O relatório final da comissão de inquérito ao Novo Banco foi aprovado com votos contra do PS e a abstenção do CDS. O que se passou?
O problema do relatório foi ter nascido de uma maneira enviesada logo no princípio. O relatório inicial parecia mais uma narrativa do Governo ou um ajuste de contas entre governadores e Governos do que propriamente um documento de uma comissão de inquérito. Isso condicionou toda a discussão que se fez a seguir. Deixei claro que, em outras circunstâncias, o que teria feito sentido era que fosse construído um novo relatório com uma comissão interpartidária. Na situação em que estávamos ou assumíamos que não tínhamos relatório ou íamos tentar pegar naquela base, em relação ao qual tinha uma discordância profunda, e tentarmos incorporar algumas coisas. Apresentei várias propostas, todas elas estritamente factuais, mas quando se descreve uns factos e se omite outros, naturalmente está-se a fazer um relatório enviesado. Por exemplo, quando na venda do banco sistematicamente se relatam factos relacionados com o Governo e se omite outros como o facto de o Executivo se ter retirado das negociações a determinada altura e de haver cartas do Banco de Portugal a protestar essa decisão, tudo isso estava omisso. E não pode ser porque ajuda a construir uma história. Não quer dizer que a comissão deva assumir para si a versão do Governo ou a versão do Banco de Portugal, mas tem que se perceber que houve tensão entre estas duas entidades, em que o Governo teve uma participação muitíssimo ativa e orientadora, pois deu instruções. O Banco de Portugal solicitou instruções e solicitou esse acompanhamento. Da mesma forma quando se fala, por exemplo, do Tribunal de Contas, em que o relatório inicial diz que a venda salvaguardou a estabilidade financeira. Mas não salvaguardou o erário público, nem a sustentabilidade das finanças públicas. Isto é uma maneira enviesada e truncada de descrever a realidade.
Falou em narrativa parcial e num ajuste de contas entre o Governo PSD e PS …
É uma narrativa e aquela é a versão do Governo. O que aconteceu? Criou-se uma série de maiorias pontuais e no final o relatório apresenta várias conclusões, não sei se alguém se revê em todas elas. Deixei claro que percebo a vontade de viabilizar o relatório e isso era importante, mas não consigo votar favoravelmente um documento que tem uma conclusão que é pura e simplesmente mentirosa.
Disse que concluiu muito mas não tudo…
Falta muita coisa por apurar e é importante que os relatórios não queiram reescrever a história, porque não há processos perfeitos, nem sem falhas. Agora o que se passou com o BES é uma história que não começou com a data da resolução. É uma história que começou, pelo menos, em 2000. E se há coisa que se percebe das duas comissões, uma relacionada com o BES, outra relacionada com a Caixa é que havia em Portugal um certo capitalismo de favor que implicava vários bancos e alguns agentes políticos. Vivemos num país, em que há um ex-primeiro-ministro que está a ser julgado por factos que não sendo estes tem uma conexão com estes. E isso deixa cicatrizes. É sinal de um determinado modo de fazer as coisas e que teve uma rutura em 2014. A resolução do BES representa uma rutura em relação a um sistema em que os Governos quase nunca diziam que não a certos bancos e há um Governo que diz que não. Isso é claríssimo e está nas conclusões. Há um Governo que diz ‘não vamos pôr dinheiro público no grupo Espírito Santo’. Acho que querer transformar isso numa coisa censurável parece-me completamente errado, até porque não divide direita e esquerda, nem divide partidos. Acho que é uma coisa que todos os partidos devem desejar, o que é suposto é que os Governos não apresentem esse tipo de promiscuidade ou esse tipo de dependência.
Independentemente da cor política?
Independentemente da cor política. Para mim foi muito chocante que à boleia das nossas discussões pequeninas no Parlamento não se perceba que há um pano de fundo maior que este.
Mas foram feitos vários alertas antes da resolução do banco….
Até vai mais atrás e isso foi visível através do relatório do Banco de Portugal que devia ser público. Pelo menos, desde 2000, percebia-se que havia alguns aspetos problemáticos no BES, designadamente a exposição às partes relacionadas. Aparentemente o Banco de Portugal fez muito pouco, no consulado Vítor Constâncio acho que é visível que não fez praticamente nada, depois com Carlos Costa começa a existir alguma atividade só que não foi suficiente. Demora tanto tempo, é tudo tão burocrático, tão tímido e inativo que quando finalmente se faz alguma coisa, a situação já se tinha agravado muito. E o último ano antes da resolução, quando o Banco de Portugal tenta criar uma estratégia de salvaguardar o banco face ao grupo começa-se a perceber que os responsáveis do banco, sobretudo Ricardo Salgado, começam a conceber várias tentativas de defraudar as intenções do Banco de Portugal e que, até certo ponto, até foram bem sucedidas e foi isso que gerou os lesados do BES e uma série de problemas.
E os problemas continuam…
Continuam, exatamente por isso que estava a dizer. Nota-se que à medida que os problemas vão sendo identificados e que o Banco de Portugal ou, em algum casos, a CMVM vem dizer ‘isto não pode ser, tem de ser corrigido’, o que GES fez foi pegar na dívida, tira-a dali e vai partilhá-la em outros sítios. Isso aparece nesta comissão, aliás há um momento que me pareceu muito impressionante foi quando Luís Filipe Vieira diz ‘não, isso estava em meu nome, mas foi Ricardo Salgado que pediu porque não era meu’. A naturalidade com que se encara passar negócios e grandes negócios, estamos a falar de negócios de milhões, de uns nomes para outros para enganar entidades supervisoras não pode acontecer. Não se pode dizer ‘essa dívida não é minha, só estava em meu nome’. As coisas que estão em nosso nome são nossas.
Concorda que a responsabilidade seja dividida entre dois Governos?
Acho que a avaliação não é justa. Primeiro, porque há um espaço para a opinião e há um espaço para a responsabilidade e há um outro espaço muito diferente para juízos. Gostava de lembrar que o Parlamento também tem as suas responsabilidades porque aprova Orçamentos, sem os quais nada disto seria possível. Creio que todos os partidos num momento ou em outro colaboraram nessa aprovação. Relembro, às vezes, alguns partidos mais radicais da esquerda que se acham como uma espécie de juízes do regime que, a partir do momento em que viabilizaram o Governo e viabilizaram Orçamentos, permitiram a entrada de dinheiro público sob a forma de empréstimo no Novo Banco, como tal são corresponsáveis. Noto muito a vontade de responsabilizar os outros e muita vontade de se desculparem a si próprios. Não tenho a visão de esperar que estes processos muito difíceis sejam perfeitos, sei que durante o Governo CDS/PSD houve esta diferença muito grande em relação ao passado e que merece elogios porque não foi fácil e foi uma maneira diferente de fazer política. Espero que passe a ser a maneira de fazer política em Portugal porque é uma maneira independente e salvaguarda, em primeiro lugar, o interesse público e, no que a mim me toca, jamais esquecerei essa diferença. Depois, em relação ao Governo atual e em relação à venda, o que noto é que, na altura da venda, houve uma grande vontade de dizer ‘nós responsabilizamo-nos, esta decisão é nossa’, aliás lembro-me do anúncio da venda, em que estava o ministro das Finanças e o primeiro-ministro e agora passa-se uma borracha sobre isso tudo e a responsabilidade é toda do Banco de Portugal? Não pode ser. Sendo que a tese deste Governo é completamente incoerente porque diz que não sabia que ia gastar aquele dinheiro, mas o que está a acontecer é uma execução que está relacionada com a perda de ativos que já lá estavam. Então se já lá estavam como é que não sabia que este dinheiro ia ser gasto? É evidente que iria custar dinheiro e disse isso no momento da venda porque o banco continuava a ter um conjunto de ativos que iriam custar dinheiro.
A venda foi muito criticada. Poderia ter sido encontrada outra solução?
O Governo foi muito pouco transparente. Primeiro não foi propriamente uma venda já que ficou com uma parte do banco e segundo não foi capaz de dizer a verdade com transparência: aquele dinheiro que ali estava – provavelmente na sua esmagadora maioria – iria ser gasto. O Governo resolveu que não estava disponível para dar uma garantia pública, quando na realidade deu essa garantia e sabia que a ia utilizar. Isto foi tudo um jogo de espelhos que contribuiu muito para minar, quer a credibilidade dos Governos, quer a credibilidade da banca. Não faço de maneira nenhuma a mesma avaliação em relação aos dois Governos, acho que há uma diferença muito substancial entre ambos e, desse ponto de vista, percebo a pressão muito grande do PS para criar uma narrativa que é muito desculpabilizadora, mas convém ter alguma memória.
O contrato de venda nunca foi público…
Sabemos o que foi anunciado, mas há aqui algumas coisas que merecem nota. Lidámos com essa correspondência e percebe-se que houve um acompanhamento muito grande do Governo junto do Banco de Portugal. Houve uma equipa do Governo que esteve permanentemente nas negociações e, a partir de um momento, saiu das negociações. Há uma carta com essas informações e essa foi uma das conclusões proposta pelo CDS e que foi introduzida. A carta diz ‘os senhores estão-se a retirar num momento crucial, não se podem retirar agora’. Percebe-se que houve uma tensão grande entre o Governo e o Banco de Portugal, percebe-se através da troca de correspondência que há uma espécie de declarações para o futuro para todos se poderem desresponsabilizar. E isso também é importante que se perceba, ninguém queria ficar com a responsabilidade do processo. Acho que há um lado que diria que é um tanto hipócrita no meio disto tudo: não me parece que faça sentido ver o PS protestar por causa dos prémios, mas depois achar perfeitamente normal que essa questão não estivesse completamente blindada no contrato. Das duas uma: ou estava completamente blindada ou então é uma questão que não nos diz respeito. Como também me parece um tanto hipócrita estar a criar um cavalo de batalha por causa de algumas questões de gestão e não ser capaz de dizer que quando se estabelece num contrato que um banco tem um determinado tempo para se ver livre de alguns ativos – vamos chamar tóxicos para simplificar – é evidente que não vão ser vendidos ao longo de 10 ou 20 anos ao melhor preço possível. É evidente que vão ser vendidos o mais depressa possível e isso tem um impacto no valor, sobretudo quando se diz a essa mesma gestão ‘se os senhores venderem agora e tiverem prejuízos respondemos por isso, se esperarem para ver daqui a 10 anos quanto vão ganhar ou perder já ninguém se vai responsabilizar’. O que faz qualquer gestor? Qual é o incentivo que é dado? O incentivo que é dado ao Novo Banco é para limpar o balanço, mesmo que isso implique registos de graves prejuízos e é o que está a acontecer. O incentivo que foi dado era para que isso acontecesse rapidamente. Também é preciso percebermos porque foi dado esse incentivo: estas carteiras estão estacionadas naquele balanço, a maior parte, desde 2008, sem que nada tivesse acontecido. Agora está a ser vendido depressa e nem sequer nas melhores condições, mas no passado e durante muito tempo esteve estacionado. Quando o banco foi resolvido em 2014, muitos destes créditos estavam em incumprimento há anos e eram alvo de reestruturação em cima de reestruturação, em que as pessoas não pagavam praticamente nada ou só pagavam juros e nada acontecia. Aquilo ficava cristalizado no balanço para não se registar perdas, mas na realidade aqueles créditos já não valiam. A partir do momento em que o banco é resolvido, muitos destes ativos tóxicos começam a aparecer, ou seja, estes créditos não estavam na sua maioria registados como crédito malparado, mas estavam disfarçados, escondidos. Só começam a aparecer como tal quando o Fundo de Resolução e o Banco de Portugal entram no banco e quando começam a aparecer os compradores a dizer ‘queremos ver o que está ali’. É aí que se percebe que o banco tem um legado de créditos que não valem o valor pelo qual estavam registados e gerou depois todo este problema. Nada disto foi assumido na venda, a ideia que foi passada é que não se ia gastar dinheiro, quando era evidente para todos que aquela garantia que se chama Mecanismo de Capital Contingente de 3.890 milhões de euros provavelmente iria ser gasta quase na sua totalidade.
E os próprios bancos foram chamados a injetar…
Isto introduz uma série de distorções porque há bancos que tiveram de fazer o mesmo movimento, sem este tipo de garantia. Mas não há soluções ótimas. Qual era a alternativa? Era ser dinheiro do Estado e que os bancos não tivessem de devolver. As questões não são muitas vezes tão simples como se querem fazer.
Teve acesso a milhares de documentos. Ficou surpreendida?
Já fiz as comissões de inquérito sobre banca necessárias para deixar de me surpreender seja com o que for, até porque já na comissão de inquérito sobre o BES se tinha percebido muito daquilo que funcionava mal. Apesar de tudo há uma magnitude das coisas do BES e uma sensação de impunidade em relação aos vários dos protagonistas dessa altura que me impressionou.
Sente que o trabalho que foi feito pela comissão de inquérito levou às detenções de Luís Filipe Vieira e de Joe Berardo?
Espero que a investigação criminal aproveite o trabalho que foi feito na comissão de inquérito, mas separo muito bem as duas coisas: as comissões de inquérito não conduzem a investigações criminais, nem têm essa função. Espero que as duas coisas sejam separáveis e espero também que, quer em relação à Caixa, quer em relação ao Novo Banco, quer em relação aos protagonistas que há em comum nestes dois bancos, haja um grande trabalho da Justiça para que não seja penalizado apenas aquilo que aparece como mais mediático nas comissões de inquérito. Não é por as pessoas terem mais desfaçatez a darem respostas que isso configure mais ou menos crime. Isto tem a ver com os factos, da mesma maneira que ter dívidas não é crime. Há muita gente que tem dívidas e não pode pagar, o que é crime é a forma como, por vezes, se encontra para contrair dívidas ou para evitar pagá-las. Em relação a Luís Filipe Vieira fiz perguntas ao empresário, que por acaso era presidente de um clube, mas podia ser presidente de outro clube qualquer como podia não ser presidente de clube nenhum.
Mas disse aos deputados que estava ali por ser presidente do Benfica…
Tentei-lhe explicar isso. Para mim tanto me faz que ele seja presidente como não seja, daquele clube ou de outro qualquer. Isto não tem nada a ver com clubes. Percebo que possa ser confortável usar esse argumento para alguém que não queira estar ali. Era objetivo. Tínhamos uma auditoria, tínhamos uma lista de quem provocou mais perdas e foram esses que foram chamados. Tanto assim que houve outros nomes conhecidos, mas tudo tinha a ver com o nível das perdas que foram imputadas ao mecanismo de capital contingente. Por acaso, alguns eram figuras mediáticas, por acaso alguns eram presidente de clube, outros foram presidentes de fundações e até têm o nome em grandes museus em Portugal, mas isso não é fator. O que é fator é o montante da dívida e o montante das perdas pelas quais responderam.
E em relação à audição de Nuno Vasconcellos?
Foi a audição mais curta porque só estava a ser um momento degradante. Não estava a ter nenhuma utilidade. Não estamos ali para fazer propriamente debates, não é esse o objetivo das comissões de inquérito. Mas não me surpreendeu porque o facto de não ser presencial percebi que facilitaria aquilo. Não é um depoimento, não é uma inquirição, nem sequer uma audiência. É uma desconversa e também é preciso que a Assembleia da República se dê ao respeito. Tenho sempre muito cuidado com a fronteira, tenho sempre muito cuidado em guardar as indignações e perceber que as pessoas estão ali porque são obrigadas. Não é como as outras comissões, em que são convidadas. Não vão para ali para darmos raspanetes, vão para responder a perguntas, mas também não vão para as deixarmos fugir às perguntas. Esse equilíbrio entre exigir as perguntas que é um direito nosso, enquanto representantes do povo, e não transformar as comissões de inquérito em julgamentos públicos. porque não é esse o objetivo, é um equilíbrio que é difícil porque também somos humanos, também nos irritamos.
Esse é o grande desafio?
As comissões de inquérito do meu ponto de vista enquanto deputada tem um desafio que é o da preparação. É preciso estudar muito para se estar muito à vontade. Estamos a fazer perguntas a pessoas sobre factos da vida delas que conhecem muito bem, são os negócios delas. E nós só temos esse contacto através de documentação, o que implica estudo. E se por outro lado, implica este exercício de autocontenção, por outro lado lado, exige rigor.
Quanto tempo exigiu em termos de preparação?
Não tenho ideia, mas a partir do momento em que chegam os documentos deixa de haver fins de semana e, em muitos casos, prejudicou o meu trabalho em outras comissões, mas é preciso fazer escolhas.
Acha que a partir de agora o papel da supervisão vai melhorar?
Acho que a supervisão tem melhorado, mas ainda está muito longe de ser boa. Noto uma melhoria de Vítor Constâncio para Carlos Costa e percebe-se que depois destes processos todos, as coisas também melhoraram no Banco de Portugal porque se aprendeu. Acho que a ida de Mário Centeno para o Banco de Portugal introduz uma politização do regulador que era perfeitamente desnecessária porque é um fator perturbador e de retrocesso. É um erro voltarmos ao tempo dos governadores políticos e tenho pena que esse erro não tenha sido travado no Parlamento. A ideia de que o supervisor deve ser um político, sobretudo completamente comprometido com uma determinada política, é um erro e é evidente que o governador Mário Centeno vai ser muito condicionado pelas escolhas que o ministro Mário Centeno fez e isso, quer se queira, quer não, prejudica a independência dele. Isto não é uma apreciação pessoal é uma apreciação objetiva do que vai ser o limite do seu trabalho enquanto governador. Além disso, o Banco de Portugal tem uma cultura de secretismo, uma cultura de fecho em si mesmo e que devia ser alterada, mas para isso é preciso ir mais longe em algumas coisas. Primeiro é preciso fazer uma discussão séria se a supervisão deve continuar a ser feita através destes supervisores, mantendo no Banco de Portugal a supervisão prudencial e comportamental ou se deve haver uma separação diferente. Tenho uma posição muito aberta nisso, acho que vale a pena avaliar bem e depois há coisas muito simples. Por exemplo, os cargos dentro do Banco de Portugal deviam ser preenchidos por concurso, de forma absolutamente transparente. Acho que isso ajudava bastante a abrir as instituições a profissionais de fora, como acontece na generalidade das organizações.
Notou diferenças entre esta comissão de inquérito em relação à da CGD?
Acho mais chocante que gestores públicos que são nomeados por quem representa o povo tenham determinadas atuações do que quando são os privados a terem. Mas há um certo preconceito na sociedade portuguesa ou em alguns quadrantes da sociedade portuguesa que olham para as coisas em sentido inverso.
O seu trabalho nesta comissão deu-lhe um papel de maio relevo. Como vê isso?
Não penso muito nisso para dizer a verdade. Gosto muito daquilo que faço, estou muito ciente da responsabilidade naquilo que faço porque não ajo por conta própria, ajo em representação e esforço-me para fazer o meu melhor.
Mas sente que a deputada Mariana Mortágua ficou em segundo plano?
Não sei, não consigo fazer essa análise. Ninguém é bom juiz em causa própria, acho que não devemos nunca na vida perder o foco do essencial. E o essencial aqui, nesta comissão de inquérito, é sobretudo apurar factos. E factos que expliquem e que mostrem às pessoas para que seja percetível onde está a origem dos problemas e o que correu mal. E foi esse esforço que fiz.
Como é a relação entre as duas?
Tenho uma relação muito saudável com a divergência política e com a divergência de opiniões. A única coisa com que não lido bem é com o sectarismo. Como tal, encaro com absoluta naturalidade de pensar o contrário e acho que estas comissões também têm demonstrado que é possível as pessoas terem visões completamente antagónicas, defenderem coisas absolutamente opostas e fazerem isso sem se ofenderem. Sem isso ser uma guerra pessoal.
O CDS conseguiu ver aprovado o requerimento para ouvir a Inspetora-Geral do Administração Interna por causa dos festejos do Sporting…
É fundamental saber, nem que seja para apurar responsabilidades políticas porque à partida há um ministro que disse que a decisão não foi sua, quando na realidade foi. Se queremos viver num país em que há responsabilidade então os governantes também têm que assumir as suas.
E é um ministro que anda na ribalta…
Tem estado na ribalta precisamente porque aqueles festejos tiveram consequências, aconteceram numa altura muito crucial da pandemia e acho que era possível ter havido festejos, era possível ter comemorado sem a gravidade das consequências que depois se seguiram. Não quero entrar na discussão se há uma correlação direta ou não, mas acho que todos percebemos que aquilo não devia ter acontecido assim. E se queremos viver num país em que se exige responsabilidades tem de se aplicar essa lógica a todos: cidadãos, governantes. Se os governantes recusam as suas responsabilidades depois é difícil esperar que na sociedade cada um assuma as suas.
E aí está o Parlamento para puxar as orelhas?
Os governantes não podem mentir, não é mais complicado do que isto. Isso é um princípio básico.
E como vê o facto de o Tribunal Constitucional ter chumbado os apoios sociais?
Esses apoios e essas ajudas eram necessários, não vejo ninguém dizer que não eram.
Mas insuficiente para o TC deixar passar…
O Tribunal Constitucional tem o seu papel. Percebo a questão e sou rigorosa em questões orçamentais. Agora não podemos é viver num sistema em que o Governo faz todo o tipo de discricionariedade na gestão orçamental, mesmo em relação a compromissos que assume no Parlamento e faz todo o topo de tropelias, incluindo despesas que não estavam previstas, cativando despesas de uma maneira muito anómala e com um nível de execução bastante inferior ao habitual. E depois o Parlamento, numa altura de pandemia, não ter nenhum instrumento para responder. É evidente que numa situação destas que é uma questão completamente anómala, aquilo que teria feito sentido era que o Governo tivesse submetido um Orçamento retificativo e que pudesse ter sido negociado. Se isso tivesse acontecido, este tipo de questões não se colocaria. Como o Governo não faz isso e prefere fazer uma gestão orçamental completamente opaca gera depois este tipo de problemas. Mas creio que o próprio Governo admite que estes apoios eram necessários.
A DGO mostra que há margem para gastar mais…
Com certeza que há. E esta despesa estava completamente dentro da gestão orçamental e é isso que também é preciso que se perceba. Não se pode dizer que o Governo tem todo o tipo de discricionariedade e depois o Parlamento não ter nenhuma. Estas regras foram feitas, numa altura, em que a gestão orçamental era feita de uma maneira muito mais transparente e mais rigorosa. Esta inauguração de uma gestão orçamental completamente opaca inicia-se com a gerigonça, em que o Governo diz ‘temos que negociar o apoio com o PCP, com o Bloco e agora até com o PAN, vamos pôr aqui uma série de coisas, porque eles só votam se houver esta despesa, vamos pôr aqui isto e depois pura e simplesmente não fazemos’. Isto gera uma maneira de fazer política que até pode parecer uma vitória para o Governo em determinada altura, mas não é porque gera um apodrecimento da maneira de fazer política, em que depois nada quer dizer nada. Os partidos conseguem inserir uma coisa no Orçamento, mas isso não quer dizer nada porque depois não acontece. Quando se desvaloriza o apoio e os votos que se consegue no Parlamento e os compromissos que se consegue no Parlamento e se banaliza os incumprimentos, acho que o Governo pode achar que são grandes vitórias porque consegue continuar a ser Governo, mas o descrédito que isto está a provocar nos cidadãos em relação à classe política tem consequências e tem consequências para todos.
A fatura vai ser paga mais tarde?
Essa fatura é muito mais cara do que assumir divergências e vejo isso com muita preocupação porque há uma degradação da nossa vida política nos últimos anos e aquilo que se diz passou a ter muito menos significado e isso é mau.
E começou com a ‘gerigonça’?
Esta que estou a falar acho que começou com a ‘gerigonça’. É um jogo de espelhos para se conseguir aprovações. A maneira de fazer política da ‘gerigonça’ caracteriza-se por uma coisa: todos querem uma coisa simpática para pôr no outdoor. E parte de um pressuposto, em que ninguém tem a coragem para dizer às pessoas que os recursos que o Estado tem são os recursos que veem dos bolsos de cada cidadão porque o Estado não tem outra maneira de se financiar. E esconder esta verdade essencial e óbvia e, ao mesmo tempo, fazer na política um leilão, em que cada um só quer a parte simpática para pôr num outdoor pode conduzir até a vitórias pontuais, sem dúvida que conduziu o PS a ter um longo tempo no poder em Portugal, mas conduz a um descrédito das instituições. A maneira como os Orçamentos têm sido feitos, a quantidade de propostas de alterações – em que os partidos propõem tudo o que está nos seus programas e mais alguma coisa – quando já se sabe que grande parte não vai ser feito. Os partidos já discutem taxas de execução daquilo que eles próprios acordaram, ou seja, já acham normal acordar uma coisa com o Governo e depois que ele não cumpra. Mas estamos a fazer acordos e achamos normal que a outra parte não cumpra? É a normalização do engano como prática política. Não acho normal e o PS até pode achar ‘aprovei mais um Orçamento’, mas essa fatura está a ser paga em descredibilização. E isso tem consequências.
Em menos votos?
Como se pode acreditar quando sistematicamente os Orçamentos são aprovados pelos partidos e nem eles próprios acreditam uns nos outros. Como é que se pode esperar que os cidadãos acreditem?
As negociações para o próximo Orçamento já começaram…
Tenho uma divergência profunda em relação às políticas seguidas que são completamente baseadas no papel do Estado, mas acho normais as negociações, não acho é normal que nas negociações se procurem bandeiras e não o resultado das bandeiras.
O que espera do próximo OE?
Quando olho para o PRR assusto-me muito porque estamos a entrar novamente numa fase que Portugal já viu que é o primeiro-ministro com livros de cheques a passar cheques a todo o lado e a dizer que isso é fazer política. Acho que o PRR é uma enorme oportunidade perdida porque estamos a falar de um dinheiro que não é dado, que vai ter de ser pago através de recursos próprios, mas não sabemos de onde virão e podem vir perfeitamente de impostos a serem pagos pelos portugueses ou pelas empresas portuguesas. E é uma verba que vai ser sobretudo gasta na máquina do Estado e em obras públicas. Esse é um erro que Portugal já cometeu várias vezes com os fundos europeus e vamos continuar a cometer.
Portugal não é assim tão bom aluno, já que continua a cometer os mesmos erros…
Não me esqueço do que disse o ministro Pedro Nuno Santos ao dizer que agora acabou o tempo da rodovia ou das autoestradas e que começou o tempo da ferrovia. Ainda estamos a pagar as autoestradas. É bom não nos esquecermos disto, não podemos andar a mudar de políticas ainda antes de pagarmos as anteriores. Portugal apostou sistematicamente em políticas que não se pagaram a si próprias.
Mas acha coerente o ministro dizer que o tempo é da ferrovia quando se investe tanto na TAP?
É bastante incoerente e sobretudo a TAP é um dossier que já devia estar ultrapassado, mas ainda está quase na fase da abertura. Não tenho dúvidas que a TAP é uma empresa importante, mas quando se faz investimentos públicos de qualquer montante tem de se fazer uma análise de custo/benefício. Gostava de ter visto essa análise, pedi essa análise e gostava de ver o raciocínio ao contrário: se a TAP fechasse o que acontecia? Esse raciocínio devia ter sido feito. Não tenho dúvidas que a TAP é muito importante, mas também não tenho dúvidas que o tecido empresarial no seu conjunto é ainda mais importante do que a TAP. Quando estamos a falar de ajudas estamos a falar de montantes muito semelhantes: para uma só empresa e para todas as outras. Há aqui um desequilíbrio. Portugal não pode ser poupado para a generalidade das empresas e depois ser um país rico para uma determinada empresa e há essa disparidade de análise.
Daí as críticas das entidades empresariais…
70% do plano é para o setor público e 30% vai para as empresas. Preferia que este dinheiro ou esta folga fosse mais para a competitividade fiscal do que para subsídios às empresas. Até porque quando se baixa os impostos estamos a falar de políticas que abrangem um largo leque de cidadãos, quando se fala em subsídios é preciso ter sempre uma máquina para escolher quem os recebe e quem não os recebe e as escolhas são sempre muito mais subjetivas, sobretudo num país como o nosso, em que cada vez mais a corrupção é um problema do qual se fala e a suspeição está sempre em cima da mesa. Quanto mais conseguirmos optar por mecanismos que sejam simples, que tenham critérios objetivos e que sejam aplicados a todos melhor é. Mas não é essa a filosofia do plano. Também é preciso percebemos que estamos a competir com países que fizeram opções inversas, em que escolheram investir a maior parte no seu setor privado. Estas decisões vão-se refletir no Orçamento deste ano, mas também se vão refletir daqui a 10/20/30 anos.
E exige ter uma comissão independente para vigiar…
Funciona sempre muito melhor se houver menos vigilância e mais critérios objetivos do que havendo vigilâncias e um clima generalizado de suspeição. O dinheiro que está previsto para a capitalização das empresas no PRR são 1.300 ou 1.500 milhões, mais uns dois mil que o Governo se compromete em ir buscar, mas é para ser aplicado sobretudo pelo Banco de Fomento. Daquilo que conheço até agora estamos a falar de empresas com mais de cinco milhões de euros de faturação que tenham recorrido às linhas covid ou de empresas de interesse estratégico nacional. E estamos a falar de 1.300 empresas abrangidas, ou seja, 0,1% das empresas portuguesas e de um banco que não tem presidente porque quem o Governo queria nomear foi mencionado num processo de inquérito. A nomeação ficou suspensa e o Governo nem nomeia, nem deixa de nomear e, como tal, o banco não tem presidente. Se a ideia é começar sem suspeições – e acho importante que assim o fosse – o caminho que está a ser seguido não me parece bem.
E a seleção de estratégico também é subjetivo…
É o Banco de Fomento que fará essa seleção. Interesse estratégico? Lembro-me o que foram os projetos PIN e alguns acabaram em processos judiciais.
Foi o que aconteceu com Vale de Lobo…
Mas alguém olhou para Vale do Lobo e considerou que aquele projeto não tem interesse turístico? Claro que tem. A questão tem a ver com o que estava por detrás disso. Portugal tem de apostar na iniciativa privada toda – e não aquela que é escolhida pela máquina do Estado, seja ela por políticos ou por técnicos – e tem de dar os incentivos a todos.
E não apostar num único setor, como aconteceu recentemente com o turismo….
O setor turístico em Portugal vai ser sempre um setor muito desenvolvido.
Teve essa pasta, enquanto secretária de Estado…
É um setor que tenho muito carinho e, muitas vezes, é mal visto, mas é um setor em que somos muito bons profissionais. É muito dinâmico e não acho que o seu desenvolvimento tire a outros setores, até pelo contrário, acho que os setores puxam uns pelos outros. Vejo com enorme preocupação aquilo que está a acontecer nesta atividade porque é muito difícil sobreviver quando não se pode funcionar.
E com apoios curtos…
É evidente que os apoios que são necessários são brutais quando as empresas estão há quase dois anos num abre e fecha.
Despertou para a política aos 15 anos por sentir ‘vontade de fazer qualquer coisa na sociedade’. Como é que isso aconteceu?
Foi uma coisa que aconteceu por acaso ao ver telejornais e a ler jornais. Sempre fui muito curiosa em relação a muitas coisas e comecei-me a interessar por política e começa por esta coisa básica em que vemos coisas que não concordamos e pensamos em como podemos melhorar. Começamos a ver que podemos ir por um caminho e não por outro e instintivamente pareceu-me que identificava com o CDS. Fui pesquisar o que eram os vários partidos, não era uma coisa tão fácil porque implicava deslocações físicas e cheguei à conclusão que o meu instinto estava certo.
Na altura o partido era liderado por Manuel Monteiro…
Identificava-me sobretudo com os artigos de Paulo Portas que militava no partido e que permanece até hoje.
Participou ativamente no referendo de 1998…
Da regionalização. Nunca participei nos referendos do aborto, nem nunca fiz campanha nem pelo sim, nem pelo não. O CDS historicamente tem uma posição contra, nunca me associei a essa posição.
Que balanço faz? Estava à espera de chegar onde chegou?
Claro que não, nem acho que tenha sido uma carreira. O que é importante em cada momento é darmos o nosso melhor e fazermos aquilo que nos parece certo e foi isso que tentei fazer em cada momento. Nunca tive a intenção de fazer uma carreira política, muito menos quando tinha 15 anos. Não tenho intenção de fazer política até ao fim da minha vida. As coisas foram acontecendo com alguma naturalidade e vontade da minha parte. O que espero em cada momento é dar o meu melhor e é isso que tenho tentado fazer.
Deixou alguma coisa para trás?
Acho que o exercício de cargos políticos exige muitos sacrifícios, muito mais do que a maioria dos outros cargos, e como tal, fiz sacrifícios e deixei coisas para trás, mas foram as minhas escolhas.
Não se arrepende de nenhuma delas?
Acho que os arrependimentos são sempre uma coisa fútil. Só servem para fazermos diferente daí para a frente. Não vale a pena olhar para trás com mágoa. Hoje em dia dou mais importância à minha vida pessoal do que dava há 10 anos.