Para condicionar a expressão do pensamento, a extrema-esquerda – sobretudo ela – usa o estratagema de colar rótulos aos inimigos políticos para os descredibilizar e relativizar o que dizem. A torto e a direito, chamam a um indivíduo ‘antidemocrata’, ‘xenófobo’, ‘homofóbico’, ‘transfóbico’, ‘racista’, ‘fascista’, etc., e a partir daí tudo o que ele disser não tem valor. É um truque antigo, a que nunca me submeti. Fui durante dez anos diretor deste jornal; fui durante mais de vinte anos diretor do então maior jornal português – e nunca deixei de escrever o que pensava.
Sendo um democrata, nunca permiti que me roubassem a liberdade. Um dos meus filhos dizia que eu era «o único democrata por convicção» que ele conhecia. Muitos eram democratas por oportunismo, por interesse, por parecer bem, etc.; eu era democrata ‘por convicção’. E acrescento: ‘por natureza’. Tenho na massa do sangue o respeito pelas pessoas, sejam pobres ou ricas, humildes ou poderosas, negras ou brancas, velhas ou novas.
No bairro onde moro havia um homem que lavava carros. Eu telefonei-lhe uma vez e notei que, à segunda, me reconheceu imediatamente a voz. Referi isso a alguém, que me respondeu: «Ele não lhe reconheceu a voz. A questão é que você é a única pessoa que o trata por Senhor Ernesto. Toda a gente o trata por Ernesto…».
O facto de não me deixar condicionar garante-me a liberdade necessária para falar de um tema que anda na cabeça de muita gente mas ninguém tem coragem para abordar de frente. Refiro-me ao que se passa em Moçambique. Ao horror em que se transformou Moçambique. Certas pessoas que andam muito ocupadas a discutir o que se passou nas colónias portuguesas há quinhentos anos, há trezentos anos, há cem anos, ignoram ostensivamente o que se passa ali hoje.
Ora, vemos as imagens de Moçambique no tempo do colonialismo e olhamos para as que de lá nos chegam agora e não podemos deixar de perguntar: foi para isto que quiseram a independência? Foi para isto que lutaram para ser independentes? Para se matarem, para se degolarem uns aos outros? Nunca, nem nos piores momentos da guerra colonial, se viram imagens tão terríveis como as que se veem hoje sobre Moçambique. Catarina Furtado disse que tinha «vomitado» depois de ver algumas.
Escrevi há semanas um texto chamado O preço da liberdade, onde dizia que Portugal está a pagar um preço demasiado alto pela liberdade – e isso é perigoso para a democracia. Olhamos para as obras construídas no tempo do Estado Novo e sentimo-nos pequeninos. Percebemos que não há capacidade agora para fazer nem um décimo. Dir-se-á que hoje vivemos melhor, e é verdade. As pessoas têm mais dinheiro e as cidades estão mais bonitas. Mas se pensarmos nos milhares de milhões de euros que recebemos da Europa, concluímos que deveríamos ter feito muito mais.
Entretanto, tal como acontece em relação à liberdade, também é preciso fazer um balanço das independências. E aí concluímos que os moçambicanos, os guineenses, mesmo os angolanos, estão a pagar um preço muito alto pela independência.
Não sou um saudosista e sei que a guerra colonial era insustentável (sobretudo porque a tropa não queria combater eternamente). Por outro lado, o mundo caminhava no sentido das independências coloniais e é impossível travar a marcha da História. Mas isso não nos impede de levantarmos questões. A verdade é que os cidadãos desses países estão a dar razão àqueles que diziam que não tinham maturidade para ser independentes. Estão a dar razão aos colonialistas. Este é o ponto. E não só nas colónias portuguesas isto se passa. Da Argélia à África do Sul, o continente africano é um rosário de desgraças.
A independência pela independência não basta – tem de funcionar. A autodeterminação dos povos é muito bonita; mas quando serve para instalar o caos e a guerra, para fazer de um país um entreposto da droga, como acontece na Guiné, as pessoas interrogam-se: valeu a pena?
E, para muitos, não valeu. A prova é que milhares de africanos fogem de lá para os países que os colonizaram. Ora fará isto algum sentido? Fará sentido que, depois de lutarem contra os colonizadores, vão viver para os países destes, sob as suas ordens e as suas leis?
Alguma coisa aqui está profundamente errada. Os espíritos livres não podem fingir que não veem, que não sabem. Não podem ficar calados. O silêncio da extrema-esquerda mostra que as pessoas que a compõem estão condicionadas, não têm condições para dizer abertamente o que pensam e o que sentem.
E talvez fosse com este problema que os Mamadous e as Joacines deste mundo devessem preocupar-se. Em vez de andarem por Portugal entretidos com minúcias e a debitar palavras, fariam com certeza mais falta nesses países, lutando pelos direitos dos mais fracos. Porque aqui, na Europa, com mais ou menos atropelos, os direitos dos negros estão garantidos. Garantidos pela lei e até pelos governos. Lá é que não há hoje garantias nenhumas a respeito de nada.