rostos, visitar a vossa terra, o antigo e extraordinário berço da civilização”, declarou o Papa, num vídeo divulgado esta quarta-feira, apelando a preces pelo sucesso da visita. “Não podemos desapontar este povo uma segunda vez”, acrescentou Francisco, referindo-se à tentativa falhada de João Paulo II de visitar o Iraque, em 1999, frustrada por uma desentendimento entre o Vaticano e Saddam Hussein.
Desta vez também não faltam obstáculos. Face ao entusiasmo dos cerca de 250 mil cristãos iraquianos, bem como de muitos outros que, por uma vez, veem o seu país nas notícias por bons motivos, temia-se que multidões saíssem às ruas para saudar o Papa. Dado que o Iraque ainda só recebeu uma pequena remessa de vacina vinda da China, e que bateu o recorde de novos casos na quarta-feira, com mais de cinco mil infeções, não podia haver pior cenário. Daí que as autoridades iraquianas tenham imposto um estrito confinamento durante a visita do Papa, com recolher obrigatório.
O próprio Papa Francisco, de 84 anos, já foi vacinado contra a covid-19, tendo as dezenas de funcionários e jornalistas que acompanham a visita de fazer o mesmo. Além disso, Francisco deverá viajar num carro blindado, com um grande destacamento de segurança, avançou a Associated Press.
São medidas particularmente penosas para um Papa que sempre gostou de banhar-se na multidão. No entanto, Francisco não deverá ficar completamente desiludido, dado que foram preparados 10 mil bilhetes para o último evento da sua visita, uma missa ao ar livre em Erbil.
Tragédia e redenção Na Igreja de Nossa Senhora da Salvação, em Bagdade, decorada com murais a comemorar a visita do Papa, a alegria mistura-se com a memória da tragédia do passado. O chão branco sobre o qual Francisco caminhará, rumo ao altar onde fará o seu primeiro discurso no país, está pontilhado de lajes vermelhas – cada uma marca o local onde morreu um paroquiano, há uma década atrás, quando a igreja foi cercada por terroristas, que abateram mais de cinquenta pessoas a tiro e granada.
Nesses anos de terror após a invasão norte-americana do Iraque, em 2003, boa parte dos cristãos iraquianos já se tinham posto em fuga, sobretudo para a Europa Ocidental, Estados Unidos e Austrália. Os censos mostram uma diminuição de mais de 80% desta comunidade, que em 1984 era composta por mais de 1,4 milhões de pessoas.
O caos afetou particularmente os cristãos. No tempo da ditadura de Saddam, que reprimiu brutalmente xiitas e curdos, os cristãos escaparam relativamente incólumes, ganhando até influência, a troco de não contestarem demais. O próprio Tariq Aziz, número dois do regime, era um assírio de religião católica – após a queda do regime os novos senhores do país não o esqueceram, e houve uma enorme campanha de homicídios em massa, violações, raptos e atentados contra cristãos.
O surgimento do Daesh, em 2014, levou a perseguição a um novo nível. Os jihadistas tomaram de assalto as planícies de Nivive, no norte do país, onde se concentrava boa parte dos cristãos, devastando uma das suas principais cidades, Qaraqosh, após a fuga das forças curdas.
Hoje, Qaraqosh prepara-se ansiosa para receber o Papa Francisco, que no último dia da sua visita irá à Igreja da Imaculada Conceição. Ainda se veem as cicatrizes deixadas pelos jihadistas, que incendiaram o interior da catedral, destruindo estátuas, queimando livros antigos e manuscritos. Sobrou uma enorme mancha negra no pátio da catedral, usado como campo de tiro pelo Daesh.
Já a população não esquece o que viveu, quando tinha de escolher entre tentar fugir, morrer, ou pagar um pesado imposto – no Corão chamam-lhe jizya, a taxa cobrada a crentes de outras fés abraâmicas por senhores muçulmanos. O pior passou, a Igreja da Imaculada Conceição até já foi reconstruída, como sinal de esperança para a comunidade, mas a sensação continua a ser de abandono.
“O que me assusta é que, nesse período, ninguém nos perguntou o que perdemos”, lamentou Bashar Warda, arcebispo de Erbil, à CNN. “Temos um número decrescente de mandeístas, yazidis e de cristãos”, referiu, apontando o dedo à elite política em Bagdade. “Eles não querem saber”, acusou o arcebispo. “Tal como não quiseram saber quando perdemos a comunidade judaica, nos anos 40, 50 e 60. E o ciclo continua”.
Rumo à terra prometida Não são só os cristãos iraquianos que estão nas preces do Papa Francisco. “Desejo de orar com irmãos e irmãs de outras tradições religiosas”, salientou o sumo-pontífice, referindo-se aos iraquianos como “uma única família de muçulmanos, judeus e cristãos”. O Papa apresentou-se como “peregrino de paz”, com o objetivo de ”implorar ao Senhor perdão e reconciliação depois de anos de guerra e terrorismo”.
Aliás, no sábado, o sumo-pontífice planeia visitar a cidade santa de Najaf, para se reunir com o grande aiatola Ali al-Sistani, o principal líder xiita iraquiano, um dos mais influentes clérigos muçulmanos – Sistani é visto como contrabalanço ao Supremo Líder do Irão, o aiatola Ali Khamenei, e opositor ao controlo político por clérigos.
Num mundo onde há décadas vinga a narrativa de choque de civilizações, o mote da visita do Papa ao Iraque – “vocês são todos irmãos” – tirado do Evangelho de São Mateus, é uma tentativa clara de contrariar a maré. Aliás, Francisco já fizera história há dois anos atrás, ao encontrar-se com o xeque Ahmed al-Tayeb, grande imã da mesquita de al-Azhar, no Cairo – talvez tão influente entre sunitas como Sistani entre xiitas.
É difícil imaginar melhor símbolo da coexistência religiosa que o Papa Francisco procura que um dos pontos altos da sua visita, uma cerimónia religiosa que juntará diversas fés nas ruínas de Ur. Foi dessa antiga cidade que Abraão, patriarca dos povos bíblicos, terá partido rumo a Canaã, a terra prometida – dando origem a tantas das religiões que ainda hoje se digladiam pelo mundo fora.