As regras da Câmara de Lisboa que garantem a privacidade e a proteção de dados, e cuja última atualização foi feita em 3 de janeiro de 2020 – como consta do site da própria autarquia –, comprometem a versão apresentada por Fernando Medina no caso dos dados pessoais de ativistas anti-Putin partilhados pela CML com a embaixada da Rússia.
No dia em que considerou um «erro lamentável» e apresentou um «pedido de desculpas público» aos ativistas cujos dados pessoais foram enviados pela CML_para a embaixada da Rússia, Fernando Medina deu uma entrevista à RTP em que afirmou que só agora tinha tomado conhecimento do sucedido mas já apurara que, perante a queixa apresentada em abril, os serviços camarários mudaram os seus procedimentos e passaram a comunicar apenas à PSP_e ao Ministério da Administração Interna os pré-avisos de manifestações e respetivos promotores.
Acontece que é o site da própria Câmara de Lisboa que publicita a «Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais» da CML, por forma a «dar a conhecer aos Utilizadores as regras gerais de tratamento de dados pessoais». Sob a epígrafe «Destinatários dos dados pessoais», a Câmara garante que «os dados pessoais recolhidos destinam-se a ser utilizados pela [CML], não estando prevista nenhuma transmissão para outras entidades». Se tal necessidade surgir, explica a CML, «será previamente solicitado o devido consentimento nos termos da regulamentação comunitária e legislação em vigor em matéria de proteção de dados pessoais […]».
Ou seja, desde janeiro de 2020 que, pelas próprias regras da CML, os serviços não poderiam partilhar dados pessoais sem prévio consentimento dos visados.
Mas há mais: no edital em que também se anuncia que foi nomeado um responsável pela proteção de dados – Luís Feliciano –, figura uma outra regra que colide frontalmente com o sucedido aos manifestantes russos. Sob a epígrafe «Transferências Internacional de Dados», lê-se que a CML «não tenciona transferir dados pessoais para um país terceiro ou para uma organização internacional». Segue explicando que, se tal for feito, a CML «tomará as diligências necessárias para assegurar que não é comprometido o nível de proteção das pessoas singulares garantido pela legislação relativa a proteção de dados pessoais aplicável em Portugal».
E, neste caso como noutros já confirmados pela própria CML – envolvendo as embaixadas da China, Israel ou Venezuela –, nada disso foi feito, em clara violação das regras publicitadas no site da Câmara.
Um erro burocrático?
Em Janeiro de 2021, três ativistas russos – dois com nacionalidade portuguesa – organizaram uma manifestação pela libertação de Alex Navalny, opositor de Putin. Como é exigido, facultaram os seus dados (nome, morada, número de identificação e de telemóvel) à Câmara para avisar do protesto. Mas, quando perceberam que essa informação foi parar às mãos do Estado russo, ficaram em choque. À RTP, Medina – que entretanto pedira «desculpa» – justificou o ato explicando tratar-se da «repetição de um erro burocrático». Justificou também que a Embaixada russa apenas fora informada pelo facto de a manifestação ter tido lugar à sua porta, não sendo, por isso, «nenhuma informação enviada à Rússia». Contudo, o Comité de Solidariedade com a Palestina denunciou que o mesmo se passou quando este se havia manifestado a três quilómetros da embaixada israelita. A par deste cenário, Medina declarou que a Câmara havia alterado os protocolos internos em abril de 2021 – algo que, pelo exposto acima, carece de clarificação – de forma a não mais ferir os direitos de manifestantes. Em comunicado, a CML explica que nas manifestações subsequentes às alterações (Israel, Angola e Cuba) «não foram partilhados quaisquer dados dos promotores com as embaixadas». Considerando que este protocolo está em vigor desde o fim dos governos civis (os órgãos, extintos em 2011, que recebiam as intenções de manifestações), deduz-se pois que esta tem sido a prática da Câmara de Lisboa pelo menos nos últimos dez anos – algo que está a ser averiguado pela própria autarquia. Entretanto, a Comissão Nacional de Proteção de Dados já abriu um processo de averiguações sobre o caso e, avança o Diário de Notícias (DN), a segurança dos três ativistas está a ser monitorizada Serviço de Informações e Seguranças.
Quem tem culpa?
Para já, ainda não é evidente a quem cabem as responsabilidades. O DN avançou, na madrugada de ontem, que o responsável pela cedência de dados seria o secretário-geral da Câmara Municipal de Lisboa, Alberto Laplaine Guimarães, o que veio a ser desmentido durante a tarde seguinte pela própria autarquia. Não obstante, Medina defendeu a abertura de um «inquérito interno para apurar responsáveis e evitar situações semelhantes», assim como a necessidade de se tirarem «responsabilidades internas do ponto de visto da reorganização dos serviços».
PS Segura Medina, mas incómodo é geral
Entre as várias reações ao sucedido, Carlos Moedas, opositor de Medina nas autárquicas que se avizinham, pediu a demissão do autarca. Para Moedas, Medina revelou «desespero e total falta de consciência», deixando assim de ter condições para ser presidente da CML. Em estúdio da TVI24, afirmou: «Ou a Câmara é incompetente ou Medina está a faltar à verdade». Já Marcelo Rebelo de Sousa, não obstante considerar «efetivamente lamentável» o sucedido, disse perceber o pedido de desculpas de Medina, admitindo que há «procedimentos administrativos antigos [que não acompanharam] a evolução dos dados pessoais e dos direitos fundamentais das pessoas». Francisco Rodrigues dos Santos, por sua vez, saiu ao ataque. Considerando que o sucedido «entrega a cabeça de três pessoas a um governo que não respeita os direitos humano e que mata os seus opositores», o líder do CDS-PP chama-lhe «um ato de terrorismo político e de subserviência». Para a Iniciativa Liberal, a partilha dos dados «constitui uma violação gravíssima de direitos individuais e de regras fundamentais das relações internacionais». O_comunicado dos liberais acusa ainda a CML de «uma fuga desesperada às suas responsabilidades, procurando passar o ónus da cedência dos dados aos cidadãos que foram as vítimas de toda esta situação». À Esquerda, Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, considera o caso «extraordinariamente grave». Ainda assim, não alinha em pedidos de demissão – «mais um número de campanha eleitoral do que uma afirmação com consequência». Até ao início da noite de ontem, nem Costa – que na Madeira fintou os jornalistas – nem o PS se tinham pronunciado sobre o assunto.
O_caso divide o PS. Se, por um lado João Soares, Carlos César e Pedro Nuno Santos defenderam Medina, já António Galamba – último governador civil de Lisboa –, disse à Lusa que a divulgação dos dados dos manifestantes às embaixadas é algo «impensável» e «inaceitável».
Embaixada Russa diz já ter apagado os dados
Quinta-feira, a Embaixada Russa em Portugal defendeu que os manifestantes desejam «atrair atenção mediática a si próprios», considerando os seus atos «provocações deploráveis». A representação diplomática russa explicou ainda ter outras prioridades e garantiu que a «senhora ‘ativista’ pode voltar tranquilamente para casa». Já ontem, Mikhail Kamynin explicou que a embaixada apagou os dados enviados pela Câmara de Lisboa, não tendo as informações sequer chegado ao Kremlin: «São coisas minúsculas que passam. Não representa para nós nenhuma importância», declarou em visita aos Açores
Reações fora de Portugal
O jornal Politico não passou ao lado do caso e noticiou: ‘Lisboa admitiu ter partilhado os dados pessoais de dissidentes Russos com Moscovo’. Ontem, proeminente figuras do aparelho Europeu reagiram no Twitter. Jyrki Katainen – antigo primeiro-ministro finlandês e vice-presidente da Comissão Europeia – considerou o caso «assustador». Já González Pons, vice-presidente do Partido Popular Europeu, fala em «violação dos direitos fundamentais da UE», notando que Lisboa é uma cidade de «luz» e não de «delação».
Tanto a CML como a PGR foram contactadas mas não responderam em tempo útil às questões do Nascer do SOL.