Durante décadas viveu em casas demasiado apertadas para poderem acolher a sua imensa biblioteca. «Colecionei livros em Paris, em Londres, em Milão, no calor húmido do Taiti (os meus romances de Melville ainda têm traços de bolor polinésio), em Toronto e em Calgary. Depois, quando chegava a hora de partir, embalava-os em caixas e obrigava-os a esperar com a paciência possível em arrecadações tumulares, na esperança incerta da ressurreição», escreveu em Embalando a Minha Biblioteca (ed. Tinta da China).
Até que, em 2000, encontrou um velho presbitério a sul do Loire, em França, onde finalmente pôde juntar quase todos os seus 35 mil volumes. Mas um convite irrecusável levou-o, quinze anos depois, a trocar a Europa por Nova Iorque, obrigando-o de novo a encaixotar a sua biblioteca.
«Todo o mundo é composto de mudança», escreveu Camões, e a vida de Alberto Manguel é um excelente exemplo disso. Nascido em Buenos Aires há 73 anos, passou parte da infância em Israel, onde o seu pai, um jovem advogado, foi colocado como embaixador pelo Presidente Perón em 1948.
A roda da fortuna voltou a girar em 1955. «Quando Perón foi deposto, voltámos à Argentina, o meu pai foi preso e ficámos a viver em Buenos Aires durante a minha adolescência», contou numa entrevista ao jornal i em 2015.
Aos 16 anos começou a trabalhar na livraria anglo-germânica Pygmalion, que era frequentada por Jorge Luis Borges, então diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Borges estava a perder a visão e recrutou o jovem Manguel como leitor.
«Eu lia para ele na sala de estar do pequeno apartamento onde Borges vivia com a mãe», recordou nessa entrevista. «Havia um sofá onde Borges se sentava e eu sentava-me numa cadeira de braços. Atrás do sofá ficava a janela para a rua, que tinha duas estantes de cada lado com enciclopédias. Havia outra pequena estante, onde Borges tinha muitos dos seus livros, a separar a sala de estar da sala de jantar, e depois mais alguns livros no seu quarto de dormir».
No total, seriam «uns 500 ou 600 livros» – nada que se compare com os 40 mil, muitos deles raros, que Manguel colecionou ao longo da vida e que no ano passado legou à cidade de Lisboa. Depois de décadas de errância, estes volumes encontraram a sua morada definitiva num palacete das Janelas Verdes, onde vai nascer o Centro de Estudos de História da Leitura.
Não é por acaso que George Steiner lhe chamou ‘o Don Juan da leitura’. A paixão de Manguel por livros não conhece limites. Em 2015 contou que uma das suas memórias mais antigas «é de uma prateleira cheia de livros, acima do meu berço, da qual a minha ama escolhia uma história de embalar». Agora, em entrevista por Skype ao Nascer do Sol, afirma: «Mesmo depois de morto talvez eu continue a desejar livros».
Um alfarrabista de Lisboa disse-me uma vez que sempre que comprava uma biblioteca ficava a conhecer o proprietário através dos seus livros. Uma pessoa que estudasse a sua biblioteca ficaria a saber muito sobre si e sobre a sua vida?
Sempre disse que a biblioteca de uma pessoa é a sua autobiografia. Quando vou a casa de alguém, olho de imediato para os livros que estão nas prateleiras para ter uma ideia de quem é aquela pessoa. Porque escolhemos alguns livros e alguns livros escolhem-nos a nós. Essa troca produz uma identidade da biblioteca que de certo modo reflete a identidade do dono da biblioteca. No caso da minha, julgo que através dela as pessoas conseguem perceber várias coisas sobre mim.
O facto de ter uma grande quantidade de livros sobre Borges, uma grande quantidade de livros sobre Dante, uma grande quantidade de livros sobre a história do livro e a história da leitura aponta para as minhas preferências. Mas essas preferências também podem ser vistas pela negativa. Na minha biblioteca há muito Platão e muito pouco Aristóteles, há muito de Flaubert, e muito pouco de Maupassant. Tenho as obras completas do Padre António Vieira e não tenho nada de outros escritores religiosos da época. Penso que através destas presenças e ausências um leitor pode identificar alguns traços da minha personalidade.
Os gostos e as aversões?
Não é que eu não goste de Aristóteles, mas não tenho essa maneira de pensar, não sou um pensador sistemático. Estou muito mais em sintonia com o pensamento de Platão, que de um momento para o outro pode divergir para um assunto sem relação com o anterior. Essa é a minha maneira de pensar. Não que desconsidere Aristóteles, mas não é assim que a minha mente funciona.
Não sente grande afinidade?
Afinidade indicaria escolha. Não se trata de eu fazer a escolha de não ler Aristóteles. Leio Aristóteles. O que se passa é que a sua maneira de pensar e a minha não estão alinhadas. Mas tenho, por exemplo, uma grande coleção dos clássicos da ficção policial – e gosto de os ler porque isso me permite exercitar uma maneira de pensar que não me é natural. Fascina-me que alguém consiga colocar uma questão como se fosse um problema de xadrez. Não tento adivinhar quem é o assassino porque não consigo pensar assim, e fico sempre surpreendido.
Diz-me que tem muitos livros sobre Platão, Dante, Borges. Pode quantificar?
A minha biblioteca neste momento está em caixotes guardados nos Arquivos Municipais, enquanto o palacete [na Rua das Janelas Verdes, futuro Centro de Estudos de História da Leitura] está a ser recuperado. Lá tenho cinco caixotes de livros sobre Dante… talvez uns duzentos no total. E aqui em casa tenho mais uns cem. Por isso diria que tenho uma coleção de 250-300 livros só sobre Dante.
É curioso: ao início não falou de livros, mas de caixotes de livros…
Porque eles estão em caixotes. Mas normalmente contabilizo-os por prateleiras. Por exemplo, neste momento tenho três, quatro prateleiras de livros sobre Dante à minha frente. Tenho duas do Padre Vieira. De Borges tenho menos, porque a maioria deles estão nos Arquivos Municipais.
Esses que tem em sua casa são os livros de que não se quer afastar?
Não gosto de estar longe de nenhum livro, porque nunca sei quando vou precisar dele. Os livros que tenho aqui no apartamento em Lisboa são os que consulto a toda a hora, mas estou constantemente a pensar: ‘Oh! Essa informação está naquele livro que ficou num dos caixotes’. Na próxima quarta-feira vou aos Arquivos remexer nos caixotes para trazer algumas coisas de que preciso. Não, não quero estar separado de livros nenhuns. Estou ansioso por, daqui a um ano, um ano e meio, ter toda a minha biblioteca disponível no palacete. Virei ao apartamento dormir mas viverei no palacete.
Por falar em palacete… Às vezes imagino uma biblioteca como um edifício em que cada livro é um tijolo. Se a sua biblioteca fosse um edifício, como o descreveria? Seria um palácio, uma fortaleza, um museu…
Seguramente não seria um museu. Os livros da minha biblioteca não estão lá para serem exibidos, mas sim para serem usados. Tenho cerca de 40 mil livros, por isso obviamente não os li todos. Mas abri-os todos, e há uma relação que começa quando se abre um livro e se lê – às vezes até à última página, outras vezes largamos ao fim de uma ou duas páginas. E depois há livros que lemos muitas vezes. Mas é sempre uma relação ativa. Se quiser fazer alguma comparação, terá de ser com uma oficina, porque é um sítio onde os livros estão a ser usados e entram em diálogo uns com os outros. Quanto ao edifício que os alberga, o que eu tinha em França era um celeiro adaptado, que recuperámos e onde mandámos colocar estantes.
Como estavam organizados os livros?
Dependia do espaço disponível. Como a sala principal da biblioteca não tinha capacidade para tudo, a ficção policial, por exemplo, estava num dos quartos de dormir, a que chamávamos o ‘quarto do crime’. [risos] O espaço determina a ordem dos livros. É um milagre que agora tenhamos este palacete fantástico onde haverá espaço para tudo. Se bem que me parece que haverá espaço durante algum tempo, depois acabará por ficar preenchido, porque a biblioteca está viva. Mesmo depois da minha morte, continuará a crescer, como o meu cabelo e as minhas unhas… Sabia que o cabelo e as unhas continuam a crescer depois de morrermos? Com os livros passa-se o mesmo. Felizmente, agora temos espaço suficiente para os 40 mil livros e provavelmente para mais uns dez mil. Mas julgo que esse espaço livre será rapidamente preenchido. Uma das definições de biblioteca é ‘um espaço sempre demasiado pequeno para os livros que queremos ter’.
Uma vez que agora haverá espaço para todos, isso vai permitir-lhe conceber uma organização ideal dos livros?
Não existe uma organização ideal. Em França tinha os livros distribuídos, como disse, segundo o espaço que ocupavam. Eu sabia onde estava cada livro, não havia um catálogo, e podia pôr dois livros segundo as associações que fazia. Para lhe dar um exemplo, coloquei as Ruínas do Império, de Volney [Les Ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires, ouvrage bien propre à intéresser la curiosité, 1791], uma obra de um historiador francês do século XVIII, ao lado do Frankenstein, de Mary Shelley, porque o monstro de Frankenstein aprende a ler ouvindo um homem a ler esse livro aos filhos. Mas isso era uma biblioteca privada. Como o Centro de Estudos da História da Leitura vai ser uma biblioteca pública, tem de haver uma ordem que o leitor comum consiga compreender.
Então não é o Alberto quem vai definir como serão organizados os livros?
Sou eu, mas com outra identidade, não como leitor privado, mas como diretor do centro.
Uma biblioteca como a sua não aparece de um momento para o outro.
Pois não, levou 73 anos a fazer.
Teve altos e baixos?
Claro. E por muitos motivos. Viajei muito, mudei muitas vezes de lugar, tive de os deixar para trás, às vezes com amigos, alguns perderam-se. E não foram reunidos até nos estabelecermos em França no ano 2000. Finalmente os livros ficaram juntos, mas mesmo assim faltavam muitos. Além disso, em certas alturas tinha mais dinheiro, noutras tinha menos, por isso não podia comprar livros, e satisfazia-me ficando a olhar para as montras das livrarias ou lendo catálogos de livreiros. Continua a espantar-me que se tivermos dinheiro podemos construir uma das mais extraordinárias bibliotecas do mundo, podemos ter uma Bíblia de Gutenberg, uma primeira edição d’Os Lusíadas, podemos ter tudo, porque está à venda. Mas custa dinheiro. [risos] Portanto há uma biblioteca desejada na minha imaginação.
Pensava que tinha todos os livros que queria.
Oh, não! Nunca se tem todos os livros que se deseja. O único momento em que terei todos os livros que desejei será quando estiver morto, e talvez mesmo aí continue a desejar livros. Não sei se no outro mundo – em que não acredito – as pessoas leem, mas tenho a certeza de que se houver alguma coisa como um Paraíso, terá livros disponíveis.
As paixões costumam implicar sacrifícios. Teve de fazer muitos sacrifícios para adquirir e colecionar livros?
Nem por isso, uma vez que não há nada que eu deseje tanto como, digamos, uma edição de bolso Aldine de Dante [de 1502, da qual Miguel Ângelo, por exemplo, quase de certeza possuía um exemplar], que é demasiado cara para, até aqui, a ter podido adquirido.
Em que medida a sua biblioteca espelha as suas obsessões? Há coisas que vão para lá do razoável, que escapam à lógica?
A minha biblioteca é um espelho exato das minhas obsessões e também das minhas antipatias. É caprichosa porque a minha imaginação é caprichosa. Apaixono-me por razões que invento só depois de as coisas acontecerem. O escritor mexicano Alfonso Reyes disse que ‘também a imaginação tem as suas razões que a razão desconhece’.
Tem livros ou secções improváveis que ficaríamos surpreendidos por encontrar na sua biblioteca?
Talvez. Livros de culinária. Teologia. A lenda de Don Juan. Literatura erótica. Bestiários medievais.
Disse-me que via a sua biblioteca como uma oficina. Vou pedir-lhe para imaginar que ia levar-me numa visita guiada a essa oficina. Por onde começaríamos a visita?
Depende do sítio. Se ainda estivéssemos na minha biblioteca em França, começaria sempre por uma secção a que chamava ‘l’écritoire’, o meu espaço de trabalho, que continha literatura em francês, em alemão, em português e em italiano, e um conjunto de livros de consulta [categoria que engloba dicionários, enciclopédias]. Daí subiríamos para o segundo piso, e mostrava-lhe a minha coleção de Borges, a minha coleção de Cervantes, a minha coleção de Dante e os livros em espanhol, além de certas coleções específicas, como a de Teologia, as obras de Santo Agostinho, clássicos gregos e latinos e muitos livros de consulta. Depois voltaríamos lá para baixo e abriria a porta da sala principal da biblioteca.
Era sempre uma surpresa para os visitantes, porque não estavam à espera de um espaço tão grande, com vigamento de madeira. E aí estava a literatura em inglês, mais livros de consulta, os livros de história, os livros de arte. Mostrar-lhe-ia alguns dos livros raros que tenho, como uma Bíblia manuscrita, com iluminuras, do século XIII, de um scriptorium alemão.
O livro é escrito em vellum [velino, um pergaminho especialmente fino, feito com pele de vitelo, daí o seu nome], foi um dos primeiros que doei a Lisboa. Mostrava-lhe também duas Bíblias de grande formato: uma das primeiras edições da tradução de Lutero da Bíblia, que pertenceu a uma família aristocrática; e uma Bíblia inglesa, a versão do King James, mais uma vez uma edição antiga com xilogravuras.
E uma terceira, uma Bible moralisé – a Bíblia ilustrada com considerações sobre as lições que se deve tirar de cada episódio – do século XVII. Além disso, mostrava-lhe alguns livros de artista muito especiais, que amigos artistas fizeram e me ofereceram. E as primeiras edições, os exemplares autografados. Essa seria a visita em que eu o levaria e depois, dependendo dos seus interesses, mostrava-lhe o que quisesse ver.
Desses exemplares autografados e com dedicatórias, quais são os que mais estima, os que têm mais valor para si?
Posso referir vários. A assinatura de Borges na primeira edição de El Congreso. A dedicatória de Doris Lessing na primeira edição de O Caderno Dourado. A dedicatória de Atwood na primeira edição de A História de uma Serva. A dedicatória de T.S. Eliot ao seu tradutor francês numa das suas antologias de poemas. A assinatura de Kipling no primeiro volume das suas obras reunidas (edição Bombaim). E muitos, muitos mais.
Ao explorarmos a sua biblioteca conseguiríamos perceber quem são os seus amigos?
Sim. Como fiz crítica literária durante muito tempo, fui tradutor, e interesso-me pela literatura de muitos países, para não mencionar que os meus livros estão traduzidos em 35 línguas, tenho contactos com pessoas desses países, e algumas tornaram-se amigas. Tive a felicidade de grande parte da minha carreira ser antes da era da internet. Digo felicidade porque era a época em que se escrevia cartas à mão. Mesmo em França, até ao ano de 2015, escrevia toda a correspondência à mão.
Por isso tenho coleções preciosas de correspondência com Doris Lessing, com Margaret Atwood, com Eduardo Lourenço, com muita, muita gente. Isso parou. Continuo essa correspondência com muitos escritores, mas é por email. Há quem ainda envie cartas pelo correio, mas o correio está péssimo. Nos Estados Unidos e em Portugal o estado dos correios é deplorável, as cartas demoram mais tempo a chegar do que demoravam no século XVII. No século XVII faziam três recolhas por dia – agora fazem uma e é uma sorte. Mas agrada-me estar no fim da vida e não ter de me preocupar em encontrar novas maneiras de estabelecer relação material com os meus amigos.
Disse que uma carta escrita à mão não é o mesmo que um email…
Você imprime os seus mails?
Nunca. Ia perguntar-lhe se para si um livro no kindle é o mesmo que um livro impresso no papel.
Aí tenho duas respostas para lhe dar. Como leitor privado, o kindle não existe para mim. Não uso o kindle, não leio nada online, se me enviarem um livro em formato eletrónico imprimo-o. Não consigo ler no ecrã. Em parte é biológico: o nosso cérebro está construído de uma maneira que lemos texto impresso de maneira diferente da que lemos texto eletrónico.
Estamos a treinar os nossos cérebros para lerem textos eletrónicos da mesma maneira que lemos imagens, e o meu cérebro talvez seja demasiado velho para isso. Mas, como diretor do Centro, claro que precisamos de meios eletrónicos e de texto virtual. Quando fui diretor da Biblioteca Nacional da Argentina pus 80% do orçamento destinado a aquisições para produzir textos virtuais, de modo que os leitores que não pudessem ir à biblioteca pudessem aceder-lhes. E tínhamos acesso a textos eletrónicos de diferentes instituições a que estávamos associados. Isso expande uma biblioteca sem ocupar espaço, o que é bom. Mas não é para mim enquanto leitor.
Se tivesse toda a sua biblioteca num disco rígido, por exemplo, perderia significado?
Não teria significado para mim, porque eu não conseguiria lê-la. Tenho boa parte da minha biblioteca na minha memória. Está organizada de maneira diferente, faltam muitas páginas, faltam muitos livros, mas muito está lá. Quando não tenho o livro na mão consigo ler dessa forma. Mas se existisse num disco para mim seria como se não existisse ou como se existisse na memória de outra pessoa, à qual não tenho acesso.
Costuma comprar livros nos sítios onde vai? Através dos seus livros poderíamos reconstituir as cidades onde viveu e os sítios por onde passou?
Sim. Tenho uma tendência para anotar o local e o ano em que o adquiri. Não o faço sempre mas alguns livros podem ter no interior um bilhete de avião, uma conta do hotel ou qualquer coisa do género. E compro sempre livros, embora não necessariamente relacionados com o local. Encontrei uma primeira edição de Ellery Queen nas ilhas Cook [Pacífico Sul], por exemplo. [risos] A primeira vez que vim a Lisboa encontrei uma primeira edição de The Old Curiosity Shop, de Dickens.
Já tem encontrado tesouros em locais improváveis?
Já, é maravilhoso. Como costumo dizer, se formos ricos, podemos comprar uma Bíblia de Gutenberg. Mas mesmo que não sejamos ricos, podemos encontrar coisas extraordinárias. Uma vez, em Oslo, encontrei uma edição do primeiro manual tipográfico de sinais de pontuação, que foi escrito pelo neto de Aldo Manuzzio [1450-1515, grande tipógrafo italiano, criador do itálico], do século XVI. Foi a primeira vez que se definiu o que é um ponto final ou um parágrafo. Encontrei-o em Oslo muito, muito barato.
Há livros que associa a fases específicas da sua vida? Um livro que lhe tenha sido oferecido pelos seus pais e que remeta de imediato para a infância, por exemplo…
Os meus pais não me ofereciam livros. Havia uma mulher que cuidava de mim, uma ama, que me ensinou inglês e alemão. Mas sim. Os primeiros livros de que me lembro são os contos dos Irmãos Grimm, as histórias das Mil e uma Noites, algumas antologias de poesia alemã – sabia muita poesia alemã de cor. Esses foram os primeiros livros.
Depois li os livros de Enyd Blyton, uma autora que escreveu coisas maravilhosas para crianças, mas que agora é retirada das bibliotecas porque não é politicamente correta, e descobri muitas coisas por mim. Comecei a ler Stevenson, Júlio Verne, H. G. Wells e muitos outros. Quando regressámos à Argentina descobri as histórias de Monteiro Lobato, que adorava, mas agora também é retirado por não ser politicamente correto. E houve livros que continuaram toda a minha vida. Descobri a Alice no País das Maravilhas quando tinha nove ou dez anos e continuo a lê-lo aos 73 anos. Na minha adolescência as descobertas foram tantas… Literatura latino-americana, poesia, os surrealistas franceses…
E hoje, ainda faz descobertas que o entusiasmam?
Todos os dias descubro alguma coisa nova. Ando a ler literatura portuguesa, e estou a descobrir coisas extraordinárias. Surpreende-me que o mundo não conheça grande parte da literatura portuguesa. Isso deve-se talvez ao facto de haver uma espécie de elegância na identidade portuguesa que se exprime com tanta modéstia que não mostra o melhor de si própria.
Se os escritores que vocês têm fossem americanos ou franceses, o mundo inteiro falaria sobre eles. Mas como são portugueses ninguém os conhece. Tenho lido uma série de escritores contemporâneos que mereciam andar nas bocas de toda a gente, mas ninguém sabe da sua existência. Quem estuda literatura barroca da Europa conhece Góngora, o barroco alemão e, claro, o barroco italiano. Ninguém fala sobre o barroco português, que é um dos mais extraordinários movimentos poéticos na história da literatura. Estou deslumbrado. Sinto que estou no sítio certo, porque é como se tivesse descoberto uma livraria nova, cheia de livros portugueses que nunca li.
Imagino que receba muitos livros, de editores, de autores, de amigos. Continua na mesma a ir a livrarias?
Sim, praticamente todos os dias compro um livro. Estou rodeado de livrarias aqui em Lisboa. Sempre que saio, vejo alguma coisa que me interessa numa montra. Não gosto de usar a Amazon, por isso quando tenho de comprar um novo livro em inglês ou espanhol ou francês compro na Palavra de Viajante. A Ana Coelho é fantástica e encontra qualquer livro para mim.
Tem um plano de leituras, já sabe qual é o próximo livro que vai ler?
Não. Estou a ler o De Senectude, de Cícero, porque vou escrever um ensaio sobre a velhice. Enviaram-me a primeira biografia de Sebald, de Carole Angier, porque fiquei de fazer um comentário. Leio vários livros ao mesmo tempo. Na minha pilha de livros portugueses tenho Esta Noite Sonhei com Brueghel, de Fernanda Botelho; João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas. Acabei agora – e adorei –, do Sandro William Junqueiro, Um Piano para Cavalos Altos. É um romance absolutamente extraordinário. Também gosto de Teresa Veiga e Matilde Campilho – é excelente, recomendei-a ao meu editor em Espanha.
Está muito bem informado no que toca à literatura portuguesa.
Tento estar. A minha professora de português é especialista em poesia portuguesa e recomenda-me várias coisas. A Ana Coelho, da Palavra de Viajante, também.
Algumas pessoas com quem eu falo, quando chegam a uma certa idade, tornam-se mais seletivas na leitura. Não querem perder tempo com livros de que não gostam. É o seu caso?
Não perco tempo com livros de que não gosto. Leio uma página e se não gostar não continuo. Mas quero ver o que esteve escondido de mim na literatura portuguesa. É como se vocês andassem a guardar estes tesouros só para vocês. Talvez não seja por modéstia, mas sim por ciúme que os portugueses não partilham a sua literatura. Seja como for, eu descobri-a e agora quero lê-la. Mas o que faço é sobretudo reler. Releio os livros que me apaixonam. Estou a ler pela quarta ou quinta vez O Amigo Comum, que é talvez o meu romance favorito de Dickens. Voltei a pegar n’Os Contos de Cantuária [de G. Chaucer], que não lia há vinte anos.
Se soubesse que só podia ler um livro, que livro escolheria? A Bíblia, Dante…
A Bíblia não. Tem coisas maravilhosas mas também tem outras muito aborrecidas. Leria Dante. Cada vez que leio a Divina Comédia é um livro novo.
Disse-me que a sua biblioteca continuará a crescer, tal como o cabelo e as unhas continuam a crescer depois de morrermos. George Kubler escreveu no livro A Forma do Tempo: «Esta luz antiga ou morta de estrelas distantes foi emitida há muito tempo e só chega a nós no presente». A biblioteca que legou à cidade de Lisboa será como a luz antiga de uma estrela desaparecida?
Penso na biblioteca do Centro de Estudos de História da Leitura refletindo não apenas a luz fraca e antiga do meu eu distante, mas também luz nova, através dos novos volumes que possam entrar. Uma biblioteca – se estiver viva – é sempre um trabalho em curso.