Itália celebra em 2021 os 700 anos da morte do seu genial poeta Dante Alighieri (1265-1321). Mas será que esta obra, escrita no final da Idade Média, já lá vão mais de sete séculos, ainda tem alguma coisa para dizer aos homens de hoje? John Took, que dedicou a sua vida ao estudo de Dante, acredita que sim. «A Commedia tem tudo a ver com o processo de desviarmo-nos de nós próprios, debatermo-nos, lutarmos, autotranscendermo-nos e atingirmos o êxtase. Dante acreditava que somos capazes de atingir o Paraíso aqui e agora», explica o professor emérito em Estudos de Dante no University College de Londres.
Took apaixonou-se pela cultura italiana, muito por causa de uma tia florentina, era ainda adolescente. Hoje continua a dar aulas e palestras para alunos avançados. E a escrever. Já assinou uma biografia do autor da Divina Comédia e o seu livro A Importância de Dante – Um guia para pessoas inteligentes (Bertrand Editora) acaba de ser publicado em Portugal. Será surpreendente para muitos verificar que a abordagem de Took a Dante é informada por filósofos modernos como Kierkgaard e Heidegger. Mas não nos deixemos intimidar, até porque o entusiasmo com que o entrevistado fala, mesmo à distância, é verdadeiramente contagiante.
Lembra-se da primeira vez que leu Dante? Foi amor à primeira vista, como o do poeta por Beatriz?
A universidade onde eu estudei era muito forte nos estudos do Renascimento. Mas assim que li Dante, que é um autor pré-renascentista, fiquei rendido, enfeitiçado, intrigado, pois trata-se de um poeta que tem um enorme significado e uma enorme importância a nível existencial. Assim que descobri Dante, que primeiro li em tradução, fiquei rendido.
E isso levou-o a querer aprender italiano?
Já tinha estudado italiano na escola secundária, mas também tinha um tio que durante a guerra casou com uma mulher florentina muito bonita – e penso que eu próprio estava um bocadinho apaixonado por ela. Houve um conjunto de circunstâncias durante a adolescência que me levaram a querer aprender italiano, de modo a poder ler os autores italianos no original, e Dante acima de todos.
Eu sempre vi Dante como um poeta. Mas o seu livro mostra-o sobretudo como um filósofo. Privilegiou o Dante pensador sobre o Dante escritor?
As duas facetas são indissociáveis em Dante. A certa altura do seu tratado De Vulgar Eloquentia ele fala do verso como a derradeira forma de compreensão. Era um pensador, um filósofo, no Convívio celebra a filosofia etimologicamente, philo-sofia, o amor da sabedoria. Mas as ideias acabam por ser sempre apresentadas e exploradas sob a forma, como ele diz, ‘musical e retórica’ da poesia. Não me parece que possamos separar facilmente o poeta para um lado e o filósofo para o outro. O poeta está intelectualmente empenhado ao máximo e o filósofo busca a expressão poética da ideia.
Costumamos ver o Renascimento como a época que recuperou a cultura clássica. Mas Dante, em plena Idade Média, é um entusiasta de Aristóteles e de Catão…
Sem dúvida.
… ao mesmo tempo que nos oferece uma visão neoplatónica e, na Divina Comédia, temos Vergílio como guia. Isto obriga a repensar essa noção da Idade Média como um período que ignorou a herança clássica ou Dante foi um paladino do classicismo antes do tempo?
Essa pergunta é muito complicada e muito interessante. Dante estava enamorado, prezava muitíssimo os seus autores clássicos. Estácio, Vergílio, Ovídio, Lucano, Horácio, estava familiarizado com todos eles e adorava-os. Falando em traços muito gerais, podemos fazer uma distinção preliminar. O autor clássico em Dante é uma espécie de companheiro, quase como se a distância histórica tivesse sido eliminada. Em certo sentido, Vergílio e Aristóteles estão lá como contemporâneos de Dante. Já quando falamos do Renascimento, há uma tentativa histórica, filológica, de recuperar esse legado saltando gerações, saltando séculos, é outro tipo de relação. Isto é apenas o início da resposta. E sim, temos de repensar a relação entre o período da alta escolástica [séculos XIII-XIV], a época de São Tomás de Aquino, de Alberto Magno ou de São Boaventura. Também eles estavam enamorados dos autores clássicos. Assim, há um contínuo das fontes entre a época da alta escolástica e Renascimento. Mas há também uma diferença filológica, académica e psicológica na forma como os autores clássicos são encarados. Nesse aspeto, temos um enorme contraste entre Dante e o outro grande poeta medieval italiano, Petrarca. A forma de se relacionarem com os autores clássicos é contrastante. Portanto, há continuidade mas também há alteridade.
Referiu que Dante via os autores clássicos como seus contemporâneos. Ao mesmo tempo ele elimina a distância para com o leitor, vê-o como um companheiro que está ao seu lado a ler enquanto ele escreve, não é?
Completamente. Esse aspeto é crucial. Dante está constantemente a convocar o leitor: ‘Lettore, vê o que me aconteceu’, ‘percebes o que estou a dizer?’. O leitor é chamado a entrar no texto, em certo sentido a gerar e a confirmar o sentido. Roland Barthes distinguiu entre o ‘legível’ e o ‘escrevível’. Um texto ‘escrevível’ quase envolve também o leitor na escrita. E é exatamente isso que acontece em Dante. Em particular na Comédia, em que o leitor é puxado para o texto para colaborar com Dante.
Há uma passagem em que ele se refere aos «príncipes, barões e cavaleiros». Era para estas pessoas que escrevia? Quem eram os seus leitores?
No Convívio, que escreveu pouco depois de ir para o exílio, provavelmente entre 1300 e 1307, Dante identifica as pessoas para quem escreve, de modo muito explícito, logo no primeiro capítulo. «Escrevo para as pessoas, nesta nossa língua, na Península Itálica, que carregam o fardo do serviço doméstico e cívico, la intelligentsia». Não para filósofos, não para teólogos, mas para os homens e mulheres inteligentes que têm responsabilidades cívicas e domésticas. No capítulo IX do Convívio fala de novo das «pessoas nobres para quem escrevo». Tem uma consciência económica e sócio-política, escreve para um certo tipo de pessoas. E são essas, implicitamente, as pessoas para quem escreve na Comédia. Com uma exceção: quando chegamos ao canto de Cacciaguida no Paradiso, Dante dá mais um passo: ‘Escrevo para aqueles que acharão que este é um tempo antigo’. Esses somos nós! Dante, por outras palavras, está a dirigir-se às gerações que viriam depois dele.
Está a pensar na posteridade.
Absolutamente.
Noutro momento do Convívio, fala nos homens «que hanno inteletto, che sono pochi» – ‘que são poucos’.
[risos] Pois fala.
Era pessimista em relação ao ser humano?
Como acontece com todos nós, havia forças em tensão na personalidade de Dante. Tinha uma consciência muito ampla dos homens e mulheres da sua geração, como referi, «que carregam o fardo do serviço cívico». Mas ao mesmo tempo era orgulhoso ao ponto de roçar a hubris. No Purgatório, quando chega ao segundo círculo, diz: ‘Não terei de passar muito tempo aqui’ – e provavelmente tem razão, porque não me parece que ele invejasse alguém. ‘Mas terei de passar algum tempo lá em baixo no primeiro círculo’, que é o do orgulho. No Purgatório fala também dos poetas seus contemporâneos, Guido Guinizzelli e Guido Cavalcanti, que levaram a poesia adiante, ‘mas talvez já tenha nascido outro’ – ele não se refere explicitamente a si próprio – ‘que os vai atirar para fora do ninho’. Nós sabemos de quem ele está a falar. [risos] Nesse sentido era como Beethoven, uma figura autocelebratória que, ao mesmo tempo – isto é parte da contradição do ser humano – se esforçava por ser humilde. Uma das razões por que levamos Dante a sério é porque ele estava consciente das tensões que havia na sua própria personalidade. Era um ser humano difícil, complexo. Era o Inferno, o Purgatório e o Paraíso todos ao mesmo tempo. Era simultaneamente orgulhoso e humilde… tal e qual, suponho, como todos nós.
Dante foi talvez o primeiro grande escritor a escrever em língua vernácula. O leitor mais sofisticado não preferia ler em latim?
Dante é taxativo quanto a isso. Escreve em italiano por várias razões. No primeiro livro do Convívio diz, como já referi, que escreve para um determinado grupo de pessoas, de uma determinado meio político e económico. E fá-lo numa língua que lhe permite fazer uma dádiva – estou a repetir as palavras dele: ‘Eu Alighieri, estou a fazer uma dádiva. Não posso fazer essa dádiva em latim pois muito poucos daqueles para quem escrevo compreendem o latim’. Ou seja, está a escrever em vernáculo para essas pessoas e faz uma apologia da língua italiana. ‘Escrevo em italiano porque o italiano não é inferior ao latim no que diz respeito à beleza da língua, e seu poder de expressão’. Na realidade, podemos vê-lo a raciocinar, porque no capítulo cinco do primeiro livro do Convívio diz: ‘O latim é a língua da alta cultura, é muito mais belo e poderoso’. Mas assim que chegamos ao capítulo dez, apenas algumas páginas mais à frente, mudou de opinião! ‘Não, não, não, nada disso. Esta língua, na sua virtude e na sua beleza é absolutamente comparável ao latim’. Tendo identificado a sua comunidade de leitores, escreve em vernáculo, não apenas por estratégia mas porque está absolutamente apaixonado pelo vernáculo. Não precisa de acreditar em mim – leia o primeiro livro do Convívio, onde Dante diz: ‘Eu sou amigo do vernáculo e o vernáculo é meu amigo. Estou a embelezar e a acarinhar o vernáculo’. Essa é outra das razões por que gostamos de Dante: o seu amor pelo vernáculo como forma de humildade é absoluto. É um ensaio sobre o amor pela língua italiana. Qual é a sua língua nativa?
Português.
Então sabe do que estou a falar. Dante diz no início do De Vulgar Eloquentia: ‘A língua materna’ – seja português, inglês ou italiano – ‘é a língua que nos molda, nos determina, que substancia a nossa humanidade’. E Dante está apaixonadíssimo pelo vernáculo por essa razão.
Você parece conhecer a obra toda de Dante de cor. Faz-me lembrar a minha avó paterna, que dava as aulas sobre Os Lusíadas, de Camões, sem precisar de ter o livro aberto à frente.
Vivi com Dante toda a minha vida, foi-se tornando parte integrante de mim.
Sei que escreveu uma biografia de Dante. Ele tinha uma profissão ou vivia exclusivamente da escrita?
Antes do exílio (no início de 1302) e depois da morte de Beatriz (em junho de 1290), Dante esteve envolvido na política florentina ao mais alto nível. A cidade era governada por seis ‘priores’ e Dante era um deles. Era muito franco e em parte foi essa franqueza, em particular no que dizia respeito à interferência papal no governo de Florença, que levou ao seu exílio. Dante assumiu responsabilidades – responsabilidades domésticas [familiares] com a morte do seu pai e, progressivamente, responsabilidades políticas. Temos alguns documentos, não muitos, na Biblioteca Nacional, em Florença relativos à sua atividade como conselheiro e por fim como prior. Não julgo que tivesse muito jeito para gerir o dinheiro, mas o irmão, Francesco, parece tê-lo ajudado.
Há muitos locais em Florença por onde Dante tenha passado? Poderíamos fazer um itinerário de Dante?
Sem dúvida. Meu Deus, estou tão ansioso pelo fim do covid! O meu coração está em Florença e pretendo regressar em breve. Nos meus tempos de estudante passei horas, horas e horas a vaguear pelas zonas que Dante conhecia. Na parte central da cidade, entre o Ponte Vecchio e até Santa Croce, se andar por ali consegue ver algumas das coisas que Dante viu.
A Igreja desconfiou sempre da mulher, desde Eva, que está na origem do pecado original. Esta ideia de Dante de chegar ao conhecimento de Deus através do amor por uma mulher não corria o risco de ser considerada herética, ou pelo menos problemática?
No que respeita à Vita Nuova [obra de juventude onde Dante disserta sobre o seu amor por Beatriz] temos de ser cuidadosos. Por um lado, você tem razão. Dante diz na parte em prosa da Vita Nuova que Beatriz anuncia um milagre, é uma epifania, uma presença cheia de graça e vai ao ponto de estabelecer uma analogia – não uma identificação, mas uma analogia – entre Beatriz e Cristo. A certa altura diz que a dama de Guido Cavalcanti está para Beatriz como João Baptista para Cristo.
É uma predecessora.
Isso mesmo. Mas ao mesmo tempo – e esta é uma questão delicada, estou só a dar o meu ponto de vista – penso que a Vita Nuova tem de ser interpretada fundamentalmente não tanto como uma chegada a Cristo e a Deus através de uma mulher, tem antes de mais de ser interpretada como a afirmação de uma nova tradição de escrever poesia que remonta aos provençais e depois passa pela escola siciliana e pela escola toscana. Dante explora a forma como a madonna – Beatriz – aparece perante ele não como objeto de aquisição mas de louvor: ‘A minha felicidade reside nas palavras que louvam a minha dama’. É por isso que digo que essa questão é delicada. Existe, de facto, uma analogia cristã. Mas o assunto que Dante tenta resolver é a produção da poesia amorosa vernácula e o lugar da madonna. Desde a poesia provençal que a mulher era colocada num pedestal, tinha sido saudada como a personificação da graça divina, como uma presença especial. Penso que é sobretudo isso que Dante está a explorar: uma obra de inspiração cortês com nuances, como sugere, teológicas. Mas fundamentalmente uma afirmação da poesia amorosa em língua vernácula.
Na Divina Comédia Dante encontra Beatriz no Paraíso. Esta pergunta poderá parecer-lhe prosaica, mas o que acharia a mulher de Dante sobre este amor platónico? Não seria motivo para ficar incomodada?
[risos] Essa é uma pergunta que nos ocorre: ‘O que pensaria a Senhora Alighieri sobre isto?’. Claro que não podemos saber o que lhe ia na cabeça, mas penso que a resposta não andará muito longe disto: a natureza da celebração de Beatriz não é a de uma traição conjugal, no sentido habitual, mas de um topos literário. Está a explorar uma herança literária que, como eu disse, vinha de há gerações. Gemma Donati tinha de ser uma mulher inteligente. Talvez quando lá chegarmos possamos perguntar-lhe [risos], mas, para já, julgo que ela diria algo do género: ‘Sim, o meu marido está a experimentar, a tentar cumprir o seu destino como poeta vernáculo do amor cortês’ – com tudo o que isso implica, ou seja, a celebração de uma mulher ideal.
Ainda dá aulas?
Reformei-me do University College há três anos mas tenho o privilégio de dar aulas no Instituto Cultural Italiano em Londres. Este ano tem sido em modo virtual e tivemos pessoas de todo o mundo. Também trabalho com um colega do Instituto Warburg, dando palestras a estudantes avançados. Tem sido uma delícia. Sempre gostei muito de dar aulas a jovens estudantes, de 18, 19 anos. Mas também é esplêndido ensinar adultos porque viveram. Já andaram por aí algum tempo e têm experiência de vida, experimentaram a agonia e o êxtase da sua própria humanidade. Percebem muito rapidamente o que significa falar de Inferno, Purgatório e Paraíso. Não como algo para onde vamos depois da vida, mas como estruturas de consciência na nossa existência, aqui e agora. A Comédia tem tudo a ver com o processo de desviarmo-nos de nós próprios – Inferno –, esforçarmo-nos – Purgatório – e autotranscendermo-nos – Paradiso. Do que somos capazes, acreditava Dante, aqui e agora.
É fácil convencer um jovem do século XXI de que vale a pena ler aquilo que um italiano escreveu há mais de 700 anos? Dante não é considerado aborrecido?
Seria extremamente aborrecido se eu simplesmente desbobinasse informação filosófica ou teológica. Como professores, temos de adaptar as aulas à idade e à capacidade, interesses, entusiasmos e possibilidades das pessoas que estamos a ensinar. Chegamos lá apresentando o que interessa a toda a gente: ‘Pensem agora nos problemas e questões da vossa própria humanidade’. Somos criaturas capazes de se traírem a si próprias, somos criaturas que lutam para reter a humanidade, somos criaturas que atingem a beatitude, o Paraíso, nalguns momentos. Mesmo estudantes de 18, 19, 20 anos podem fazê-lo. A minha experiência diz-me que a maioria dos alunos – nem todos – eram sensíveis a uma análise do que realmente lhes interessa em Dante. Essa é a arte de ensinar.
Para terminar, gostaria de lhe colocar um par de questões sobre a Divina Comédia. Originalmente o título era apenas Comédia. Quando começaram a chamar-lhe ‘divina’?
É Boccaccio quem, no seu comentário escrito em meados do século XIV lhe chama ‘Divina’. E também é frequentemente assim referida durante o Renascimento. Dante nunca usa essa palavra, chamou-lhe apenas ‘Commedia’. E Comédia aqui não significa ‘ah, ah’, mas um percurso de dificuldades com um final feliz. Isto está numa carta que Dante escreveu a Cangrande della Scala [político e militar italiano, 1291-1329]. Se a tragédia é o relato de uma descida gradual e agonia da experiência humana, a comédia é o relato da ascensão gradual. É isso que temos na Divina Comédia: uma ascensão em direção ao auto-reconhecimento, auto-reconfiguração e auto-transcendência. Inferno, Purgatório e Paraíso.
Podemos dizer que o que Dante nos propõe na Divina Comédia não são apenas modelos de comportamento corrupto (no Inferno) ou virtuoso (no Paraíso) mas sobretudo um itinerário de autoconhecimento?
É isso mesmo. Dante explana o seu enunciado não através de demonstrações sistemáticas, puramente teológicas, mas em termos da agonia e do êxtase do indivíduo. Mesmo no Inferno há muitas personalidades inteligentes e até simpáticas. Francesca [da Rimini], Brunetto Latini, têm consciência do que poderiam ter sido, mas tragicamente entregaram-se a algo que ficava aquém. No Purgatório estão a redimir-se. Reconhecem: ‘Eu sou culpado’. E aí abre-se o caminho para uma reconstrução de si próprios. Esse percurso é ilustrado em todos os momentos por indivíduos – a Commedia é uma galeria de indivíduos. E o que temos no Paraíso não é uma teologia de conto de fadas, não é uma beatitude inconsciente. Sabem quem foram, mas sorriem – é muito bonito, não é? ‘Sorridere’ é uma expressão fundamental para Dante. No Paraíso sorriem ao lembrar-se de quem foram, mas estão agora abertos a uma humanidade completa e radiosa. A Commedia é um relato de um itinerário do espírito. Mais: Dante escreve na primeira pessoa – ‘Eu, Allighieri, dei por mim num bosque sombrio’… ‘Fui chamado para uma viagem diferente’, ‘un altro viaggio’, uma viagem às profundezas. ‘E, como consequência disso, elevei-me acima das esferas do Purgatório, e atingi as esferas celestes’. É um relato poderoso de um itinerário espiritual feito na primeira pessoa. Como todas as obras de Dante, é confessional e autobiográfico.
Dante coloca muita ênfase no sofrimento. Tal como Cristo sofreu na cruz nós também temos de sofrer para sermos recompensados, é isso?
No Inferno há muito sofrimento, Deus imaginou todo o tipo de castigos. Mas, mas, mas. Temos de nos questionar constantemente quem está a castigar quem no inferno. Ao nível narrativo, é Deus quem castiga. Mas o Inferno não tem a ver com isso. O Inferno é sobre a agonia daqueles que sabiam que o amor pelo mundo em redor tem de ser conciliado com uma existência que nos ponha em contacto com o Criador. Todos eles sabem isso, mas traíram-se a si próprios. Se fosse apenas uma questão de castigo divino, diríamos: ‘Que imaginação que este homem tinha! Esplêndido. O que há a seguir?’. Mas não. Somos chamados a pensar sobre a origem desse sofrimento. E essa origem é a traição de si próprio. Como é triste! O Inferno é terrivelmente triste, terrivelmente melancólico. É trágico, é tudo isso. ‘Eu traí-me a mim próprio’. Se fosse apenas uma questão de Deus dizer: ‘Vocês pecaram, aqui está o vosso castigo, vão sofrer para todo o sempre e agora amanhem-se’… Mas não é nada disso.
Dante está a alertar-nos para não nos deixarmos distrair?
Dante acreditava – e estou convencido de que tinha razão – que em cada etapa da vida somos chamados a interrogar, a confrontar o mundo à nossa volta, certamente, mas a nós próprios como agentes moralmente, intelectualmente, ontologicamente, escatologicamente responsáveis. Somos espíritos que têm de prestar contas. Dante acreditava também que somos feitos à imagem e semelhança de Deus e que, em virtude disso, temos uma responsabilidade e uma criatividade infinitas, uma criatividade amorosa. Dante foi o maior poeta do amor, mas o Inferno é um relato da ausência de amor, da negação do amor.