Há sinais que embora pareçam menores, provam que o Governo se sente mais à vontade em ‘pisar o risco’ e que não teme ser penalizado e cair nas sondagens, mesmo quando abusa, nem o incomodam as oposições, cada vez mais abúlicas, da esquerda à direita. A pandemia tem ajudado.
O desvelo com que têm sido tratados os servidores do Estado e ouvidas as suas corporações de interesses é um testemunho eloquente da estratégia socialista, perante uma direita fragmentada e distraída com quezílias de ‘vão de escada’, e uma esquerda tão silenciosa como cúmplice.
O funcionalismo, por exemplo – que atravessou até agora incólume a pandemia, sem um sobressalto de desemprego ou de diminuição do salário –, acaba de receber outra boa nova, através da ministra Alexandra Leitão, ao passar a dispor de uma residência universitária, em Lisboa, destinada aos filhos estudantes, com a ressalva de que os «agregados familiares tenham baixos rendimentos».
Sucede, porém, que média salarial na função pública é muito superior à do setor privado. Segundo o Jornal Económico, o ganho médio mensal bruto dos trabalhadores da função pública, em abril de 2019, estava 45,68% acima da média da totalidade dos portugueses, conforme dados oficiais do Ministério do Trabalho. Logo, a ressalva da regalia cai pela base.
A menos que a motivação seja, simplesmente, o facto de o Estado empregar mais de 700 mil pessoas, o que representa, juntamente com os familiares diretos, uma base eleitoral não despicienda para o Governo e para o PS que o apoia.
Recorde-se que só em 2020, um ano dominado pela pandemia, o emprego público aumentou 2,8% em termos homólogos, ou seja, quase 20 mil novos funcionários, enquanto o setor privado acumulou desemprego, com a atividade reduzida, parada ou definitivamente fechada.
Só isso poderá explicar a devoção da ministra por esta vertente residencial pública para usufruto ‘privado’ de filhos de funcionários, depois de se ter distinguido, anteriormente, enquanto secretária de Estado da Educação, na oposição tenaz aos contratos de associação com colégios privados, como adepta das escolas públicas «na correção das desigualdades».
Tal não impediu, porém, Alexandra Leitão, de manter as filhas na muito elitista Escola Alemã, a pretexto de uma «opção por um currículo internacional», algo que não podiam encontrar na escola pública. Uma inocente incoerência.
Mas que importa? Com esta cativante e materna explicação da governante, o assunto adormeceu nos jornais, tão efémero como outras histórias de encantar.
A modernização do Estado tem que começar por algum lado, e alargar os benefícios já atribuídos ao funcionalismo, aprofundando o fosso existente com os ‘deserdados’ do setor privado, mais não é do que o justo ‘castigo’ para um país que ainda não se deixou ‘funcionalizar’ completamente, embora esteja no bom caminho…
Para quem achava, em 2016, que «a ‘geringonça’ funciona francamente bem», Alexandra Leitão confirmou, com mais este passo, que professa o catecismo ideológico seguido por outros colegas de Governo, designadamente, na Saúde e nas Infraestruturas.
As residências universitárias são mais um mimo oferecido a quem já é privilegiado, e que possui, entre outras benesses, um horário de 35 horas e um seguro de saúde, coberto pela ADSE, além do posto de trabalho seguro. O Governo instalou um regime de filhos e de enteados e nem se preocupa em disfarçar.
É legítima, por isso, a reação indignada de várias associações de estudantes universitários, designadamente, da Federação Académica do Porto, ao lembrar que «em nenhuma das alíneas do regulamento de atribuição de bolsas a estudantes do ensino superior é referenciado que a profissão dos pais é critério para a atribuição de alojamento académico, muito menos o caráter público ou privado do empregador».
Desde a demagógica redução do horário de trabalho, com consequências funestas para a despesa pública, ficou claro que António Costa quer proteger-se com uma ‘almofada de segurança’. O funcionalismo é o terreno ideal. Por isso, anunciou, ufano, mais contratações. Até porque a estagnação económica do país deixa antever que, em breve, seremos ultrapassados pela Grécia, que nos tem ‘poupado’ à ‘lanterna vermelha’ da União.
Depois, quando o primeiro-ministro precisa de recorrer a ‘amigos de peito’ para desenhar um Plano de Recuperação Económica, ou para ‘reverter’ a TAP e exercer depois funções de administrador, em acumulação com a atividade de ‘lobista’ de um consórcio interessado num empreendimento em Sines, estamos conversados. Tudo feito com maior naturalidade e sem que as oposições se atrevam a mencionar qualquer promiscuidade política ou conflito de interesses.
Há países onde tudo isto provocaria um abalo vestido de escândalo. Por cá, encolhem-se os ombros e assobia-se para o lado…