Há meses que o Governo moçambicano fala em avanços contra a insurreição em Cabo Delgado, à medida que se expandem os apoios internacionais, chegando até a anunciar um protocolo, na quarta-feira, com a petrolífera francesa Total para retomar a exploração de gás liquefeito na península de Afungi, mediante medidas extra de segurança – nessa mesmo tarde, em plena luz do dia, jiadistas avançaram sobre a vila de Palma, a capital distrital, considerada uma das localidades mais seguras, a uns meros 25km dos campos de prospeção.
Os jiadistas atacaram de surpresa, vindos de três direções, tomando o aeródromo da vila e pondo boa parte da população em fuga para o mato, admitiram as próprias forças armadas moçambicanas, em conferência de imprensa. Entretanto, pelo menos dois portugueses, que estavam em Palma a trabalhar na prospeção de gás, já se conseguiram esconder num hotel, segundo a Lusa, junto com 200 pessoas de outras nacionalidades. Enquanto isso, o tiroteio continuava noite dentro, havendo relatos de helicópteros a sobrevoar a vila, a disparar sobre os insurgentes, sendo encontrados cadáveres nas ruas, alguns decapitados, avançou a Reuters.
Foram atacados e saqueados centros comerciais, serviços bancários e até o quartel Unidade de Intervenção Rápida (UIR), as forças de elite da polícia moçambicana, avançou a Carta de Moçambique. Esta sexta-feira, a rede móvel de Palma continuava em baixo – uns falam em sabotagem, outros numa tentativa das autoridades de dificultar as comunicações dos insurrectos – e ainda não se sabia a extensão real da tragédia, para desespero de quem deixou família e amigos para trás.
É esse o caso de uma estudante do secundário, que fugiu de Palma com a sua filha, há uns meses, para a capital provincial, Pemba tentando escapar à falta de comida e ao medo. «Saí de lá porque havia ataques nas aldeias, entravam e queimavam, matavam pessoas», contou ao Nascer do SOL por telemóvel, pedindo anonimato. É que o seu cunhado ficou em Palma, a trabalhar – não se sabe se está vivo ou morto. «Ele ligou a dizer que entraram terroristas na vila, que ia correr para o mato. Desde então não sei nada dele, o povo da vila não responde», lamentou, em pranto. «Estou na casa dele, mas não sei dele. E aqui a gente está cheia de fome».
Dinâmica complicada
O choque com o ataque a Palma é palpável, diz o diretor do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE). «Apanhou-nos de surpresa a todos», assume Salvador Forquilha. «Se conseguem tomar uma vila como Palma, quando todo o mundo pensava que eles estavam enfraquecidos… Então a situação é muito mais grave».
«É interessante que houve uma espécie de motim em Palma, uns dias antes do ataque, devido à crise alimentar. O nível de descontentamento local aumentou», refere o investigador do IESE. «Ouvi vários relatos de que jovens mesmo de Palma que se decidiram juntar ao grupo quando entrou na vila, outros já colaboravam e pegaram nas suas armas. O que complica mais o cenário», alerta. «É muito parecido com o que aconteceu em Mocimboa da Praia», acrescenta Forquilha, referindo-se à localidade tomada o ano passado, com apoio de parte da população, que celebrou nas ruas, enquanto outros fugiam.
«E daqui a pouco esta situação vai-se complicar mais ainda, quando aumentar a presença externa, mesmo que seja apenas a nível de recolha de informação, treino e equipamento», considera o investigador.. «É muito fácil capitalizar o descontentamento local e construir uma narrativa de que as forças de defesa e segurança se transformaram em fantoches de potências externas. É um pouco o que acontece por todo o mundo, no Sahel, na Somália», enumera. «Para ser franco, não vejo uma solução à vista».