Como foi escrito este livro? Tinha um diário que foi escrevendo durante as reportagens que fez para a RTP no estrangeiro? Como é que estruturou a narrativa e a partir de que materiais?
Fiz isto porque tinha deixado um rasto. Vivi estas coisas, havia notas que tinha tomado… não com este objectivo. Mas tinha também as reportagens, tinha o arquivo da RTP, com uma quantidade enormíssima de material, e tinha a memória, a minha e a dos repórteres de imagem que me acompanharam. Em alguns momentos, para dissipar dúvidas que tinha, recorri a eles. Esta é também uma homenagem que faço aos repórteres de imagem, que foram os meus grandes companheiros. Os encontros começam por aí, e depois também, é claro, por todas as pessoas que vamos conhecendo pela estrada fora, e que são centrais na construção destas histórias. Mas este livro é o relato sobretudo da construção das reportagens, ou seja, a procura das histórias. Curiosamente, há histórias que só se percebem olhando já em perspectiva, tendo o benefício do transcurso do tempo, como é o caso de Timor. Há outras que compreendem umas horas ou um dia, como a da reportagem que fiz em Atenas.
E o que desencadeou o desejo de escrever o livro?
Há tempos dei por mim a ler um livro de memórias do Emundo Pedro, um histórico do Partido Socialista, que tinha um capítulo dedicado ao meu avô. O meu avô era um juiz de alfândega do Estado Novo – nunca foi um homem de esquerda, sempre foi de direita… E apesar de tudo ele fala bem do meu avô, que ele diz que o condenou. A seguir ao 25 de Abril, o Edmundo Pedro lá foi a casa do meu avô e passaram a tarde juntos, com ele a relatar nas suas memórias os verdadeiros motivos porque acabara condenado, os quais ele não podia ter confessado na altura em que foi julgado. Assim, apesar de terem visões diferentes do mundo estabeleceu-se uma relação de respeito entre os dois. Depois, no arquivo militar acabei por encontrar também umas memórias interessantes do meu outro avô, neste caso o meu avô Francisco Dentinho, que fazia parte do corpo expedicionário português e combateu na Batalha de La Lys, tendo-lhe sido atribuída a Cruz de Guerra por actos de bravura. O facto de me ter confrontado com estas memórias que, de algum modo, me estão ligadas, levou-me a querer deixar testemunho das coisas que vivi para que os meus filhos e os filhos dos repórteres de imagem que me acompanharam possam conhecer as peripécias por que passámos.
Em todos estes anos como repórter em cenários de conflito, quais foram os sucessos e os fracassos de que se foi dando conta no que toca a este modelo de reportagem televisivo?
A vida é uma aprendizagem permanente e aquilo que nós jornalistas somos é grandes curiosos. Sem curiosidade não se faz jornalismo. Acresce a isso o espírito céptico, que nos permite sermos guiados por uma dúvida permanente. Porque nós não estamos propriamente ao serviço de ninguém. O que nos orienta é a procura da verdade. Depois até podemos discutir o que é isso da verdade, mas aqui interessa-nos a verdade que se extrai dos factos. Os regimes políticos, por natureza, protegem-se tentando impor a sua narrativa. Portanto, aquilo que nos cumpre fazer é procurar ver o que está por trás dessas cortinas, tentar espreitar a realidade por trás de tudo isso que nos vão metendo à frente. Mesmo nas nossas democracias, cedo aprendemos que todo o poder tem uma visão instrumental do jornalismo. E o nosso dever é tentar trabalhar tanto quanto possível sem atender a essas agendas, porque, de outro modo, acabamos ao serviço delas.
E qual é o papel do jornalismo face à crescente onda de desinformação?
Os extremistas, populistas e todos esses movimentos mais demagógicos estão sempre a tentar passar a ideia de que todos nós estamos ao serviço dessas agendas, e essa noção vai vingando. Num momento em que os políticos e outras figuras públicas dependem cada vez menos do jornalismo para alcançarem o público, o papel do jornalista tem vindo a perder peso; o seu efeito mediador dilui-se entre esta miríade de canais mediáticos. Assim, começamos a ver desde desportistas que rejeitam participar nas conferências de imprensa e até um líder como Donald Trump que declarou guerra a vários órgãos de informação, e isto passando por Narendra Modi ou por Recep Tayyip Erdogan, líderes que têm feito uma campanha para denegrir o nosso papel, dizendo que estamos ao serviço destes ou daqueles interesses, e o facto é que já vês ensaios destes também nas nossas democracias. Cada vez mais vemos o partido A acusar os órgãos de comunicação de estarem ao serviço do partido B, e vice-versa… Esta tentativa de condicionar o nosso trabalho, minando a credibilidade do público.
Isto é um fenómeno novo?
Em grande medida, antes mesmo da entrada em cena dos partidos populistas, houve um empenho dos partidos do centro para erodir a confiança do público, nomeadamente quando estava em causa investigações sobre casos de corrupção. A verdade é que a única coisa que nos protege é sermos percepcionados como contrapoder. De outro modo, facilmente somos acusados de estar reféns dos interesses económicos e políticos que pretendem influenciar a opinião pública. E agora que estes partidos mais radicais encontraram a sua forma de passar uma mensagem de suspeita que atinte todos os sectores da sociedade democrática, e numa altura em que há cada vez menos a possibilidade de os jornalistas estarem no terreno, investigarem demoradamente e exporem os factos de forma clara e coerente, acabamos por ir ao arrasto daqueles que marcam as agendas noticiosas, e, assim, somos reféns dos spin doctors ou especialistas de comunicação. Neste arrasto, torna-se muito fácil sermos denunciados como estando ao serviço da propaganda desses poderes.
Nos últimos anos tem-se assistido a uma proletarização dos jornalistas, a uma precarização das condições de trabalho que lhes retira independência. Ao mesmo tempo, a falta de uma autocrítica, de uma análise dos aspectos que têm fragilizado a profissão… E, desde logo há uma série de jornalistas que cumprem funções paralelas e que, no fundo, lhes retiram a independência, abrindo margem a contaminações de todos os tipos.
E pode-se juntar a isso o facto de termos políticos que fazem o papel de comentadores, que são pagos para fazer comentário nos jornais e nas televisões, e há aqui uma mistura permanente de poderes que parecem articulados com o próprio jornalismo, não havendo uma clara separação entre essas esferas, o que acaba por gerar uma grande perplexidade junto de largos sectores da opinião pública. A função do jornalista enquanto contrapoder esbate-se ao ser obrigado a encontrar um equilíbrio na relação com esses vários interesses. Se o mito do jornalismo objectivo não passa disso mesmo, por ser impossível haver um discurso completamente objectivo, esse é um horizonte em relação ao qual devemos caminhar. Mas hoje o que parece essencial é uma maior separação das águas. Aquilo que temos visto é que hoje há mais jornalistas a trabalhar em agências de comunicação do que nas redacções. Isto resulta dessa proletarização da classe, e assim torna-se muito mais fácil esses esforços de condicionamento do trabalho jornalístico.
E o que tem mudado na forma como se informa no nosso país? Cada vez temos menos autonomia na definição da agenda. Vemo-nos obrigados a ouvir este e aquele, não há tempo nem dinheiro para investigações mais complexas, somos forçados a dar cobertura às conferências de imprensa de figuras destacadas mesmo que não tenham nada de relevante para dizer. Por isso é que me parece que só há duas vias para o jornalismo garantir o seu futuro: o jornalismo de investigação e a reportagem. A credibilidade dos órgãos de informação depende da credibilidade dos seus jornalistas.
E em relação aos comentadores?
Não me incomoda, depois, que o jornalista possa comentar ou analisar determinado tipo de realidade se essa for a sua área de trabalho, o problema é que isto parece cada vez mais aquele bolo indiano, de várias camadas, em que os políticos, os jornalistas, tudo se mistura, o que gera essa perplexidade, em que a opinião pública não percebe onde é que acabam uns e começam os outros. Repara que, há uns anos, nessa erupção social em França que foi o movimento dos coletes amarelos, os jornalistas foram apontados pela sua conivência com o poder, denunciados por fazerem parte de um sistema que aquelas pessoas rejeitavam, e isto aponta para a incapacidade do jornalismo de se situar de fora e representar as tensões em conflito. À medida que o jornalismo se compromete com determinados interesses cai nas malhas mais ou menos largas do sistema.
Hoje, é cada vez mais difícil para o jornalista escapar à situação de precariedade que tomou conta do sector, recorrendo-se cada vez mais a estagiários, com os salários não andando longe do salário mínimo, o que nos deixa numa situação de grande fragilidade… Depois há um fosso, e parece que só quando conseguem provar que são de “confiança”, só então passam a beneficiar de condições minimamente dignas…
Pois, eu prefiro nunca ser “confiável” no exercício do jornalismo. Não quero ser esse tipo de jornalista. E gerir uma redacção tem de ser diferente de controlar uma redacção. Tive essa experiência, a de gerir uma e nunca quis controlar a redacção. No limite, se essa for a intenção, acabamos num modelo estilo Coreia do Norte.
Ao mesmo tempo, sobre o jornalismo impende esta elite de comentadores, que estão lá para desenhar uma arena e determinar os assuntos que merecem ser tema da semana, desempenhando estas figuras o papel de provedores, e, emergindo eles da própria classe jornalística, acabam por desfigurar os temas ao embalá-los para consumo emocional nesses espaços de revista da semana.
Mas aí o que está em causa é perceber quem é que vai marcando a agenda e com que propósitos. Isto lembra aqueles versos do Pessoa (Álvaro de Campos), “O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão”.
Um dos momentos críticos da sua carreira prende-se com aquela espécie de campanha que lhe foi movida em Moçambique…
Espécie… espécie!? Não foi espécie, foi mesmo uma campanha de uma brutalidade enorme. Imagina o que é teres notícias nos jornais a mandarem-te embora de um país por estares a fazer o teu trabalho. Foi uma violentíssima campanha de calúnia, intimidação, ameaças com a qual tive de viver, e que me deixou mais fragilizado do que o habitual porque, na altura, estava lá a viver com a minha família. Isso acabou por ser muito duro. Se fosse nos dias de hoje teria sido trucidado nas redes sociais. É que o propósito das narrativas parece ser cada vez mais o de abafar os factos, daí que, hoje, o trabalho dos especialistas em comunicação seja urdir essa realidade alternativa, ou, pelo menos, confundir as pessoas e retirar mérito àquilo que os factos tornam evidente. Ora, o trabalho do jornalista é salvar os factos desse jogo das narrativas concorrentes, apurar os factos, dar-lhes uma evidência que se sobreponha às interpretações que estes podem suscitar. Isto para que cada um possa fazer a sua leitura. E o sinal de que os factos importam é que em muitos países estes nem podem ser transmitidos. Mas a censura está cada vez mais engenhosa, e, por isso, o nosso trabalho continua a ser essencial.
O que aconteceu em Maputo para que o seu trabalho fosse alvo de uma campanha tão forte de intimidação?
Naquela altura, em dezembro de 1999, tinham passado já muitos dias desde as eleições, e não se admitia que o desfecho fosse outro que não o esperado, e à medida que se desenhava um cenário diferente houve uma espécie de toque a rebate, e o partido da oposição resolve dizer que tinha feito as contas e reclamou a vitória. Nessa altura, fiz a reportagem que me trama, e o que eu mostrava é que a vitória não passava de uma versão da história. Fui falar com a Comissão Nacional de Eleições e foi preciso explicar quem a compunha, e depois foi ouvir também o partido no poder. A reportagem terminava comigo a dizer que, quase duas semanas depois, ainda não se sabia ao certo o resultado das eleições. Depois fazia notar que, nas eleições anteriores, com muito menos meios técnicos ao dispor da comissão três dias depois a Frelimo celebrava já a vitória nas ruas. Esta reportagem veio lançar uma suspeição sobre o que poderia estar a passar-se nos bastidores e criou uma grande indisposição. Bastou levantar a dúvida, e muitas vezes, quando as coisas estão mais sensíveis, é isso precisamente o que não é permitido ao jornalismo. Nos dias que se seguiram eu fui transformado numa espécie de bombo da festa. Em vez de se falar do apuramento dos resultados que estava a correr mal, aquilo de que se falava era do correspondente da RTP e das suas más intenções.
E como é que isso se resolveu, uma vez que estava lá com a família?
Na altura, o embaixador António Valente foi extraordinário, e ofereceu-se para nos acolher na residência, mas eu rejeitei. Depois há um episódio que acabou por ser a gota de água e que determinou que eu abandonasse o país. Estava a tomar um café, rodeado de amigos, numa pastelaria. Na altura estava lá também a minha filha mais velha, a Beatriz, e às tantas há um rapaz que entra, dirige-se a mim e pergunta: “Você é o Paulo Dentinho?” Eu digo-lhe que sim, e ele diz que tem um recado. Aponta lá para fora, e diz-me que o senhor no carro vermelho tem uma mensagem para mim. “Qual é a mensagem?”, pergunto-lhe. “É que o senhor vai morrer.” Ao ouvir isto entrei em delírio e saí a correr da pastelaria atrás do carro vermelho, que acelerou e desapareceu. Quando voltei à pastelaria, a minha filha vira-se para a mãe e pergunta: “O pai vai morrer, mãe?” Isto foi, para mim, insuportável. Viemo-nos embora.
A sua saída da direcção de informação da RTP, em 2018, esteve envolvida em polémica depois daquele comentário nas redes sociais sobre a alegada violação de Cristiano Ronaldo…
Mas aquilo não tinha lá o nome de ninguém… Desculpa, mas essa história está muito mal contada. Mas mesmo muito mal contada. Já estive para contar esta anedota e perdi-lhe o fio. Foi assim que a ouvi. Alguém estava na Alameda da Universidade, apontou para um tipo e disse: “Foi ele, foi ele, foi ele!” E ele fica perplexo e tenta perceber: “Mas fui eu o quê?” Nisto juntam-se mais três ou quatro pessoas, e clamam também: “Foi ele, foi ele!” E ele: “Mas eu… eu o quê?” E com isto ia-se juntando cada vez mais pessoas, e ele fica aflito, começa a fugir, e quando chega ao Campo Pequeno já tem 300 pessoas a correr atrás dele e gritarem: “Foi ele, foi ele!” Com isto ele já corre meio alucinado, e quando chega à Avenida da Liberdade já tem 10 mil pessoas atrás dele, a persegui-lo e a acusarem: “Foi ele, foi ele!” Na Praça do Comércio, já tem meia Lisboa atrás dele, aos gritos: “Foi ele, foi ele!” Maluco com isto, o tipo chega ao Cais das Colunas e atira-se ao rio, acaba por morrer afogado. E nisto a multidão lá se dá conta de que não tinha sido ele, tinha sido o irmão. Isto representa um pouco a forma acéfala como as coisas crescem de proporção até já não se conseguir deter as tais narrativas e estas funcionarem como rumores assassinos.
E como é que as clisas se passaram nos bastidores?
Naquele caso o que sinto é que ninguém quis perceber verdadeiramente o que se tinha passado. Posso dizer que fui um director acidental. A certa altura deu-se uma espécie de levantamento popular na RTP e resolveram ir buscar alguém fora do sistema, uma carta fora do baralho… Claro que depois há sempre formas de garantir que as coisas não saem do controlo, que o sistema não é posto em causa. A questão é que só pode haver jornalismo se houver liberdade nas redacções, de outro modo os órgãos de comunicação social são apenas mais um nível das tais cortinas de que falávamos há pouco. Sem essa liberdade, não passam de meios publicitários e de propaganda. Aquilo que se procurou fazer foi um projecto decente, sério, isento, sem agendas. Mas esse episódio a que aludes vem a meio de uma história mais longa.
Pode explicar?
Não quero entrar aqui em detalhes porque isto não faz parte deste livro. Talvez venha a escrever sobre isso usando elementos e provas que permitam expor os factos e entender algo que se desenrolou entre Março de 2018 e Janeiro de 2019. No que toca a esse episódio em si, foi a desculpa usada pelo sujeito que então estava à frente da RTP – presumo que por delito de opinião… Porque eu não me demiti. Foi essa figura que me afastou.
Não me quer dizer o nome? Não, não vale a pena. Hoje, olhando em perspectiva, o que parece é que eu fui demitido porque tinha feito um post em que fazia uma crítica às nossas sociedades na forma como elas se relacionam com as mulheres que se queixam de abusos de qualquer espécie. Não estava lá nome nenhum, nunca esteve. Mas sim, podes pôr os nomes todos que quiseres. Seja o de Harvey Weinstein, podes pôr o Strauss-Kahn, o Brett Kavanaugh… podias pôr quem quisesses. Mas quem for ler o post e perceber o que está em causa, tem depois de se perguntar a quem é que interessava levantar aquela polémica para se servir dela para me afastar. E o mais estúpido nisto tudo é que sempre deixei claro desde o início que tinha recusado durante bastante tempo o convite para ser Director de Informação. Depois lá fui convencido pela Cristina Vaz Tomé e pelo Nuno Artur Silva, mas disse-lhes sempre que sairia no dia em que eles quisessem que eu saísse. Disse-lhes sempre que não precisava daquele cargo para me afirmar na profissão.
Há um momento no livro em que surge um problema quando estão em reportagem em Israel e é necessário usar os estúdios da Eurovisão para editar uma peça, e sendo necessário alugar o estúdio, precisam de contactar com urgência alguém da direcção da RTP e às tantas, quando o único director que apanham a trabalhar diz que só trata de assuntos ligados ao desporto, o Paulo aproveita para malhar nestas figuras cujo “único risco é gerir favores, fazer salamaleques aos poderes para se irem mantendo de direcção em direcção”. Ao longo destes anos, como tem visto estas figuras que pairam sobre o jornalismo mas que nunca estiveram no terreno e que funcionam muitas vezes como capatazes do poder para assegurarem que os jornalistas não apanham e seguem o cheiro para lá daquilo que interessa expor?
O Eça de Queirós já tirou a pinta à sociedade portuguesa há muitos anos. De lá para cá não há novidade nenhuma. Vale a pena reler o Eça. Continuamos a dar com aqueles personagens no nosso quotidiano. O Alencar, o João da Ega, o Dâmaso Salcede… Eles estão aí, noutras posições, com outros nomes… Quando passei por esse cargo apercebi-me melhor de algumas coisas, no que toca ao funcionamento do nosso país. Aquilo que ficou claro para mim é que neste país tudo decorre em função de teias ou redes de conhecimentos. São essas pessoas a quem tu recorres e que recorrem a ti numa permanente troca de favores. Isto tomou conta de todas as estruturas da nossa sociedade, não só do jornalismo. Seja no Estado, nas empresas privadas, neste país tudo se organiza em função de conhecimentos e trocas de favores. E coitados daqueles que se apanhem no meio deste jogo sem terem redes destas. Por isso é que o país é injusto e desigual. Nesse sentido, são admiráveis muitos portugueses da diáspora por terem provado noutras sociedades o que não lhes foi permitido nesta por não terem cá os “amigos” certos nos lugares certos. Quem tem um problema a primeira coisa que faz é pegar no telefone e ligar a alguém que possa mexer os cordelinhos: “Olha, tenho aqui um problema e vou precisar que me safes…” Quem não tem a quem ligar, enfrenta o cabo dos trabalhos muitas vezes para se livrar de uma pequena confusão burocrática. Por isso o país derrota ou expulsa todos aqueles que, embora tendo talento, não estão salvaguardados por essas redes. Por outro lado, como é bem patente, até podes fazer uma burrada descomunal atrás de outra… Desde que tenhas essas redes, estás sempre amparado e és virtualmente intocável. Mesmo quem é apanhado em flagrante delito, consegue sempre que lhe façam um abaixo-assinado a dizer maravilhas do seu carácter e a garantir que tudo não passa de uma cabala. Sem essas redes, deixam-te cair e ninguém dorme pior por isso. Se não fazes parte desses grupos só entras em jogo se ninguém quiser o teu lugar. No fundo, isto é um regime subjugado a dependências de todo o tipo. E para ires a jogo tens de fazer parte dessa relação de dependências, e, portanto, a tua independência perde-se.
Hoje, parece ser o próprio Presidente da República quem se dá conta de que a crise do jornalismo é uma crise de realidade, pois se não se pode representar uma realidade que seja aceite por todos as pessoas até podem ter uma opinião muito negativa da forma como o país está a ser conduzido, mas acabam por ser fáceis de manipular por campanhas de contrainformação precisamente porque surgem estas tempestades de factos alternativos que minam a discussão pública. Mas o que se pode exigir hoje ao próprio jornalismo no sentido de fazer sentir ao público que sem órgãos de imprensa livres estamos condenados a um ruído em que ninguém nos ouve mas também não se ouve ninguém.
Continuo a acreditar que o jornalismo é absolutamente essencial numa sociedade democrática. Sem jornalismo a sociedade não sabe de si o suficiente para se governar. É como sair para o mar sem instrumentos de navegação. Mas sem liberdades esses instrumentos apenas garantem que, seja dando uma volta mais larga ou mais apertada, vamos andar em círculos. E o jornalismo enfrentou sempre estas tentativas por parte de vários interesses de o tentarem domar ou controlar, fazendo do jornalista essa figura amestrada, que está ali no gabinete, com o telefone ao lado e que faz aquilo que se quer que faça. Este jornalista se resolve criar ondas torna-se de imediato a notícia, e fazem com ele o que fizeram comigo em Moçambique.
Que é o quê?
Às tantas a dúvida que ele levantou já não importa, o que importa é pôr em causa o seu carácter. Mas nos nossos dias o jornalismo enfrenta este desafio adicional de ter de lidar com um público que está ser diariamente condicionado, sendo segmentado pelas redes sociais, que definem um espartilho em que cada um se deixa encerrar segundo convicções que se tornam inquestionáveis. As redes sociais nunca te confrontam com a visão que põe em causa a tua, que a atinge e lhe faz a crítica. É o outro ponto de vista o que vai sendo empurrado para a margem, e são-te fornecidos esses pontos de vista que ajudam a cimentar essas noções ou preconceitos que tu já trazes. Isto, a longo prazo, é um plano infalível para pôr fim a uma democracia. Aqui há dias, penso que foi o La Republique En Marche! [partido social-liberal fundado pelo actual presidente da França, Emmanuel Macron] que revelou uma sondagem em que uma percentagem muito significativa dos inquiridos afirmavam que as redes sociais propagam falsas notícias, mas também admitiam pelo menos metade dos inquiridos que era através das redes sociais que chegavam à informação que orientava na altura de decidirem em quem votar. Aqui aflora este paradoxo em que vivemos. O perigo está identificado, mas parece haver uma inércia que nos torna cada vez mais reféns deste ciclo vicioso.
E como se sai disto?
Não sei. Sei que para haver bom jornalismo o jornalista tem que ter condições para ser defendido quando vai em busca desses factos que põem em causa certos interesses que vão certamente usar de todos os meios ao seu dispor para virarem o bico ao prego. Para se defender o jornalismo é o jornalista que tem de ser credibilizado, e o órgão de comunicação é credível quando defende aqueles jornalistas que tem na sua redacção. Estou convencido de que o jornalismo tem hoje um papel crucial como sempre teve nas nossas sociedades. Mas é imperativo que se aposte mais do que nunca no jornalismo de investigação, e nesse a que se chama slow journalism, que é não aquele que pretende chegar primeiro, dar a notícia em primeira mão, mas é aquele que, depois da grande erupção, quando os outros já passaram a outra coisa, este persiste na investigação dos factos, em aclarar a história, chegar a uma versão mais sedimentada… O jornalismo que é credível não é aquele que consegue necessariamente um furo, mas sim aquele que nos dá a notícia certa, que toma as precauções necessárias para nos deixar seguros de que não está a tentar apenas dirigir a nossa atenção mas que estabelece um pacto de confiança, e, escapa a este frenesim de dar a história em primeira mão, torcer a faca para fazer os factos guincharem, ou captar a atenção com recurso a aspectos laterais que espicaçam esses instintos menos nobres que há em nós.
Como encara o jornalismo que hoje se faz por cá?
Hoje, a própria aceleração determina que as coisas se esquecem muito mais depressa no turbilhão dos ciclos de informação, e isto leva a que alguns órgãos de comunicação facilitem e se exponham nesta estratégia para cativar audiências, leitores, etc. Se o jornalismo é uma actividade essencial e uma garantia da própria democracia, o certo é que tem de haver condições para que os jornalistas façam o seu trabalho, e que o façam com dignidade, para sentirem que estão a dar um contributo importante e dar instrumentos às pessoas para realmente pensarem o seu país, o seu tempo, as alterações sociais, os dramas das minorias, as incertezas das maiorias… espelhar o que são as angústias das sociedades sem entrar nas narrativas daqueles que querem precisamente instrumentalizar a opinião pública.
Tiveste dois furos mundiais, duas entrevistas que tiveram repercussão em todo o mundo e das quais dás conta neste livro. Que balanço fazes hoje do teu trabalho como repórter?
Quando estás no terreno, em reportagem, e especificamente nesses momentos, sentes uma injecção de adrenalina monumental. Não há nada que se assemelhe a essa dose de saudável loucura que sente no trajecto entre Damasco e Alepo, por exemplo. Mas quanto ao reconhecimento do meu trabalho, devo-te confessar que, em Portugal, não tive eco nenhum desses trabalhos. Sei apenas que, enquanto lá estava, esses ecos tive-os do The Guardian ao Le Figaro, do La Times, El Pais, a RAI, a Reuters… Toda a gente veio dizer: “Epá que grande furo que conseguiste…” Isto especialmente no caso da entrevista ao Muammar Khadhafi. E isto porque fiz uma entrevista não a pensar no passado mas no futuro. Ia haver uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, e era provável que houvesse uma decisão no sentido de intervir militarmente na Líbia, e pensei que seria mais importante perguntar o que aconteceria se fosse tomada essa decisão. E recebo então a resposta que ganha eco à escala planetária.
E que resposta foi essa?
Disse-me qualquer coisa como: “Se o mundo escolher a loucura, nós seremos ainda mais loucos, e faremos descender a Líbia ao caos”.
E no caso do Bashar al-Assad?
Foi a segunda entrevista que lhe fiz, e tinha então a perfeita noção de que era feita num momento importante e que podia ter algum impacto. Era a primeira entrevista que ele dava depois da eleição de Donald Trump. A entrevista acabou também por ecoar em todo o mundo, desde a televisão chinesa, o Russia Today, o canal australiano, o New York Times, o Guardian… chegou a todo o lado.
Neste tipo de entrevistas, conseguia retirar-se da situação e ler aquelas figuras, retirar delas uma impressão do homem que está ali a falar contigo?
Na verdade, as pessoas que mais me impressionaram no contacto que tive com elas foram outras que não estas. Houve duas que me deixaram uma impressão indelével. Uma com quem tive uma pequena conversa há muitos anos, estava então ainda em Moçambique, e tive uma pequena conversa com um homem que tinha uma bonomia extraordinária. Estávamos numa homenagem a Samora Machel na fronteira com a África do Sul, e embora nem estivesse no protocolo, o Nelson Mandela quis dar-nos o seu tempo, e mostrou-se tão afectuoso que a sua boa disposição irradiava, era contagiante. A outra figura que me impressionou também foi o Ytzhak Rabin. Tinha uns olhos azuis profundíssimos. Falava contigo e aqueles olhos fixavam-se em ti, parecia que te furavam. Era até difícil colocar-lhe as questões. Era também um homem muito impressionante. Uma outra pessoa com quem também gostei muito de me encontrar e que tinha também uma enormíssima boa onda é o Lula da Silva. É um comunicador maravilhoso.
Neste momento de balanço na sua vida profissional, quais são hoje os temas e as questões que mais o inquietam?
Como tenho filhos (tenho quatro: três filhas e um rapaz), a mim preocupa-me muito o mundo deles. Com as alterações climáticas que é de facto o tema que definirá o futuro, percebemos que cai por terra esta ilusão de que podemos continuar a explorar a natureza como um poço sem fundo. A poluição, a destruição dos ecossistemas, a utilização do plástico, a distribuição desigual da riqueza, este mundo capitalista e a corrupção que gera, a intolerância… Tudo isto são questões que me preocupam diariamente.
O que terias a dizer a alguém que entrasse agora na profissão do jornalismo?
Não sei o que é que posso dizer aos outros. Essa ideia de que temos de passar algum tipo de testemunho ou ensinamento, não é coisa que eu sinta. Proselitismo da profissão isso é coisa que não faço. Nem da profissão nem de nada. Eu gostei muito de ser jornalista. Acho que é uma profissão que exige de nós que mantenhamos um certo espírito romântico… Tem de haver uma ponta de loucura, e não nos podemos levar demasiado a sério. Temos de nos pôr a nós próprios primeiro em causa. E temos de ter muito cuidado quando nos passam a mão pelo pêlo. Temos de ser sempre curiosos, ter o fascínio da descoberta, ir à procura de uma história e ter coragem de a seguir aonde esta nos leva. Mas isto respeitando as nossas regras, como é evidente. Acho que se fizermos assim o nosso trabalho este se revela muito gratificante. E se sentimos que estamos a contribuir para uma sociedade mais esclarecida, com mais instrumentos para reflectir o seu tempo, e uma sociedade mais exigente, com tudo, até com o jornalismo, então parece-me que fizemos um bom trabalho.