Antigo governador civil desmente Medina

O último governador civil de Lisboa nega que o envio de dados pessoais a embaixadas seja herança. Segundo a auditoria da CML, António Costa não tem culpa nenhuma, apenas deu uma diretiva que foi ignorada.  Ninguém sabe porquê, nem por que o caso piorou em 2018.

A tão esperada explicação de Fernando Medina quanto ao envio de dados pessoais de quase duas centenas de manifestantes a entidades estrangeiras não bate certo. Ouvindo o presidente da Câmara de Lisboa, esta sexta-feira, nos Paços do Concelho, poderia pensar-se que tudo não passou da mera continuidade de um procedimento que «seguiu de perto o que vinha feito ao nível dos Governos civis», e que, por esquecimento, não foi adaptado ao Regulamento Geral de Proteção de Dados, em 2018. O problema é que isso não corresponde à realidade, nota António Galamba, último governador civil de Lisboa, do PS. «A prática já não era essa quando eu fui governador civil, tão simples quanto isso», garante, ao Nascer do SOL. «Não há nada no passado que possa justificar o presente», remata Galamba. «Não houve continuidade nenhuma, pelo contrário, houve descontinuidade», acrescenta. «E entretanto saiu o regulamento geral de proteção de dados, portanto as regras ainda são mais apertadas».

Aliás, na própria auditoria ordenada por Medina, verificou-se que em 2002 era enviada uma cópia do aviso de manifestação, mas que em 2011 – quando Galamba era governador civil – só era enviado o nome do primeiro proponente a embaixadas, e que «o envio de um nome, mesmo como representante legal de uma instituição significaria o envio de um dado pessoal», sublinhou o presidente da Câmara de Lisboa.

«O que ele diz, que aplicando essa legislação aos Governos civis, que mesmo a prática de 2011 era inaceitável… A prática de 2011 cumpria a lei», acusa o antigo governador.

 «Uma manifestação não nasce por geração espontânea. Portanto, quando aviso uma entidade que vai ter uma manifestação à porta – e faço-o porque a legislação impõe uma proteção especial às embaixadas – tenho de dizer que vai haver uma iniciativa, um exercício cívico do direito de manifestação, por algum promotor, num determinado dia e num período horário. Pronto. Nada mais», continua Galamba «Nem moradas, nem contactos telefónicos, nem emails, nada. Isso faz toda a diferença».

 

Muito por explicar

Observando a auditoria ordenada pelo presidente da Câmara de Lisboa – que terminou com a cabeças do encarregado de proteção de dados de dados e do coordenador da unidade a rolar, uma recomendação de Medina, acusada de ser maneira de criar um bode expiatório – é difícil não reparar em buracos na história.

Assumindo que houve «descontinuidade» em relação aos Governo Civis, como diz Galamba, a raiz do problema viria depois, altura em que a Câmara Municipal de Lisboa era presidida por António Costa. A auditoria pedida por Medina teve o cuidado de afastar a responsabilidade do atual primeiro-ministro, notando uma diretiva deste, de 2013, que impunha que os dados de manifestantes fossem transmitidos apenas à PSP e ao ministério da Administração Interna, não a embaixadas. A questão-chave é que essa diretiva foi ignorada, o envio de dados para embaixadas continuou, «por motivos que não foi possível identificar no âmbito da presente auditoria».

O problema agravou-se a partir de 2018, já com Medina à frente da Câmara, quando dados pessoais de manifestantes começaram a ser enviados não apenas às embaixadas junto às quais iriam ocorrer manifestações, mas também «àquelas relacionadas com o objetivo da mesma», verificou a auditoria. Que, mais uma vez, não consegue explicar quem ordenou o quê.

Este último ponto da história parece ainda mais bizarro tendo em conta que, quando surgiu o escândalo, o próprio Medina deu a cara, perante câmaras da RTP1, garantindo que só foram enviados os dados de manifestantes russos porque o protesto decorria perante a embaixada, que devido a um erro «burocrático» não foi tida em conta a natureza sensível – ou seja, o risco de repressão de dissidentes pelo Kremlin – do evento.

A auditoria pedida por Medina acabaria por ser a confirmação do que se sabia. Em 2019 ativistas pró-Palestina (em cima, a notícia do i na altura) já denunciavam que os seus dados pessoais foram enviados à embaixada israelita, apesar de o seu protesto contra o apartheid em Israel – apelando a que o músico Milton Nascimento cancelasse um concerto em Telavive – ter decorrido perante os Coliseu dos Recreios.

As queixas dos ativistas pró-Palestina não deram então em nada. «Pelo contrário, mandaram email a dizer que era uma rotina, era normal, que este era o procedimento», nota Shahd Wadi, ativista do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel (BDS). Não foram tempos fáceis para estes ativistas, que passaram meses receosos – na altura, própria imprensa israelita avisada que os serviços secretos, ou Mossad, estavam cada vez mais envolvidos na repressão ao movimento.

O receio não era apenas por isso. É que Israel tem a prática bem documentada de impedir o acesso de ativistas do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) de entrar no país ou em território palestiniano. Para Shahd, um dos rostos deste movimento em Portugal, ativa nas redes sociais, não faz grande diferença que Israel saiba do seu ativismo – de qualquer maneira, já foi impedida de visitar a terra onde nasceram os seus avós, ou de entrar em Jerusalém Oriental, mesmo com um passaporte português, apenas por ser de origem palestiniana, contou ao Nascer do SOL. No entanto, Shahd conheces casos de outros ativistas, incluindo gente sem o peso de ser palestiniano, que foram barrados por Israel – perdendo oportunidades para ter bolsas de estudo ou lançar projetos de voluntariado.

Quando ao silêncio da maior parte da imprensa e partidos políticos, em 2019, quando se soube que dados pessoais de manifestantes pró-palestiniana foram entregues a Israel, não foi propriamente uma surpresa para Shahd.

«Talvez a Câmara se tenha sentido mais pressionada pelas forças políticas de direita, que não fizeram isso quando foram ativistas pela Palestina. E também não sei se será por ser ano de eleições», comenta. «Nós não queremos fazer parte desse jogo político. Até porque as outras forças também estão a apoiar Israel».

Questionado sobre se é plausível que Medina não estivesse a par da situação, que só seria retificada dois anos depois, o último governador civil de Lisboa apenas comenta: «O que sei é que essas matérias, que têm a ver com direitos constitucionais, e com proteção deles, nomeadamente a proteção de dados, têm de ter uma atenção especial».

«Esperava que não houvesse aproveitamentos excessivos de um lado, porque podemos ver os telhados de vidro dos outros partidos», apela Galamba. Nota, no entanto, que «não faz sentido acontecer um conjunto de coisas e ninguém assumir responsabilidade nisso».