Arrepia só de pensar que Eduardo Cabrita, ainda ministro da Administração Interna, precisou de duas semanas para se pronunciar sobre o atropelamento fatal de um trabalhador na A6, que envolveu o carro em que seguia.
Fê-lo depois de resistir a um ‘empurrão’ presidencial, e a um desmentido formal da Brisa ao comunicado do seu gabinete, que atribuía o acidente brutal à falta de sinalização dos trabalhos no local.
Fê-lo, ainda, para anunciar que não tencionava demitir-se, endossando ao primeiro-ministro qualquer decisão a esse respeito.
Fê-lo, finalmente, para se gabar do trabalho feito enquanto ministro, invocando a seu favor o facto de terem descido os indicadores de criminalidade, algo que ninguém lhe perguntou nem vinha a propósito.
Tem-se dito e escrito que, depois do seu comportamento no caso do ucraniano assassinado nas instalações do SEF, no aeroporto de Lisboa, já nada mais surpreenderia em Eduardo Cabrita. Mas não é verdade.
O certo é que, embora no plano político o ministro tenha perdido autoridade e credibilidade, a sua não substituição confirma, apenas, que o primeiro-ministro desvaloriza, olimpicamente, as críticas no espaço público, como se fossem irrelevâncias.
Não obstante, apressou-se a informar o jornal Público, que não tencionava mexer no Governo, depois de outro ministro – o ‘maratonista’ governamental e ‘cientista profissional’, Augusto Santos Silva – ter confessado ao Expresso que gostaria de voltar à sua vidinha académica, depois de prestar tanto serviço, eclético, à Pátria.
Parecia ser uma antecipação a mudanças iminentes. Mas não. Quando António Costa admoestou, suavemente, Santos Silva, ironizando que até o «mais frio racionalista tem sempre um momento de ingenuidade», o chefe da diplomacia tratou logo de dar ‘o dito por não dito’, como se a frase tivesse sido retirada do contexto por um jornalista distraído.
Compreende-se o desconforto, porque ingenuidade é pecado em que António Costa não incorre. E mesmo que estivesse entretido, em ‘isolamento profilático’, a redesenhar o puzzle do Governo, o deslize de Santos Silva terá sido pouco diplomático… mas suficiente para travar qualquer mexida a levedar.
Sabe-se que o Governo está desgastado e que o primeiro-ministro não tem condições para manter a confiança em governantes como Eduardo Cabrita, Brandão Rodrigues, Marta Temido ou mesmo Mariana Vieira da Silva, um equívoco como porta-voz do Conselho de Ministros.
Todavia, sabe-se, também, que a base de recrutamento de Costa é exígua, e raramente se afasta dos ‘viveiros’ socialistas.
O novo adiamento do congresso do PS, saído do Conselho Nacional, poderá não ser apenas explicável pelas contingências da pandemia.
Mas serviu, ao menos, para Carlos César, enquanto presidente do PS, sair em defesa de Eduardo Cabrita, com uma fábula moral sobre o suposto aproveitamento político do atropelamento mortal na A6.
De facto, ‘imoral” terá sido o silêncio em que se fechou o ministro após o acidente. Ou o comunicado oficial, de uma chocante insensibilidade, onde se procurava atribuir culpas à vítima.
Aliás, a crónica ‘imoral’ do PS e de alguns dos seus ‘notáveis’ tem raízes fundas e um histórico respeitável.
Recorde-se, por exemplo, maio de 2018, quando Carlos César, então líder parlamentar, confessava a «vergonha» que o partido sentia pelas suspeitas de corrupção que recaíam sobre Manuel Pinho, e, principalmente, sobre José Sócrates, reconhecendo que «a vergonha até é maior porque era primeiro-ministro». Mas a ‘vergonha’ foi ‘sol e pouca dura’.
A realidade é que o PS, ágil, desembaraçou-se de Sócrates, apesar das alegrias que tivera com ele. Em contrapartida, nunca deixou de acarinhar os seus mais fiéis prosélitos. Embora tenha acompanhado Sócrates de perto, Costa não hesitou em culpar Passos Coelho pela austeridade da qual eram responsáveis, como se ele e outros não tivessem partilhado a governação socialista que afundou o país, vinculando-o às condições severas exigidas pela troika para o resgate. Imoral?…
Há dias, rebentou a ‘bolha’ de Joe Berardo, um dos principais devedores da Caixa e do BCP, que serviu de ‘cavalo de Troia’ aos desígnios do PS de Sócrates para controlar a Banca, depois de controlar a Justiça e boa parte dos media.
As diatribes de Berardo aconchegaram-se nos corredores do poder, quando Sócrates era ‘rei e senhor’.
Derreteram-se milhões de euros do Banco público na operação de ‘assalto’ ao BCP, mais tarde com os socialistas Carlos Santos Ferreira e Armando Vara transferidos diretamente da Caixa para a cúpula do Banco fundado por Jardim Gonçalves, que esteve à beira de falir. Onde andava César por essa altura?
Como escreveu José Manuel Fernandes, numa feliz síntese no Observador, «estamos nas mãos de muita gente que não presta!»… Está tudo dito.