por Felícia Cabrita e Marta F. Reis
Dizem que tem uma morena e uma loira no coração: Moçambique, onde nasceu, e Portugal. Para qual o seu coração se inclina mais?
Agora fiquei preocupado! (risos) Em termos cerebrais, estou mais com Portugal, já o coração inclina-se mais para África, porque foi lá que vivi até à adolescência e as memórias de infância tocam-nos muito. Certa vez estava a ouvir televisão – não estava a ver, só a ouvir – e, de repente, senti uma forte emoção e não percebia o que se estava a passar. Olhei para o ecrã e vi uma imagem da praia de Zalala, em Moçambique. Estavam a passar uma reportagem sobre aquela zona. Há sons que ficam gravados na nossa memória, eu ia lá muito na minha meninice, e o som do mar despertou-os. Por isso, digo muitas vezes que o meu coração está em África e o cérebro em Portugal.
Quando é que a sua família foi para Moçambique?
Uma parte da minha família estava lá desde o século XVIII, até temos familiares miscigenados. Mas a minha mãe, quando casou, como o meu avô era lá diretor da Companhia Colonial de Navegação, quis ir para lá e arrastou o meu pai.
O seu pai era advogado?
Sim, e um coimbrão típico. Tocava violino e cantava fado. Mas começou na carreira judicial. Foi delegado de procurador da República: esteve na Guiné e, pouco tempo antes da perda de Goa, queriam-no mandar para lá e ele rejeitou. Foi aí que optou pela advocacia e fez a vontade à minha mãe. O meu pai era muito amigo de Almeida Santos, que também estava em Moçambique e o aconselhou a ir. Primeiro, ficaram os dois a exercer a profissão na Beira, mas faziam concorrência um ao outro e lá decidiram que um ficava com o Sul e o outro com o Norte – e fomos para Quelimane (risos).
Também tinham a mesma parentela política?
O meu pai sempre foi um liberal da área socialista, era um crítico do regime. Ele e o Almeida Santos escreviam em jornais locais. Havia uma certa liberdade política porque lá a PIDE era uma polícia secreta que ajudava essencialmente os militares.
Mas tinha um tio, Alberto Gouveia e Melo, que foi durante muitos anos governador em Moçambique e que acabou como secretário-geral da colónia. Foi até ele que deu posse a Baltazar Rebelo de Sousa, que era um homem do regime.
Sim, foi até secretário particular de Salazar. Mas eles eram cinco irmãos: esse meu tio era salazarista, havia outro que era filiado no Partido Comunista e o meu pai um homem do centro-esquerda.
Devia dar uma grande confusão quando se juntavam. Como era a comunicação entre eles?
Rude, mas davam-se (risos). Não podiam era discutir política.
Chegou a conhecer o pai do Presidente da República ou o próprio Marcelo Rebelo de Sousa?
Não, mas a minha mãe conheceu-os. Nós vivíamos a 2500 km da capital e, geralmente, quando os meus pais viajavam não levavam as crianças.
Deu-se a independência e a família teve de fugir para o Brasil. Por que não vieram para Portugal?
Quando houve a Revolução, o meu pai achou que o regime ia para uma ditadura e não queria viver numa ditadura comunista. Resolveu emigrar para o Brasil, mas arrependeu-se. Aliás, a seguir ao 25 de Novembro, quando a democracia se começa a solidificar, regressámos logo a Portugal.
Geralmente, os chamados ‘retornados’ vivem numa eterna busca de um tempo perdido…
Eu vivo bem com o processo histórico. Nós estávamos no sítio errado e no contexto errado. Sou dos últimos portugueses do Império, mas os impérios acabaram. Tenho é saudades do espaço, dos cheiros, do tempo, porque lá havia tempo para tudo.
E da liberdade…
Sim. O meu pai saía de casa às 7 da manhã, só regressava ao fim da tarde e queria lá saber onde eu andava! Eu ia para o mato, tinha as brincadeiras típicas do pequeno selvagem: fazia vela, andava no lodo do rio… Os meus filhos já não viveram isso.
As relações entre rapazes e raparigas também não eram tão castradoras como na Metrópole de públicas virtudes e vícios privados.
Em África, as iniciações sexuais davam-se mais cedo. Éramos mais tipo Brasil. Quando cheguei cá, estava com 15 anos, fui para Viseu e tinha uma namoradinha que me atirava uns bilhetinhos para o chão. Achava aquilo tão ridículo que deixei de namorar. (risos)
Não deve de ter sido o único choque.
O que senti sempre é que nós éramos muito… havia uma história que se contava e que é elucidativa: as crianças nasciam em quartos escuros, não se abriam as janelas porque as mães tinham medo que a luz queimasse os olhos aos bebés. Ao longo da minha carreira, fui sempre notando que havia um medo que toldava os portugueses. Na Marinha, por exemplo, eu sempre quis fazer as coisas mais esquisitas, mais difíceis, porque achava que eram as mais interessantes. Mas sentia o receio nos meus colegas, que não arriscavam com o medo de poderem ser prejudicados na carreia.
Mas para si era a ambição ou a aventura?
Isso é uma coisa que alguns dizem de mim. Tenho alguns detratores. Outra coisa que é muito portuguesa é a inveja. A maior parte das pessoas que viveram comigo parte do meu percurso nunca conseguiram entender o que me motivava. Há quem diga que fiz 31 dias num submarino porque era ambicioso. Ninguém quer sofrer 31 dias por ser ambicioso, eu pelo menos não. Havia uma meta, eu tinha de a ultrapassar. E além disso, para mim o importante era o o que é que eu ia aprender.
Por que ingressou na Escola Naval?
Quando se é emigrante, sentimos a nossa nacionalidade de forma muito diferente. Só sendo emigrante é que se percebe o que é ser verdadeiramente português e eu senti muito cedo esse apelo: queria servir o meu país. E, como tinha vindo do império, achei que Portugal estava muito reduzido, era um quadradinho. Para progredir tinha de haver uma nova força. E o mar para mim era óbvio: eu gostava de vela, de nadar, e via no mar a grande oportunidade.
Por causa da situação geográfica de Portugal?
Sim. O mar é o novo El Dourado. Anda o homem a explorar a Lua quando ainda não explorou um quinto do mar. O nosso mar tem uma importância geopolítica fantástica, as pessoas nem têm noção. Nós não estaríamos na situação em que estamos, mesmo com os apoios que temos, se não fosse a nossa geografia, com os arquipélagos. E temos o mar profundo totalmente por explorar. A partir dele pode desenvolver-se tecnologias em que podemos ser pioneiros. Somos um país que, cada vez que se foca em terra, perde força; e cada vez que se foca no mar, ganha força. Eu quis participar de uma coisa que seria estruturante para esse grande projeto que era o mar.
Foi a vida militar que o disciplinou?
Desde pequeno que sou muito disciplinado. Fui um estudante preocupado, muito focado nos objetivos que tinha para cumprir. E fazia os sacrifícios necessários para os atingir. Por isso, as Forças Armadas deram-me apenas nuances de disciplina, não a disciplina que já viajava comigo.
Por isso sempre foi bom aluno, gostava de matemática e física.
Mas eu não era bom aluno para ser bom aluno. Era porque tinha o objetivo de passar nos exames ou porque, por algum motivo, me interessava a matéria. Não fui um aluno muito ‘exato’, era aluno de 14. Porque eu gostava tanto de aprender que não me preocupava com os pormenores do exercício, queria era perceber a dinâmica da coisa. E para perceber essa dinâmica nem tinha tempo para terminar os exercícios todos, o que acabava por me prejudicar em termos de nota. Não queria ser como aqueles alunos que repetiam os exercícios vezes sem conta para nunca cometerem um erro e serem umas máquinas. Mas depois, se o problema lhes aparecia de um ângulo diferente, já não o conseguiam resolver. Ao longo da minha carreira, isso sempre foi útil.
Segundo os seus colegas, não era o tipo de ‘marrão’ chato e cinzento. Gostava da festa e da vida. Até ganhou a alcunha de Marlon, numa alusão ao sedutor ator norte-americano Marlon Brando.
(risos) Era um jovem igual aos outros.
Então, eram as raparigas que se pelavam por si?
(risos) Tinha algum sucesso. Os meus colegas pediam-me conselhos nessa matéria e eu dizia que o truque era fazer rir as raparigas. De resto, divertia-me como os outros rapazes da minha idade. E, como não bebia, era o ‘carro vassoura’ que tinha de os levar a casa.
Não toca mesmo numa gota de álcool?
Apenas para fazer um brinde. Não gosto. Beber e sentir que podia perder o controlo fazia-me muita aflição. Uma vez, bebi uma cerveja: aquilo era amargo. Foi a última.
Mas gosta de Coca-Cola. Aliás, é da geração da ‘água suja do imperialismo’.
A Coca-Cola é doce!
Mas de onde vem essa necessidade do autocontrolo?
Desde muito pequeno. Lembro-me que, quando tinha 12 anos e a minha mãe me levava a sair com as amigas, eu, para me distrair, fixava o olhar num ponto e ficava a olhar para ele durante 20 minutos com a preocupação de não me desconcentrar.
Terminou a Escola Naval mas, talvez por esse gosto do risco de que já falou, tirou o curso de submarinista, o que não é para todos. Como foi viver anos a fio nos velhos submarinos franceses da classe Daphné, onde nem se podia tomar banho? Devia de ser como acampar na Zambujeira do Mar!
É parecido. Mas tudo o que é físico faz-se. É o tal autocontrolo de que vos falei. Tenho uma vida mental que se abstrai completamente da parte física. De facto, não se podia tomar banho, mas a transpiração, o suor, os cheiros, deitar-me na cama transpirada de outro camarada não me fazia qualquer confusão.
Era o regime de ‘cama quente’: 50 homens para meia dúzia de beliches, a revezarem-se por turnos. Ainda por cima, com a sua altura, cabia na cama?
Ficava com metade do corpo de fora, mas eu ‘desligava’ o circuito. Dormi muitas vezes em cima da mesa de comer, sem lençóis, almofada ou cobertores, nada.
Porque era do seu tamanho?
Não, porque era o único espaço livre. Não era cómodo, mas deitar-me já era um prazer.
Esse seu sentido de disciplina deve ter-lhe dado algumas dores de cabeça. Introduziu, num barco patrulha, um sistema para controlar a entrada e saída de mantimentos. Se tivesse feito o mesmo com as vacinas, nunca tinha havido desvios. Como era esse sistema?
Isso foi num submarino. Sempre fui muito rigoroso. Acho que a falta de rigor é falta de disciplina e falta de disciplina é descontrolo. Odeio o descontrolo. Andavam a desaparecer coisas e houve um dia em que um elemento da equipa interna, que tratava do abastecimento dos géneros para o rancho, queixa-se que já quase não havia provisões. Fiquei logo de pé atrás e mandei o meu imediato, que não tinha nada a ver com a parte da logística, chefiar aquilo. Os computadores eram uma novidade, mas eu criei uma aplicação informática onde fiz a contabilização de quantos gramas de produtos alimentícios a Marinha dava por cada homem. E fui fazendo aquilo pelas ementas todas ao longo dos períodos de embarque. Depois, fiz o somatório e verifiquei as necessidades por quilo. No dia em que outro elemento da equipa, um cabo, traz os mantimentos, eu estava à escotilha do submarino com uma balança! (risos) O tipo fica muito assustado. Foi tudo pesado e nada batia certo.
Quer dizer que estavam a ser roubados?
Claro. Andavam a fornecer menos do que a Marinha pagava. Não sei o que fazia com as coisas, ou vendia ou levava para casa. Mas, por coincidência, nesse fim de semana fiquei de serviço. Vejo o cabo a sair com o carro, fiz-lhe stop e disse: «Abra o seu porta-bagagem!».Estava lá uma série de bolas de queijo, de carne, arroz, etc. Mandei-o levar tudo para o paiol de mantimentos e fiz uma participação dele. Cheguei a descobrir coisas mais complicadas.
Como por exemplo?
Uns tipos que tinham uma organização que fazia faturas falsas uns para os outros.
Está agora a decorrer um julgamento por problemas idênticos.
Então proibi o meu adjunto de comprar a determinados fornecedores, porque na realidade não existiam, eram tipos que faziam faturas. Compravam onde queriam e faziam os preços que queriam.
Quando um submarino tem um acidente, geralmente ninguém se safa. Alguma vez teve problemas?
Algumas. Uma vez, estava a sair do Mediterrâneo para o Atlântico e um dos veios começou a meter água através da sua chumaceira de passagem de fora para dentro do navio. O submarino é como um favo de abelhas dividido em cinco compartimentos. Um deles tem uma porta a meio. Quando demos por isso já a água estava a um palmo de passar segundo compartimento.
E o que é que poderia ter acontecido?
Com o compartimento num dos extremos do submarino quase totalmente alagado, e mesmo com a porta fechada, o peso nessa ponta iria desequilibrar o navio metendo a parte da ré mais dentro de água podendo comprometer o braço endireitante do navio.
E podiam afundar?
Claro! Os submarinos têm uma reserva de flutuabilidade muito pequena para poderem entrar em imersão e o braço endireitante deste tipo de navio também é muito pequeno para, uma vez submersos, poderem manobrar bem de baixo de água. Com um peso extraordinário numa das pontas do submarino, a ré poderia inclinar-se gravemente para baixo agravando consequentemente a situação, podendo comprometer a estanquidade do compartimento e passando a alagar o compartimento subsequente. Nessa situação, o submarino entraria em perda e afundar-se-ia a partir desse momento.
Como é que descalçou essa bota?
Eu podia fechar uma porta mas ia alagar na totalidade o compartimento onde já havia água e, como estava tudo concentrado numa ponta do submarino, o peso do compartimento à ré ia agravar a inclinação do navio atrás. A porta aos 12 metros cederia e espalharia água por todo o submarino que colapsava e ia ao fundo.
Parece um filme…
Imaginem o que é uma piscina de três metros já cheia de água! Tínhamos um ralo onde, através de uma bomba, era possível tirar água para fora, mas estava a entrar mais água do que estava a sair. Mandei o engenheiro apertar mais a coroa do veio para não entrar mais água. Ele mergulha mas não consegue. Os engenheiros e conselheiros, que eram os únicos que percebiam o que se estava a passar, estavam aflitos.
A pior coisa que pode acontecer a um comandante é perder o navio!
Com certeza, é uma vergonha! Digo a um dos meus oficiais para avisar Lisboa e preparar-se para o pior. Por um momento fiquei sozinho e tentei pensar numa saída. O que vos vou contar é muito íntimo. Pensei: «Vou morrer aqui mas não abandono o submarino». Essa decisão acalmou-me, deixei de ter ansiedade e uma pessoa sem stresse pensa melhor. Mas isto não é um ato de coragem é apenas um ato resignação.
Como saiu desse pesadelo?
Havia uma teoria para estes casos que nunca fora testada, da qual havia ainda um conhecimento genérico: se houvesse um tubo que metesse água devíamos fazer superfície e pressionar o submarino para que o tubo, em vez de entrar água, com a pressão superior, saísse. Então fechei o submarino todo, libertei ar com umas garrafas de alta pressão, criei uma sobrepressão, e a água começou a sair, as bombas a bombar e consigo secar o compartimento. Aí o mesmo engenheiro mergulhou e já conseguiu fechar a coroa.
Foi por um triz. Não ficou com medo do mar?
Não, porque é o sítio onde me sinto melhor, mais sozinho e mais dependente de mim próprio.
Gostava de morrer no mar?
Se pudesse.
Dizem-nos que não gosta de perder nem a feijões, como no jogo do Risco que jogavam para matar o tempo nos submarinos. Aliás, dizem que ganhava sempre porque é um expert em estratégia.
Não gosto de perder porque é um desafio. Não é porque me sinta superior ou inferior ao meu adversário.
Uma vez por ano, costumava encontrar-se com outros submarinistas no Kartódromo de Palmela. Mas o kart não era o seu forte e os seus subordinados ganhavam-lhe sempre – o que, segundo se conta, o irritava…
(risos) Há coisas em que perco de propósito!
Isso é que é mesmo mau perder!
Passo a explicar: há coisas que acho que são meramente sociais, onde estou apenas por prazer. O risco é no campo militar.
Dizem também que leva os exercícios da NATO tão a sério como se estivesse num campo de batalha.
Nisso, sou o mais sanguinário possível. Se entra um inglês no exercício, é o primeiro que ataco porque lhes quero tirar o snobismo. Não gosto de snobes. Aos franceses também não perdoo, porque são chauvinistas, e os alemães também não deixo escapar porque tenho família judaica. (risos)
Também fez tudo para bater o tal recorde dos franceses que tinham estado debaixo de água 30 dias seguidos.
E venci. Fiz mais um dia. (risos) Havia uma meta que passava por ultrapassar o recorde que os franceses tinham feito e mostrar que nós também éramos capazes. Para além disso queria ver o que aprendia com aquela experiencia, testar a resistência dos homens e puxar pelo submarino.
É o prazer do risco?
Sim, é o prazer do risco. A dada altura iniciamos um programa de cooperação com São Tomé, de que eu fui um dos mentores. Houve que transportar duas viaturas. Uma delas era uma ambulância que pesava quatro toneladas. Fomos num barco grande e, como o porto é muito pequeno, não dava para atracar. Não havia outra alternativa para descarregar a ambulância a não ser passá-la para uma barcaça para depois ir para terra. Tive de inventar um esquema para a colocar em cima da barcaça.
Aí os seus constantes cálculos matemáticos e a mania das engenhocas devem-no ter ajudado.
Claro. Então utilizei um carro grua dos fuzileiros – que eu adaptei para que conseguisse chegar até à borda do barco – para largar a ambulância. Eu tinha feito os cálculos mas as pessoas resistiam e diziam: «É pá isto vai cair tudo!». Então, para não ter de dar mais explicações, decidi meter-me a barcaça, mesmo por baixo do local onde a ambulância teria de descer. Se caísse em cima de mim o problema era só meu. E a ambulância desceu comigo debaixo dela e correu tudo bem.
Há também aí uma boa dose de loucura. Foi também o primeiro submarinista a passar de baixo de água de um submarino para o outro. Parece o Rambo…
Isso foi na altura em que um submarino russo, o Kursk, afundou e morreu toda a tripulação. A partir daí comecei a fazer umas engenhocas e exercícios na esquadrilha para treinar o salvamento dos submarinos caso acontecesse um acidente. Um dos exercícios foi esse a que se referiram. Um submarino acoplou a outro e eu passei de um para o outro.
Será por isso que lhe chamam ambicioso?
Fui dos poucos oficiais que ao longo da minha carreira tive lutas com os meus superiores e entrei nalgumas que me podiam ter destruído a carreira.
Por exemplo?
Houve uma altura em que, por questões estatutárias, os oficiais estavam muito revoltados. Era tenente e dirigi-me ao comandante e disse-lhe: «Vocês não estão a passar a informação descendente e andamos todos indignados». E ele disse: «E tu és o chefe dos revoltosos, és um comunista». E dizem-me que já não voltava à esquadrilha. Um dos meus tios esta envolvido na política e, deve ter sido por isso, que poucos dias depois vieram ter comigo como se nada fosse. O comandante até me disse que eu tinha sido leal e que até podia indo colocando-o a par do que ia acontecendo. Eu respondi: «Deve estar a brincar comigo, ontem chamaram-me comunista e agora querem que eu seja um Pide!».
Já se percebeu que os submarinos são a sua vida. Tem hobbies, algum clube de futebol?
O Benfica, por causa do Eusébio, que nasceu em Moçambique como eu.
Os seus amigos nem sabem qual é o seu clube. O amor à bola não deve ser grande…
Tenho muito pouco prazer em ver 22 homens a correr atrás de uma bola.
Também há futebol feminino!
Aí, se calhar, tenho mais prazer… (risos) Na verdade, sou uma pessoa muito aborrecida na minha vida diária. Estou de tal maneira focado nas coisas que tenho de fazer que roubo a paciência às pessoas que vivem comigo. Ando sempre noutro hemisfério. Essas coisas do futebol… não tenho nenhum prazer em beber umas cervejas e comer tremoços… e gritar. A tal euforia. Das missões mais importantes que fiz foi essa dos 31 dias. Até já contei isto. Quando cheguei estão lá balões, música… Odiei aquilo. Queria ter chegado da forma mais discreta. Queria ter feito o que fiz todos os dias, chegava, ia tomar café com o meu comandante, conversávamos ali 20 minutos, eu ia para o meu gabinete, ele ia para o gabinete dele e depois ia para casa ao final do dia. Isso era o suprassumo da barbatana: ter feito aquele feito, ir beber o café e ir para casa. A festa estragou aquilo tudo. Transformou aquilo precisamente no que eu queria. Até dá a sensação que eu vim para a festa. O meu comandante na altura percebeu, mas ninguém percebeu exatamente por que é que eu queria fazer aquilo para além do desafio. O submarino é a última arma estratégica do país. Enquanto estiver no mar, ninguém se aproxima da nossa costa e dá tempo ao Governo para negociar. Logo a seguir fui fazer uma missão que foi reabastecer o submarino no mar para fazer 60 dias. E testei. E depois quis fazer os 60 dias e não me deixaram. Se pudesse estar um ano no mar e conseguisse, fazia.
Qual é o recorde atual?
80 dias, com submarinos nucleares. Desenhei um grande desafio para os submarinos novos e nunca consegui fazer. Era passar por baixo da calota polar ártica, ser o primeiro submarino convencional a passar de um lado para o outro. Mas depois os medos, os receios… Temos um sistema que permite recarregar as baterias de baixo de água. Era possível. Dava para navegar mil quilómetros debaixo de água.
Soubemos que se entretém a fazer aviões de papel que ficam a planar como por magia. E depois dá grandes ‘secas’ aos seus colegas para lhes explicar, no quadro branco que já é a sua sombra, por fórmulas e integrais como conseguiu o feito.
(risos) Já vos disse que sou uma pessoa aborrecida. A matemática é a realidade e a realidade é a matemática. Eu tento ver o problema de uma forma muito física e, quando não consigo, desinteresso-me. Para mim, a matemática e a física são ferramentas para a vida. O que eu gosto é de encontrar a ferramenta, não tenho a preocupação super-teórica sobre o problema.
Também já tem feito o desenho do barco de guerra do futuro. Como será?
Acho que a guerra no futuro vai ser robotizada, mas a Marinha tem de fazer rapidamente uma revolução. Lá está, estamos presos aos velhos medos e também aqui estou isolado. Tenho pessoas do meu lado, mas grande parte quer seguir os caminhos tradicionais.
Mas não disse como será o barco.
É uma plataforma de onde, em vez de aviões, sairão drones.
A esquadrilha portuguesa de submarinos já tem dois drones ou três, não é?
Sim, mas não somos pioneiros nisso. Servem para mapear a costa e ver se há ou não minas para o submarino poder progredir.
Mas estão para chegar drones com funções de guerra.
Sim, mas podiam ser feitos cá. Eu posso pôr uma empresa portuguesa a fazer os drones, com tecnologia e conhecimento que depois fica interiorizado por quem o fez e, no futuro, podem ser uma grande fonte de negócio para a empresa e para Portugal. Se podemos fazer isso, porque havemos de comprar, de chave na mão, no estrangeiro, e trazer para casa uma porcaria gastando-se duas a três vezes mais? Acho que, na área militar, tem de se investir a sério e pensando nos benefícios para a nossa economia.
Quer dizer que esses drones não terão a capacidade dos de Israel, por exemplo, que podem transportar mísseis.
Acho que nós conseguimos fazer um drone tão bom ou igual aos israelitas. Temos tecnologia hoje no país para o fazer. Eu já desenhei o protótipo para um drone, que está neste momento em elaboração no EMGFA.
Quais são as capacidades do seu drone?
Entre outras coisas, dispara para baixo. Mas pode levar rockets e bombas.
Quando disse que tem de haver rapidamente uma revolução na Marinha é porque acha que a situação, ao nível do terrorismo se vai complicar?
Cada vez mais o combate é assimétrico. E o combate assimétrico exige armas de outro tipo e uma outra postura. Depois, a intervenção não é puramente militar, tem competências civis muito fortes. O mundo está todo em mudança e eu olho para o que temos e penso que ainda estamos no século passado. Como estávamos, aliás, quando terminou a ‘guerra fria’, sendo que o mundo já evoluiu muito mais.
Não tem medo que os drones, a guerra à distância, banalize a morte, como nos videojogos de guerra, tipo ‘Call of Duty’?
Sou um forte adepto da robotização da guerra, mas também tenho muitas preocupações éticas com o que isso vai criar. Um robô não pode decidir por um algoritmo que vai matar uma pessoa. Mas nós não podemos pensar que a guerra é fácil porque do nosso lado morrem drones e do outro lado morrem pessoas. Como em todos os desenvolvimentos humanos – como quando se criou a primeira metralhadora, por exemplo, e elas ainda são usadas –, matava-se em muito maior quantidade. Portanto, tem de haver cuidados éticos na sua utilização, porque, se for irrestrita, então os drones de guerra nem deveriam ter sido inventados. Portugal, sendo um país pequeno, tem de se proteger. Vejo sempre a guerra não no sentido ofensivo, mas defensivo. E a guerra tem de ter ética.
Na questão das vacinas, o rigor aliado à sua capacidade organizativa fez de si a pessoa do ano. Há já quem diga que vai ser o novo chefe do Estado-Maior General da Armada e quem o veja mesmo como um forte candidato à Presidência da República. Até correu uma petição para que seja o coordenador dos próximos fundos europeus. Vê-se nalgum destes papéis?
Lá está, não sou ambicioso como alguns dizem. O poder só serve para fazer coisas. As pessoas não percebem que eu posso estar tão contente a fazer um pequeno drone, como a ter um grande desafio. Em termos intelectuais, preenche-me perfeitamente.
Quando o convidaram para liderar a ‘task force” do plano de vacinação, sentiu isso como um desafio?
Não. Aceitei porque o país precisava e eu tenho ‘skills’ que podiam ser úteis. Quando entrei para os submarinos, nos lemes, havia um letreiro que dizia: «A Pátria honrai que a Pátria vos contempla». Achava aquilo mesmo serôdio! Mas evoluí. Sou militar e, se for necessário defender o meu país, não posso falhar.
O que o chateou mais neste processo?
O que me chateia é a cultura do português. Como povo, temos coisas fantásticas, mas, ao nível organizativo, acreditamos muito no improviso. Nisto sou muito anglo-saxónico e faz-me confusão a inércia do sistema. As pessoas estão mais preocupadas com a sua posição do que com aquilo que devem fazer.
Por aquilo que descreveu de si próprio, um homem que privilegia as soluções, a ideia com que ficamos ao longo desta pandemia é que as pessoas não falam umas com as outras, não há uma discussão crítica como o que assistimos aqui no seu briefing com a sua equipa.
Mas isso acontece até com militares. Sou general de 3 estrelas e tenho colegas com a mesma antiguidade que não fazem os briefings que eu faço. Chegam, têm uma cadeira especial, toda a gente fica em sentido, todos muito formais. Eu gosto de me envolver. Isto é um submarino para mim. E isso também os envolve a eles.
Antes de substituir Francisco Ramos à frente da ‘task force’, já integrava a equipa. A saída dele foi acompanhada de muitas críticas, até numa altura complicada em que havia muitos relatos de desvios de vacinas. Considera que as críticas que se fizeram a seu respeito foram justas?
Acho que, de alguma forma, foram injustas. A não ser quando se envolveu em questões políticas, como com o Chega. Ele tentou congregar o grupo da melhor forma possível. Agora, um político não é um logístico e não está habituado a enfrentar problemas deste género.
Portanto, o problema foram as questões logísticas?
A mim deram-me uma tarefa para fazer: tratar da logística das vacinas porque elas vão chegar a Lisboa e vai-se distribuir e armazenar. E eu tratei, nunca falhou. Mas na altura fiz um plano mais macro e disse: «Atenção que vai haver problemas». E apontei-os. Mas ninguém resolveu. E o plano que saiu é apenas um décimo do meu.
Foi a parte prática que não foi operacionalizada?
Sim, toda a parte prática. Havia o conceito de que a vacinação conseguia ser feita através dos centros de saúde normais, como uma vacinação reforçada da gripe. Disse desde o início que não ia ser assim. Achavam que a vacinação poderia ser distribuída pelas ARS e avisei que o processo tinha de ser centralizado. Houve logo divergências de opinião. Mas foi o Francisco Ramos que arrancou com o processo e o arranque é sempre uma coisa muito difícil. Ele enfrentou a parte inicial, que foi muito dura.
A sua nomeação foi uma decisão do Governo ou do Presidente da República?
Penso que foi uma coisa natural. Eu já estava envolvido.
A Ordem dos Médicos, que até o homenageou recentemente, chegou a defender que houvesse uma liderança militar neste combate à pandemia. Acha que fazia sentido?
A liderança militar pode fazer sentido em termos do que é o nosso ritmo de resolver problemas complexos e encontrar soluções rápidas. Mas o que achava mais correto era uma liderança fora do sistema porque a liderança dentro do sistema é mais difícil de ser recebida. Eu teria feito duas coisas simultaneamente: uma liderança fora do sistema e uma liderança com suporte militar.
No sentido em que não há uma hierarquia por cima de outra hierarquia?
Não, porque dependia diretamente do ministro da Saúde. E, independentemente disso, tem outra liberdade de ação e as pessoas respeitam. Por exemplo: eu sou alto, visto uniforme, tenho voz de comando e sou assertivo. Só essas quatro coisas ajudam logo o processo. Depois, tenho ideias, desenvolvo-as e sou obsessivo. Faço o que tiver de fazer e sou impiedoso com os malandros. Sou super piedoso para as pessoas que fazem bem, erram, mas deram tudo.
O que pensa do desempenho de Marta Temido?
Como militar, não posso classificar um superior hierárquico. Mas tenho a maior consideração por ela e temos uma excelente relação.
Tem falado muito da questão das regiões ultraperiféricas, até pela questão dos Açores. Que desigualdades é que encontra na Saúde? Também precisa de uma revolução?
A Saúde está em guerra há um ano e fez muita coisa boa. É um sistema muito distribuído. A dificuldade que a Saúde tem é a de ter um comando muito centralizado. Não faz parte do ADN da Saúde ter um comando centralizado. Tem um comando político centralizado, mas depois o comando operativo é muito distribuído. A dificuldade que eu senti foi agarrar num comando operativo distribuído e dar-lhe uma consistência de um plano centralizado. Agora a Saúde tem muitas coisas… todos os ministérios têm. Este país eram anos para endireitar.
Com umas folhas de excel e um balança à porta?
Passei a minha vida a lutar contra o sistema. Tive muitas lutas.
Esta ‘guerra’ da vacinação vai acabar quando? Vamos chegar em agosto a 70% de adultos vacinados com a primeira dose. Quando é que terão as duas doses?
Em princípio, em meados de setembro/outubro. Avanço com as primeiras doses e simultaneamente avanço com as segundas doses mas as primeiras doses são cerca de 20 a 30 por cento mais do que as segundas. Por exemplo hoje nós temos, grosso modo, 50 por cento de primeiras doses dadas e 30 por cento de segundas doses. Daqui a um mês temos 50 por cento de segundas doses e cerca de 70 por cento de primeiras doses. No mês a seguir temos 90 por cento de segundas doses e 70 por cento de segundas doses. O desfasamento é cerca de 20 por cento entre as primeiras e as segundas.
Mesmo os atrasos nas entregas que surgiram.
Como bom militar, quando fiz estes cálculos deixei uma folga. Agora, como os últimos acontecimentos, ‘comeram-me’ essa folga, mas a previsão mantém-se. Gostava que fosse mais…
Com a nova variante há a ideia de que será preciso vacinar uma percentagem maior da população para conseguir a imunidade de grupo, incluindo adolescentes.
Ninguém tem prova disso. Estou a fazer gráficos em que vejo a taxa de vacinação por concelho e a incidência por concelho. E olhando para os dados das últimas três semanas, a média acumulada em 14 dias por cem mil habitantes e a média acumulada da semana passada estão exatamente com o mesmo comportamento relativamente à percentagem de vacinação. Ou seja, a variante propaga-se mais mas é igualmente contida pela vacinação. Pelo menos, por enquanto não estou a notar isso. O que noto, à data de hoje e com os dados que tenho, é que em termos de mortalidade as vacinas continuam a proteger a população. O que acontece é que há pessoas que estão a apanhar porque só têm uma dose e uma dose protege pouco, sobretudo com a dose da AstraZeneca, e é isso que eu estou a acelerar agora a processo. E quando digo que protege pouco, é relativo. Protege muito, deixa é escapar alguns. Se tiverem as duas doses não deixar escapara nenhum. Neste momento estamos a acelerar a vacinação das duas doses das Astra porque é a forma mais inteligente de proteger a nossa população e por enquanto os dados que temos não demonstram que os efeitos de proteção das vacinas sobre a população estejam a ser postos em causa pela nova variante. Também não mostram que os efeitos sobre a incidência também estejam a ser postos em causa. Ou seja a vacina faz dois efeitos: protege vidas e reduz a incidência.
E nota-se a diferença entre concelhos?
Tenho concelhos com 70 por cento de vacinação já feita, concelhos muito pequeninos, e olhando para eles a incidência está a baixar imenso, está abaixo de 60. Quando olho para os 308 concelhos e vejo uns com maior incidência, vou ver os dados e têm pouca vacinação. A maior incidência é nos concelhos mais populosos porque não há vacinas para avançar com o ritmo como desejávamos. De qualquer forma, estamos a 50 por cento de segundas doses. Metade da população portuguesa já recebeu uma dose. E 30 por cento, duas doses. Agora eu gostaria de poder acelerar mais. Aliás eu gostaria de ter podido acelerar mais atrás. Porque como foram adiando a entrega das vacinas, e isto foi constante, fez-me perder tempo para trás. Se me tivessem dado aquelas vacinas na altura que me estavam prometidas eu já estaria em 60 ou 65 por cento de vacinação.
E já se fala da necessidade de um reforço no início do inverno por causa das novas variantes…
Está bem. Mas de reforço em reforço eu tenho emprego para 100 anos. (risos)
Mas já está a trabalhar nesse eventual plano de reforço, que pode coincidir com a vacinação da gripe, ou tem tudo preparado para sair e deixar escola?
O fundamental é deixar escola. Ajudar o Ministério da Saúde a crescer na sua organização interna para que consiga depois lidar com isto. Nenhum Ministério da Saúde do mundo estava preparado para vacinar a população toda. Agora já estão preparados.
O que vai fazer a seguir, já sabe?
Não estou preocupado com o meu futuro.
Mas está com 60 anos e não falta muito para passar à reserva.
Se passar, passei. Eu costumo dizer que tenho uma doença e estou à espera que me curem da doença. Ou é a idade que me cura a doença ou alguém que me diz que já não precisam de mim. Aí, fico livre. Hei de ir para África fazer alguma coisa. (risos)
Acha que está a haver um aproveitamento político da vacinação? Uma de nós, por exemplo, apanhou a primeira dose e, quando ia a sair do pavilhão, uma funcionária ofereceu uma merenda com as seguintes palavras: ‘É um miminho da CML’.
A política existe em todos os momentos da nossa vida. Este é mais um. Por um lado, há um aproveitamento político da vacinação por parte dos autarcas mas, na realidade, eles estão a fazer um esforço tremendo e têm sido essenciais neste processo. Se as senhoras fossem agentes políticos, se tivesse feito um esforço imenso para atingir um determinado objetivo, não gostariam de ser reconhecidas por isso? Os autarcas estão completamente envolvidos neste processo e agradeço-lhes do coração.
No país, é visto como uma espécie de super-homem, tecem-lhe enormes elogios. Mas a sua lição fará história?
Tem de fazer. Isto é como uma guerra. E numa guerra a sociedade reestrutura-se para combater o inimigo, não pode ser como anteriormente, em que era cada um por si. Essa reestruturação obriga a uniões de esforços que nunca antes foram feitas, porque não foi necessário. Esta pandemia só veio mostrar que a nossa sociedade tem de ter conectores para, através deles, se trabalhar em conjunto. É a grande lição do futuro. Quando as coisas estão muito departamentalizadas, não é bom.
Quando atingir a meta dos 70% de vacinação, vai festejar com um cafezinho ou já está preparado para a fanfarra política e camarária?
Quando isso acontecer, vou dormir mais cedo e profundamente. E acordo no outro dia muito mais tarde. O meu sistema está de tal forma saturado que já não sinto as coisas normais.
Isso é complicado!
É como ter um mecanismo que já foi puxado com tanta força e tantas vezes que, quando abranda, já não se adapta. E quando sofro, trabalho ainda mais. E como não me canso, torno-me cansativo.
Tem de fazer um retiro espiritual.
Para fazer um retiro espiritual, tinha de ter duas coisas: uma corda e uma árvore para me enforcar. (risos)