Se há algo consensual em Otelo Saraiva de Carvalho é o facto de… não ser consensual. Não o foi em vida e não o foi, agora, na morte. Em 1996, aquando do debate da Amnistia às FP25 – e a Otelo Saraiva de Carvalho –, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa estavam em barricadas diferentes: o primeiro era secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares no Governo de António Guterres e o segundo presidente do PSD e, por isso, líder da Oposição. O primeiro colaborou ativamente no desenho do diploma da Amnistia e o segundo fez-lhe tenaz oposição (com Marques Mendes na linha da frente parlamentar, enquantolíder da bancada do PSD). Hoje, um é primeiro-ministro e outro Presidente da República – e se, em 1996 ,estavam nos antípodas quanto à Amnistia de Otelo, hoje estão unidos na sua memória. Tudo com um objetivo: o da «reconciliação nacional». Note-se, contudo, que estas palavras de Costa – ditas no velório de Otelo – não foram escolhidas à sorte: são repetição exata das que Mário Soares usou há 25 anos, quando a Assembleia República, por proposta do então Presidente da República, decidiu amnistiá-lo.
Mas se Marcelo parece ter mudado de opinião acerca de Otelo por forma a evitar uma divisão nacional, Marques Mendes mantem-na. Em 1996, no debate sobre a Amnistia, dizia que a sua aprovação «não enobrecia o Estado democrático e constituía uma vergonha para o país». Passados 25 anos, em declarações ao Nascer do SOL, volta a considerar que os atos das FP25 «merecem condenação pública». A seu ver, Marcelo e Costa não decretaram luto nacional por uma simples razão: porque tal «dividiria profundamente a sociedade» e, não lhe dando essa relevância, contribuem para o apaziguamento dos portugueses com a sua história.
Coerência como escudo
O homem que partiu a meio a Assembleia da República no debate da Amnistia às FP25, em 1996, foi o mesmo que, já morto, dividiu opiniões acerca de merecer ou não luto nacional. O Governo, embora socialista, e, por isso, ideologicamente mais próximo do general Otelo, decidiu que não. A razão prende-se numa palavra-chave: «Coerência». Nem Salgueiro Maia, em 1992, nem Melo Antunes, em 1999 – outros históricos militares de Abril – tiveram honras de luto nacional (Spínola teve, mas por ter sido Presidente da República): por essa razão, Otelo mereceu um tratamento igual.
A decisão do Governo encontrou bom eco em Marcelo. Este – salvaguardando que a batata quente estava nas mãos do primeiro-ministro – reiterou as palavras de Costa, embora acrescentando que, «olhando para trás», seja «uma pena» que esses capitães não «tenham merecido» luto nacional. Outra razão para a decisão, explicou, foi a de não alimentar uma comparação entre a grandeza dos capitães: «Na altura não ocorreu e, portanto, para não abrir um debate sobre vários nomes cimeiros, qual o mais cimeiro, penso que foi isso que levou o Governo a não dar o passo».
Já Catarina Martins, coordenadora do BE, lamentou a ausência da decretação de luto nacional, explicando que «Portugal está de luto porque, como disse Ramalho Eanes, a pátria deve a liberdade e a democracia [a Otelo]».
Algo que, no entendimento de António Costa, não está a ser a minimizado: «Ninguém quer diminuir a importância do Otelo Saraiva de Carvalho. O Estado tem várias formas de homenagear o Coronel Otelo». Por fim, pediu para que não houvesse «polémica» mas que, pelo contrário, este seja «um momento de reconciliação de todo país» – citando Soares em 1996.
Será que, passados 25 anos, o país já está «reconciliado», ou será que nunca perdoará as FP25? Terá a morte de Otelo e consequente ressurgimento do debate crispado uma divisão entre os portugueses? Será que decretar luto nacional seria mais divisivo do que agregador?
Luto nacional dividiria Portugal
Ao Nascer do SOL, Marques Mendes começa por afirmar compreender a decisão do Governo, considerando-a «sensata e equilibrada». Apesar de admitir não saber se a «razão formal» por este invocada é «verdadeira ou não», não discorda dela, parecendo-lhe um critério correto. Depois, atira: «Sejamos francos e diretos: se fosse decretado luto nacional, isso iria dividir o país profundamente». Fá-lo-ia, pois, para o antigo Presidente do PSD, Otelo Saraiva de Carvalho, entre «muitas facetas», tem «duas que – goste-se ou não – ficam para história, ainda para mais sendo contraditórias». Por um lado, Otelo foi o «cérebro, arquiteto e líder do 25 de abril» – que não considera «uma coisa qualquer» –, merecendo por isso «uma homenagem»; por outro, a sua «ligação às FP25 – um grupo terrorista absolutamente condenável –, em plena democracia, com crimes de sangues e mortes de pessoas indefesas (até a de um bebé)» merece «profunda condenação pública, apesar da Amnistia». Para Marques Mendes, trata-se de «dois momentos: num faz de herói, noutro de vilão. Há pessoas que valorizam uma parte, e outros que valorizam outra». E conclui: «Uma merece uma homenagem, a outra uma condenação: há muitas figuras que têm um lado bom e um lado mau».
Também o historiador Jaime Nogueira Pinto considera que «tal luto seria uma medida altamente polémica e que contribuiria para dividir, ainda mais, a sociedade portuguesa», não precisando necessariamente de «concordar com a justificação do Governo». Achou, por isso, «bem» não ter havido luto nacional, afirmando «não fazer sentido neste caso» e explicando que a prática fora «banalizada» na III República: «Em 47 anos de regime houve 23 individualidades portuguesas que tiveram direito a tal homenagem (no Estado Novo, em 41 anos, houve apenas três – o marechal Carmona, a Rainha D. Amélia e Salazar)», disse ao Nascer do Sol.
Para Nogueira Pinto, Otelo é «uma figura que divide profundamente a sociedade portuguesa», afirmando que «até muitos daqueles que o louvam pelo 25 de Abril condenam a leviandade com que emitiu centenas de ‘mandatos’ de captura como chefe do COPCON» e «patrocinou ou dirigiu um grupo terrorista de extrema-esquerda que, em plena democracia, cometeu assassinatos e crimes vários».
O consenso do 25 de Novembro
A historiadora Raquel Varela começa por atirar que «Otelo era, de certa forma, maior que o Estado». Estado esse que, considera a investigadora, «embora procure representar toda a população, não o faz».
Raquel Varela enaltece a «popularidade» de Otelo e acredita ter havido um «sentimento generalizado» de que morreu alguém «que marcou como muito poucos a História de Portugal Contemporâneo». Tal, afirma, não foi reconhecido por uma simples razão: «O regime atual vive de um consenso do 25 de Novembro». Este consenso «permitiu homenagear Spínola – que teve ligações a grupos terroristas de extrema-direita em 1975 e, ainda assim, luto nacional – mas não aceita Otelo pelo seu papel fundamentalmente revolucionário romântico». Por estas razões, considera «coerente com as propostas do regime pós-25 de Novembro» homenagear-se Spínola e não Otelo – não obstante «naturalmente não concordar com elas».
A seu ver, a melhor homenagem a Otelo seria uma «popular, de massas», em que constassem «todas aquelas associações sindicais, partidos, grupos populares ou população que acreditou que a democracia participativa era possível» e «não necessariamente luto nacional», pois «uma instituição que reconhece Spínola não pode reconhecer Otelo e vice-versa».
Questionada sobre se a justificação apresentada por Costa e Marcelo seria uma ‘desculpa esfarrapada’, a historiadora concorda: «Claro. O papel de Otelo foi superior ao de Spínola. É uma desculpa formal. Não querem admitir que, efetivamente, não há uma unidade nacional em torno das opções do regime no pós 25 de Novembro». A historiadora admite a existência de dois países – «um de Otelo e outro de Spínola» – e garante «haver uma grande divisão nacional sobre o que significa a Revolução dos Cravos», sendo a desculpa de Costa e Marcelo um «reflexo» disso.
Já Marques Mendes, quando questionado sobre a existência de um país spínolista e outro oteliano em Portugal, rejeita a ideia: «Isso é uma bolha para jornalistas e comentadores. Para o país não existe nada disso».
Também em declarações ao Nascer do SOL, o deputado socialista Eduardo Barroco de Melo afirma conseguir «perceber o luto». Citando Ramalho Eanes, diz que «as datas divisivas, como o 25 de Novembro, não se celebram, assinalam-se». Barroco de Melo admite que não ficaria «chocado» com honras de luto nacional (afirma até que estas «seriam merecidas pelo papel fundamental que Otelo teve»), contudo – e embora não seja esta a sua «posição» – consegue «compreender que as suas ações consequentes possam provocar divisões e impedir esse reconhecimento». Ainda assim, garante que «mais importante que o luto nacional – uma honraria acessória – é procurar não se apagar Otelo da história», afirmando andar a assistir que «à boleia de uma certa incoerência na vida de Otelo se esteja a pôr em causa o 25 de Abril». «Independentemente de haver ou não luto nacional, importa que não percamos o fundamental, que é o contributo dele para a democracia nacional», concluiu.
Já o também deputado socialista Sérgio Sousa Pinto admitiu ao Nascer do SOL concordar com «a posição do Presidente».
O Debate em 1996
A 1 de Março de 1996, a Assembleia República sentava 220 pessoas para discutir a «Amnistia às infracções de motivação política cometidas entre 27 de Julho de 1976 e 21 de Junho de 1991», proposta pelo Partido Socialista. Em plena VII Legislatura, a Assembleia da República era constituída – da esquerda para a direita – pelo PEV, PCP, PS, PSD e CDS. Não obstante a aprovação do diploma, a Assembleia partiu-se a meio: 123 votos a favor da Amnistia, 94 contra e 3 abstenções. À época, Paulo Portas, deputado do CDS liderado por Manuel Monteiro, considerava a Lei da Amnistia «o projecto de lei mais grave que provavelmente dará entrada nesta Câmara durante toda a legislatura».
Na época, o debate motivou a participação empenhada de vários nomes sonantes: do PCP, a histórica Odete Santos; do PS, o poeta Manuel Alegre, José Magalhães e Jorge Lacão (os últimos dois ainda deputados); do PSD, o líder da bancada Marques Mendes, o ex-líder da bancada laranja Pacheco Pereira e o também futuro líder do partido Luís Filipe Menezes; por fim, do CDS, Manuel Monteiro e Paulo Portas.
Em 1996, aquando da discussão da Amnistia no Parlamento, Pacheco Pereira, que votou contra, considerava que aquele debate mostrava «como este tema divide – e divide profundamente! – os portugueses e não tem qualquer papel de pacificação na sociedade portuguesa». Passados 25 anos, questionado pelo Nascer do SOL sobre se essa divisão se mantém ou diluiu, é perentório: estarmos «em tempos de grande tribalismo político», não obstante as divisões serem agora «de natureza diferente». Pacheco Pereira considera que a divisão atual «é mais simples e segue uma fratura que repete muitas vezes o radicalismo entre a Esquerda e a Direita, e que, por isso, é diferente daquela que opunha o terrorismo das FP25».
Noutra intervenção em 1996, Pacheco Pereira referiu haver, «pelo menos», uma pessoa que «não merece a amnistia»: essa pessoa é a que, «dando uma entrevista ao semanário Expresso e falando da morte de uma criança, disse que se tratava de um erro técnico», declarando que esse «cinismo não poderia ser amnistiado» – referia-se, claro, a Otelo Saraiva de Carvalho. Hoje, garante ao Nascer do SOL, voltaria a «condenar as ações terroristas» e a votar «contra a Amnistia», pois nunca «mudou a posição contra o Otelo». Afirma, aliás, nunca «se ter dado bem» com ele; contudo, diz:_«Devo-lhe a liberdade»: «Eu sou contra a redução do Otelo. Uma coisa é condenar a ação terrorista, outra coisa é o julgamento da figura de Otelo à data da morte, e para mim é mais relevante o 25 de Abril do que o terrorismo. Ele fica na história pelo 25 de Abril e pelas FP25 – e há uma diferença gigantesca entre ambas: um é um acontecimento de primeira importância e outro é um desvio terrorista, como teve o Spínola». Explica Pacheco Pereira que, se na hora de morte de alguém apenas se pudesse falar de terrorismo, «também teria de condenar Spínola», pois ele «também criou uma organização que matou muita gente em Portugal, e ninguém se lembra disso». Por fim, conta ter «combatido» a atuação terrorista das FP25, que «aconteceu em Democracia», e garante que já na altura «muita gente as criticava: algumas das pessoas que mais ajudaram a desmantelá-las eram de Esquerda».
Por seu lado, Marques Mendes, há 25 anos, declarava que o PSD – à época comandado por Marcelo – era «frontalmente contra esta amnistia». Os sociais-democratas consideravam o perdão a Otelo «algo verdadeiramente sem justificação» e «a própria negação do Estado de direito». Dessa forma, «em obediência à liberdade, democracia e por respeito ao Estado de Direito», a aprovação da Amnistia constituiria «uma vergonha para o país», disse no Parlamento. Questionado pelo Nascer do SOL sobre se ainda se revê nestas palavras, é perentório: «Subscreveria tudo. Nem tem discussão». Diz-se ainda, «de um modo geral» e «por princípio», contra amnistias, sobretudo quando «estão em causa crimes daquela natureza». Questionado sobre se nos últimos 25 anos se deu uma reconciliação da sociedade quanto a Otelo, Marques Mendes rejeita a ideia, dizendo que «os portugueses ainda estão divididos como em 1996». A seu ver, «não houve reconciliação nenhuma: o país continua profundamente dividido». Para tal reconciliação, explica, teria de «haver passos para isso», não lhe parecendo ver «qualquer dado que alterasse significativamente a situação». Sustenta a sua posição na atualidade: «A prova do divórcio entre o povo e o coronel Otelo ficou clara desde logo no seu funeral. Nenhuma figura de Estado e pouco povo. Esta imagem é mais importante que qualquer discurso para provar o divórcio entre Otelo e o povo – e digo isto com pena e não com prazer».
Manuel Monteiro – à época líder do CDS-PP – também participou ativamente nesse debate. Entre as intervenções, uma que chama a atenção: «Não faz sentido estar a falar para os jovens sem lhes dizer claramente o que aconteceu a seguir ao 25 de Abril. E vou dizer-lhe: eu estudava aqui bem perto, num liceu, e levei muita bofetada na cara só por andar com autocolante do CDS ao peito». Ao Nascer do SOL, Manuel Monteiro garante que a divisão do país, na passagem da década de 70 para 80, era profunda: «Quando hoje certas pessoas vêm falar do extremar de posições que existem na sociedade, esquecem-se, ou fazem-se de esquecidas da violência extremada que existia, quer em termos físicos, quer em termos de linguagem». Explica, por exemplo, que quando morreu Sá Carneiro e Amaro da Costa, «houve pessoas a exultarem-se de alegria pela morte dos dois». Questionado sobre se considera que essas divisões profundas ainda são sentidas hoje, afirma não «ter conhecimento sobre a sociedade» que o «permita» responder a isso, «principalmente sobre a nova geração». Garante, contudo, «que as pessoas que viveram os acontecimentos manterão as mesmas posições». E afirma, passados 25 anos: «Se fosse hoje o debate de 96 eu continuaria a dizer o mesmo e a votar como votei, ou seja, contra a Amnistia».