Passaram dez anos desde que Portugal pediu ajuda financeira. Apesar do pedido ter sido feito por José Sócrates foi Pedro Passos Coelho quem pôs em marcha o plano de recuperação. Cortes, austeridade, aumento de impostos foi a receita imposta pela troika e só, em maio de 2014, é que o país anunciou que tínhamos recuperado a credibilidade, apesar do olhar atento dos credores internacionais.
A economia cresceu, as exportações também e o mesmo caminho foi seguido nos rendimentos dos portugueses, a par de aumento da carga fiscal. Portugal parecia estar a suspirar de alívio até que a pandemia veio baralhar as contas nacionais. O Nascer do SOL falou com vários economistas para saber o que mudou desde aí, se aprendemos a lição e o que nos espera pela frente.
César das Neves
‘A crise de 2011 assombra-nos’
Para o economista não há dúvidas: «Portugal aprendeu, e muito» desde o pedido de resgate financeiro há 10 anos e admite que «a crise de 2011 assombra-nos e vai assombrar-nos durante muito tempo». Ainda assim, César das Neves admite que, desde 2011 mudou muito na nossa economia. «Basta ver a atenção que os governos destes 10 anos têm tido com o controle orçamental, que não tinham antes».
Em relação às críticas que são feitas e que dizem respeito às reformas, em que algumas não saíram da gaveta, o professor universitário reconhece que o problema de falta de reformas após a crise financeira é um problema de todo o Ocidente. «Não foi feito o suficiente e, por isso, a ameaça financeira permanece. Portugal foi, aliás, dos poucos países que fez algumas reformas. É verdade que fez poucas reformas e mal, mas fez algumas, em que as principais foram no mercado de trabalho, e ainda não foram revertidas».
E, no entender do economista, a pandemia veio pôr em causa a situação económica do país, sem ainda saber quais serão as verdadeiras consequências. «A pandemia é uma desgraça que paralisou a nossa economia como nunca antes. Ainda é cedo para saber o que vai acabar por acontecer, mas neste momento não há ainda recuperação. Teremos de recuperar desta nova crise, antes de acabar a recuperação da anterior».
No entanto, reconhece que há riscos que poderão voltar a repetir-se. Um deles diz respeito à crise do imobiliário com César das Neves a lembrar «que depois desta pandemia pode vir a existir uma grave crise financeira, de que o mercado imobiliário é uma componente séria».
O mesmo poderá acontecer com o desemprego. «Neste momento, o mercado do trabalho está em grave crise, sem par na nossa história recente, algo que não se traduz ainda nos dados do desemprego por várias razões, uma das principais é o layoff», refere.
Nuno Teles
‘O Governo parece ter aprendido a lição errada’
«O Governo parece ter aprendido a lição errada. Ao contrário do que está a ser feito por todo o mundo, onde o Estado assume o papel principal na recuperação económica, o Governo português é dos mais complacentes do ponto de vista orçamental, esperando fundos europeus que tardam em chegar»: o alerta é dado por Nuno Teles ao Nascer do SOL.
E o economista afirma que «esta complacência, confundida com precaução devido aos anos de troika, tornará esta crise mais profunda e com mais cicatrizes na própria capacidade fiscal do Estado», lembrando que a capacidade de financiamento do Estado e os juros cobrados não têm qualquer relação com esta posição prudente, mas com as mudanças de política monetária por parte do BCE que assegura baixas taxas de juro na dívida portuguesa. «Se não fosse assim, não se entenderia como países europeus com dívidas comparáveis à portuguesa e com maiores gastos tenham taxas de juro parecidas», diz.
Em relação à intervenção da troika há 10 anos, Nuno Teles garante que obedeceu à lógica de preservação do valor financeiro dos credores do Estado português, em que foram esses que foram resgatados. «A austeridade, privatizações e desregulamentação de mercados, hoje desacreditadas, obedeceram a esse princípio e não a uma qualquer reestruturação da economia portuguesa que a tornasse mais robusta e justa. No entanto, os efeitos estruturais fazem-se sentir até hoje».
Para o economista, os resultados estão à vista: «Uma economia mais baseada no trabalho barato – uma das condições do boom do turismo – com serviços públicos erodidos, sem ativos públicos estratégicos (da energia aos transportes) e com um setor financeiro fragilizado. Todos estes fatores exacerbaram a vulnerabilidade externa da nossa economia, tornando-a mais suscetível a choques como o que vivemos hoje».
E isso, de acordo com o mesmo, levou a que a economia portuguesa tenha sido agora das mais afetadas do mundo durante a pandemia. «Mais grave, o Estado não tem os instrumentos, nem a autonomia orçamental (o medo da imposição externa permanece) para fazer face à gravidade da presente crise. Se a presente crise não consequência da troika, a sua gravidade deve muito aos anos de intervenção e às mudanças ocorridas nesse período», diz.
Mas o professor universitário lembra que Portugal poderá agora aprender a lição, ao contrário do que aconteceu no período da troika. «A pandemia veio tornar mais salientes as fragilidades do crescimento iniciado em 2015, baseado nos baixos salários no turismo e no setor imobiliário e apoiado por fluxos de capitais estrangeiros que chegou ao nosso país em busca de rendibilidade. Talvez a presente crise possa ser uma oportunidade de aprendizagem em relação às bases frágeis que promoveram esse crescimento», diz ao nosso jornal.
Ainda assim, alerta para vários riscos que poderão ser uma espécie de dejá-vu desse período.
Uma das situações críticas diz respeito ao mercado imobiliário. «Com a fuga de capitais, colapso do turismo e vencimento de moratórias num contexto de subida do desemprego, as perspetivas em relação ao mercado imobiliário são naturalmente bastante negativas no curto prazo», acrescentando, que no médio prazo, com os planos de gastos nos países mais desenvolvidos, como os EUA, possa existir um novo impulso à liquidez financeira internacional em busca de rendibilidade no imobiliário.
E o economista deixa um alerta: «Portugal foi o bom aluno da troika, indo muito além do que seria expectável numa intervenção de ‘ajustamento estrutural’, com desregulamentação profunda de vários setores, do trabalho ao arrendamento. Seria cometer novamente o mesmo erro se se pensasse que este setor é base sólida para crescimento e prosperidade. Os efeitos sociais do boom de preços no imobiliário foram dramáticos para as famílias mais vulneráveis, dependentes do mercado de arrendamento».
Mas não ficará por aqui. Também o mercado de trabalho não ficará alheio à crise pandémica. «Muitas empresas só ainda não fecharam portas graças ao layoff. A perda de rendimento da economia nacional não será recuperada rapidamente e tal quebra terá como consequência o aumento das falências e do desemprego».
Já em relação ao mercado imobiliário e que causou maiores dores de cabeça no período da troika, o economista chama a atenção para a existência de duas realidades. Por um lado, o mercado de luxo que, no seu entender, é de prever que se mantenha e até cresça, «pois a concentração da riqueza e as desigualdades continuam a aumentar no nosso país o que tem sido agravado com a crise económica e social».
Piores notícias para o mercado acessível à maioria dos portugueses que compram casa com crédito bancário. «Com as dezenas de milhares de moratórias concedidas, as famílias por terem perdido rendimentos e com o fim anunciado destas para setembro de 2021 e, consequente, previsível falência de milhares de famílias que serão obrigadas a entregar as suas casas à banca por impossibilidade de as pagar, este mercado será inundado por milhares de imóveis e previsivelmente sofrerá uma forte quebra», refere.
Luís Aguiar-Conraria
‘Aprendemos bem demais com a troika’
«A principal mudança será, talvez, as exportações que passaram a ter um peso maior. Na altura em que a troika interveio tínhamos um grande défice externo. As nossas contas externas estavam sempre desequilibradas, o que acabou por mudar». Este é o balanço feito pelo economista dez anos depois de termos pedido a intervenção da troika que, ainda assim, reconhece que não é essa a tábua de salvação para o estado económico do país. «Isso não nos protege agora da crise porque a covid-19 atinge o mundo inteiro. Quando os outros países estão em crise e importam menos, também importam menos das coisas que exportamos», afirma ao nosso jornal.
Outra alteração, de acordo com o economista, diz respeito ao investimento público. «Caiu bastante durante a troika, continuou a cair nos governos seguintes e ainda não subiu, ainda estamos em patamares abaixo. Isso nem se vê no Orçamento do Estado, vê-se na execução do Orçamento do Estado», refere.
Também o nível de desemprego está longe dos patamares daqueles período, no entanto, lembra que medidas de apoio, como o layoff, estão a mascarar a atual realidade do país. «Só daqui a uns meses é que vamos ter a noção exata do verdadeiro valor do desemprego. Não vale a pena especular e, mesmo pegando nas previsões do Banco de Portugal, em que está previsto uma taxa de 7% este ano é bem mais simpático face aos 17% da altura da troika. Nesse aspeto estamos muito melhor», assim como, segundo o mesmo, na parte financeira.
Mas aí deixa um recado: «Seria mau que os nossos bancos não estivessem agora em melhores condições do que estavam na altura da troika. Agora temos é muito mais dívida pública. Claramente é o nosso calcanhar de Aquiles».
Em relação à aprendizagem não tem dúvidas: «Até diria que aprendeu de mais. Acho que entrámos numa fase de ‘gato escaldado de água fria tem medo’. Neste momento, o Governo está tão traumatizado com a crise que trouxe da troika, que se calhar agora deveria estar a ter défices um bocadinho mais elevados e não está a ter. Mas percebo. Se estivesse no lugar do Governo se calhar também teria medo».
No entanto, o economista mostra-se otimista e garante não conseguir trabalhar com medo. Como tal, acredita que se Portugal começar a crescer no próximo ano, o défice rapidamente irá desaparecer. «Na altura, quando foi a crise financeira internacional, o nosso défice chegou a atingir os 11%. E agora, perante uma crise brutal, em que era necessário apoiar tanto a economia, o nosso défice de 2020 anda à volta dos 6%. É um número razoável, digamos assim, e que mostra que essa lição da importância de ter as contas públicas equilibradas está aprendida».
Quanto às reformas levadas a cabo nesse período, Luís Aguiar-Conraria lembra que a reforma no mercado laboral, até à data, não foi revertida e o desemprego continua relativamente baixo. Todavia, isso não permite suspirar de alívio: «Há o perigo de empresas que, no fim deste período, quando quiserem voltar à atividade, estejam demasiado endividadas e que se tornem um peso para a economia», acrescentando que a questão das reformas estruturais é para pôr o país a crescer mais. «É preciso arranjar uma forma de pôr o país a crescer mais depressa. Agora estamos a falar de uma crise conjuntural. Isto é um choque tremendo que foi provocado pela pandemia e não havia nenhuma reforma que pudesse ter sido feita que pudesse impedir isto ou tornar isto mais fácil no curto prazo. No longo prazo, sim», salienta.
Em relação às consequências da pandemia, o professor universitário reconhece que é necessário esperar para ver para saber quais são as verdadeiras consequências. «O pior está para vir? Não sei. Isso é o que vamos ver, esperamos que não. Para já, este ano e meio em que estamos nisto foi terrível para algumas pessoas», acrescentando que «o Governo falhou nos apoios a essas pessoas. Agora, para o futuro, se a economia começar a crescer novamente, pode ser que essas pessoas sejam absorvidas pela economia e que essas situações se resolvam. Agora é necessário fazer um compasso de espera».
Eugénio Rosa
‘Portugal não aprendeu com a crise’
«Portugal não aprendeu com a crise e a prová-lo está o baixo investimento de uma forma acentuada o baixíssimo investimento público causada pela obsessão do défice e pela intenção de obter saldos orçamentais positivos, o que tem tido elevados custos para o país, já que o fragilizou enormemente como a grave crise de saúde pública, social e económica causada pela covid». A garantia é dada por Eugénio Rosa e diz que isso é visível por o país continuar a apostar num modelo de crescimento económico baseado em trabalho intensivo e pouco qualificado, em baixos salários e em atividades económicas de baixa intensidade tecnológica e de conhecimento.
E os exemplos não ficam por aqui. «Isso também está visível na enorme dependência da economia portuguesa face aos outros países, quer a nível de exportações quer de ao nível importações. Até grande parte do que comemos é importado. Assim, dificilmente o país se libertará do estado de atraso e de dependência em que se encontra o que será ainda mais grave devido ao retrocesso económico e social causado pela pandemia».
De acordo com o economista não há dúvidas: nos últimos anos, Portugal aumentou a dependência e a vulnerabilidade da sua economia em relação ao exterior. E lembra que, entre 2011 e 2019, – último ano de atividade normal – o peso das exportações em relação ao PIB aumentou de 34,5% para 43,5%. E nas exportações o que mais cresceu foram os serviços, fundamentalmente o turismo, que entre 2011 e 2019, subiu de 26,7% para 32,5% no total das exportações. Em 2019, a valor das exportações de ‘serviços’ representava 14,3% do PIB. «A dependência externa da economia portuguesa era e é enorme, e qualquer crise nos mercados externos teria um efeito devastador como está a acontecer. Esta vulnerabilidade da economia portuguesa é ainda acentuada pela estrutura da economia e das exportações», diz ao nosso jornal.
Eugénio Rosa não fica por aqui e recorda que, nos últimos quatro anos, o crescimento económico foi conseguido fundamentalmente com o emprego de mais trabalhadores e não por meio do aumento da produtividade. «Tudo isto levou a que o país se encontrasse muito fragilizado para enfrentar uma crise com a dimensão da atual. A recuperação será longa e difícil. E não são as previsões otimistas das entidades oficiais que mudarão a realidade».
Um desses casos será, segundo o economista, visível na taxa de desemprego ao lembrar que muitos trabalhadores em layoff e, até mesmo, em teletrabalho serão atingidos pelo desemprego se a economia não recuperar rapidamente. Ainda assim, admite que, enquanto isso não acontecer não serão considerados desempregados, embora considere que «muitos deles sejam ‘falsos empregados’ porque correm o sério risco de serem despedidos a continuar o confinamento, mesmo intermitente».
Eugénio Rosa dá números. «Em março de 2021, estavam na situação de layoff simplificado 279.630 trabalhadores. É evidente que são trabalhadores que não criaram riqueza. A estes há ainda a acrescentar aqueles que trabalham em casa, em teletrabalho, e que, segundo o INE, no fim de 2020 atingia 351.4 mil, e cuja produtividade da maioria deles é inferior à obtida nos locais de trabalho. Pode-se mesmo dizer que o teletrabalho está a causar uma profunda desorganização nos serviços públicos e uma redução significativa dos serviços prestados à população. Os portugueses sentem na sua vida diária», diz ao Nascer do SOL.
Quanto às reformas que Portugal deveria fazer a partir desse período, Eugénio Rosa garante que é necessário clarificar o que se pretende quando se fala da necessidade de reformas estruturais, o que entender do mesmo, «para a maioria dos que as defendem, significa liberalizar ainda mais os despedimentos, privatizar o pouco que resta sob o controlo do Estado e desregulamentar ainda mais a economia. Não é destas reformas que o país precisa e não será com elas que sairá do estado de atraso em que se encontra».
Um caminho que recebe cartão vermelho por parte do economista. «Os problemas atuais dos país, e consequentemente o seu atraso e dificuldades, resultam do baixíssimo investimento e do baixo nível de escolaridade e de qualificação de uma parte muito significativa da população empregada o que associada a uma política de baixos salários quer no setor privado quer no público tem levado à imigração de muitos portugueses altamente qualificados», conclui.
Susana Peralta
‘Ficámos obcecados com o défice’
A economista lembra que, até 2019, estava tudo a crescer: economia, exportações, o rendimento médio das pessoas aumentou, enquanto a taxa de desemprego diminuiu. Tudo isto, enquanto se assistiu a uma melhoria ao nível do tecido empresarial, a par da gestão do dinheiro público para uma cultura muito mais exigente e mais cuidadosa. «Assistimos a um maior controlo das contas públicas e a um maior controlo do défice, o que é obviamente um ganho desses anos do trauma da troika», diz ao Nascer do SOL, acrescentando que «passámos a estar menos endividados, o nosso sistema financeiro ficou em melhores condições, mais saudável, mais robusto e com maior capacidade de enfrentar, esperemos nós, aquilo que estamos a pedir deles, que é aguentar com o choque das moratórias. Vamos lá ver se vão conseguir, mas tudo isso foram aprendizagens daquela crise».
No entanto, Susana Peralta admite que há lições que Portugal não aprendeu e dá o exemplo do investimento que foi feito na TAP. «Assim que foi preciso ir atrás da TAP foram num movimento de voluntarismo completo, sem pensar nas consequências, nem na verdadeira utilidade do dinheiro, sem investir no sistema de ensino público ou no SNS que tanto estão a precisar neste momento crítico».
E aprendemos com a troika? A professora universitária não hesita na resposta: «Aprendemos bem demais no sentido de termos ficado obcecados com o défice de tal maneira que, neste momento de grande crise, o Governo português foi dos mais tímidos da União Europeia em gastar dinheiro», garante ao nosso jornal.
Mas lembra que se desse ponto de vista se não deixar o défice descontrolar fomos bons alunos, por outro lado, chama a atenção para o facto de ainda termos despesa pública má e de ainda termos pouco cuidado na gestão da própria receita. «Acabámos de deixar fugir receitas fiscais da venda das barragens da EDP. Ficámos a ver navios na receita fiscal, sem nenhuma razão para isso. Deixámos fugir receita fiscal num negócio que tinha de ser aprovado por várias instituições do Estado. Nesse aspeto, continuamos a ter muitas lições para aprender porque o défice é a diferença entre a receita e a despesa. Neste momento da crise seria de mais elementar justiça não deixar aquele dinheiro fugir assim».
Desta forma, considera que aprendemos q.b. e mesmo no próprio controlo do défice, admite que temos um longo caminho a fazer para que Portugal tenha um processo orçamental do século XXI que permita uma gestão mais eficiente e mais descentralizada do processo orçamental.
Quanto à taxa de desemprego, que na crise da troika chegou a atingir os 17%, a economista diz que não pode ser comparado com o que se vive atualmente e, como tal, garante que não vale a pena estar a olhar para os números, já que estão congelados. «O que acontece agora é que as empresas que estão a receber apoios do Estado, nomeadamente o layoff mas não só, estão proibidas de despedir. Mas quando olhamos para os números do IEFP vimos aumentos substanciais. Ou seja, quando comparamos os números de 2019 com os números de 2020 assistimos a aumentos de 40%. Não são trabalhadores que estão abrangidos pelo layoff, são trabalhadores temporários e os prestadores de serviços, os chamados falsos recibos verdes».
Em relação ao futuro levanta algumas questões. Tudo depende, segundo Susana Peralta, de como vai evoluir o desemprego e o mercado financeiro com as moratórias a começarem a vencer. «Vamos ver como é que o Governo vai gerir essa transição, mas vai ser preciso deixar cair empresas, até porque se queremos fazer a transição digital, depois de uma crise destas vão ter de desaparecer empresas para nascerem outras, em outros setores e a fazer coisas de maneira diferente».
A mesma incerteza repete-se no mercado imobiliário. «As moratórias ainda estão a segurar os preços das casas, mas espero que o Governo arranje políticas para salvar famílias. Por outro lado, o segmento mais alto continua a puxar pelos valores, mas isso tem a ver com o facto de a crise ter poupado uma parte da população», acrescenta.
Já em relação às possíveis reformas que possam ter ficado na gaveta, a economista afirma que estas «têm de ser sempre resultado de uma decisão democrática», afirmando que «há um problema de democracia quando há imposições externas, embora seja sensível ao facto de quem empresta dinheiro exige contrapartidas, mas o que é preciso saber é se as contrapartidas que exigem diminuem a probabilidade que o dinheiro seja pago».
Mas deixa um recado: «Há uma coisa que nunca conviverei bem dos anos da troika que é a visão moralista das crises. Portugal estava sobre-endividado porque as taxas de juro eram baixas. As famílias estavam sobre-endividadas porque as taxas de juro eram muito baixas e foi-lhes oferecido contratos pelos bancos que as levavam para esse sobre-endividamento. Não gosto dessa visão moral. O contrato de crédito é mediado pelo preço, se o preço é baixo as pessoas consomem mais desse crédito», conclui.
António Bagão Félix
‘Ficou a memória de erros cometidos’
O economista admite que, apesar de se ter diluído no tempo, ficou «a memória de erros cometidos e de modelos orçamentais e financeiros errados, bem como o custo social de os ter de superar». A par disso, reconhece que passou a existir uma maior consciência da necessidade de forte disciplina orçamental do Estado e da prevenção de riscos sistémicos na banca, enquanto as exportações ganharam maior peso na estrutura do Produto Interno Bruto (PIB) – exemplo disso, é o peso de cerca de 44% em 2019, contra 27% dez anos antes, a par disso também as receitas do turismo ganharam maior relevo. Tudo isto, aliado a uma descida nas taxas de juro, ainda que quase exclusivamente explicada pela política do Banco Central Europeu.
Mas Bagão Félix chama a atenção para a falta de reformas que seriam necessárias que foram apontadas pela troika, mas que, no seu entender, foram sucessivamente adiadas «em favor da política tática de mero curto prazo». E outras foram revertidas «injustificadamente» e dá o exemplo da reforma da administração pública – com a diminuição do horário de trabalho – e alguns aspetos de flexibilização do mercado de trabalho. «Um ponto determinante em que praticamente nada se fez foi o relativo à estrutura do sistema fiscal, que continua a ser adversário da iniciativa, da família e da poupança».
Mas não fica por aqui. De acordo com o ex-ministro «no domínio da justiça, mera cosmética. O aumento da produtividade não tem sido um objetivo prioritário, apesar de todos os encómios discursivos sobre a economia digital. Uma situação que, segundo o mesmo, é fácil de explicar: «Os partidos da esquerda não gostam de reformas, preferem a ilusão do presentismo calculista, a generosa distribuição de fundos europeus e as ‘raspadinhas’ de todo o tipo», diz ao Nascer do SOL.
E lembra que, «o facto de haver governos minoritários, com apoio direto ou indireto da esquerda mais radical e pouco disponível para estimular a economia de mercado, tem prejudicado as reformas indispensáveis e até tem forçado a “destroikar” medidas imprescindíveis para uma economia mais sustentada e estruturalmente pujante»
Daí, o economista não se mostrar surpreendido com o atual estado económico do país, acreditando que o desafio diz respeito ao ritmo em que vai ser feita essa recuperação. «Os confinamentos atuaram simultaneamente do lado da procura e da oferta. Mas há alguns pontos que já deveriam estar a ser devidamente acionados».
E dá exemplos: «A (não) reforma de um Estado, que tem inchado para tudo e mais alguma coisa, e que continua a ser discriminatório face à economia privada, às (não) políticas de investimento (público e privado) e ao modo enviesado como está a ser construído o Plano de Resiliência e de Recuperação. É preciso ter em conta que a riqueza nacional no final de 2020 (em termos reais) não ultrapassa a de 2007 e que, neste século, o aumento médio anual do PIB é de uns escassos 0,5% por ano», refere.
Face a este cenário, Bagão Félix acena com riscos eminentes, nomeadamente ao nível da taxa de desemprego, apesar de aplaudir medidas como o layoff que tenta proteger socialmente os rendimentos de trabalho e tentar evitar encerramento definitivo de empresas. «Há também o layoff no Estado dissimulado de vencimento sempre garantido. Mas, evidentemente, estará, em parte, a esconder o aumento do risco potencial de desemprego, logo que o regime termine. Acresce que a população inativa aumentou, em 12 meses, em quase mil pessoas e a taxa de subutilização do trabalho foi, em fevereiro, de 14,4% contra 12,7% há um ano», conclui.