É um calhamaço, e sem ser só disto ou daquilo, em Um Homem é um homem, um gato é um bicho (2015-2020), o autor vai ciscando o rebuliço das peripécias que vão dando espessura ao caldo dos dias, com mais ou menos política. Mas se o antigo jornalista garante que não tem saudades da profissão, essa que trocou, ao fim de duas décadas, em 1999 para se dedicar ao marketing político, continua atento aos jornais, interessado nos protagonistas da vida pública portuguesa, muitos deles seus amigos. Conta à Luz, como foi escrever este livro híbrido entre o diário, a crónica, as memórias, aquilo que o gato faz com as espinhas para se entreter. Filho de José Fernandes Fafe, o primeiro embaixador português em Cuba após o 25 de Abril, viveu boa parte da adolescência fora do país, e depois de ter começado como jornalista no Expresso, passou pelo Tal & Qual, 24 Horas e Sábado. Aos 38 anos, passou para os bastidores da política, e tem vivido entre Portugal e o Brasil nos últimos anos, tendo começado a escrever nas redes sociais como forma de se manter ligado aos amigos e de ir aclarando a sua voz através desses eventos que desenham o contorno do tempo.
Neste livro parece haver uma certa saudade de registos que se diluíram uns nos outros, e que aqui acabam misturados. A crónica com o registo diarístico com o comentário político… Em que medida é que a escrita nas redes sociais contribuiu para a hibridização destes géneros? Comecei por ter um blogue. Nela usei como frase-talismã uma expressão que a minha mãe usava muito, tal como aquela que serviu de título a este livro. «Quem não tem cão caça com gato». Era essa a frase. E era um pouco isso. Abandonei o jornalismo em 1999, ao fim de 21 anos. Fiz de tudo nesse período. Fui de estagiário a diretor e a administrador de jornais. Nunca tive saudades, mas volta e meia dava-me a vontade de escrever. Era uma necessidade que por vezes se impunha. Foi por volta de 2008 que comecei a escrever no blogue e era uma mistura entre um registo memorialista e o de ir afinando certos factos, extraindo deles a minha perspetiva. Tive uma vida muito rica, vivi fora muitos anos, e isto até pelos pais que tive, e essa necessidade de ir contando foi-me empurrando de umas plataformas para as outras, nas redes sociais. O Facebook tornou-se esse espaço onde escrevo e que me serve também como fonte de informação e ligação.
E como é que qualificaria essa porosidade que está na base deste registo?
Sempre foi este o meu registo. Nos anos em que escrevia no Tal & Qual sempre me foi dada a liberdade de misturar estes géneros. Embora relatasse factos não me inibia de traçá-los segundo uma opinião, e tecer considerações com algum humor e ironia, ou tentando explorar liberdades que outros não se davam. Com os anos, entre 2015 e 2020, ao reler estes textos agora reunidos, sinto que inicialmente havia um esforço de escrever de forma mais elaborada, ao passo que ultimamente senti que estava a ser mais direto, pondo de lado os rodriguinhos. Na altura em que descobri o Facebook, vivia lá fora, estive no Brasil, na Argentina, no Chile… E aquilo foi-me apresentado como uma comunidade, e, de certo modo, aproximava-me de cá. Por ali, ia colando num fio aquilo que se ia passando, e ao escrever sobre isso, sobre Portugal, mantinha a ligação. E desde a adolescência, tendo estado fora entre os 13 e os 18, e isto nos tempos do PREC (em Cuba, curiosamente), sempre achei que tínhamos uma imagem mais real do que se passava no país do quem lá ficou. Isto porque apreendíamos o essencial, ao invés de ficarmos toldados pela dispersão de acontecimentos, muitos dos quais sem grande substância no tempo. As coisas chegavam-nos mais filtradas.
Tendo passado pelos jornais nos anos 80 e até ao final do século, neste período parece ter havido uma supressão dos géneros jornalísticos. Estando hoje ligado ao fenómeno da comunicação nos bastidores da cena política, no marketing das campanhas, gostava que comentasse uma frase de Raymond Aron sobre o que surge hoje nas colunas de opinião dos jornais. Dizia ele que os leitores dos jornais não querem as opiniões dos articulistas, querem articulistas que justifiquem as opiniões dos leitores.
Parece-me que o jornalismo continua a mudar, e mudou muito de 1999 para cá. Acho que ainda sobrevivem alguns cronistas de exceção, como é o caso do José Ferreira Fernandes, como no Brasil temos o caso do Ruy Castro. Não são casos únicos, mas começam a ficar isolados. Por cá, o que me parece é que qualquer um se sente à-vontade para se dedicar ao comentário político. Qualquer pessoa se sente capacitada para interpretar as questões políticas, e isso não só dá disparate, mas raramente há lugar a correções, as coisas ficam por aí e só geram confusão. Depois, muitos sentem necessidade de montar argumentos para gerar uma unanimidade. Temos muito poucos comentadores que surjam enquanto vozes de rutura. E depois há esta vaga do politicamente correto que tem uma série de papagaios a dar concertos. Mesmo um cronista como o Miguel Sousa Tavares, que tem a imagem de cortar com essa linha, acaba por sentir a sua sedução. Se calhar também a mim me aconteceu nestes anos, nos textos que agora aqui surgem reunidos. A verdade é que isto é como uma avalanche e a partir de um certo momento é difícil escapar-lhe. Cada vez mais se escreve para dar respaldo a essas opiniões que já vagam por aí num ou noutro sentido. É como se o tiro soasse só depois dos ecos.
Agora que reuniu estes textos que foi escrevendo ao longo de cinco seis anos, como foi reler-se, com que sensação ficou do balanço que foi fazendo?
Fiz também uma limpeza, e fui retirando tudo o que não me parecia que fizesse já sentido passado este tempo. Isto é um calhamaço, ficou maior do que esperava. Mas houve coisas que, na releitura, me pareceu que não devia ter escrito. Outras pelas quais fui bastante criticado mas que voltaria a escrever. Fui buscar também outros textos de tom mais memorialista que fui escrevendo e que me pareceu que complementavam estes, mas que não tinham cabimento nas redes sociais. No Facebook poderiam ter parecido pretensiosas. Como a história de ter sido jardineiro do Anthony Quinn.
A que tipo de leitores é que dirige este livro, que muitas vezes nos puxa para um tom de conversa?
Este livro foi escrito para os amigos. Quando reuni os textos, organizei-o para os amigos. Tenho quatro filhos e espero que eles tenham paciência um dia de ir saber o que eu pensava das coisas. A minha grande ambição é ser o pai que o meu pai foi para mim. Tive muita sorte com os meus pais, tive uma vida maravilhosa. E, agora, depois deste, todos os anos voltarei à carga. Volumes mais breves, mas será assim que vou prosseguir neste trilho. No início de 2022, sairá um livro com o título de mais outra expressão que ouvia muito à minha mãe: “Tudo na mesma como a lesma”. E isto ajusta-se a esta pandemia que nunca mais se resolve. l