Durante o denominado período da colonização, «os colonizadores, independentemente de serem militares, administradores civis ou missionários, abordaram a África não só com os preconceitos que já tinham sobre este continente mas também com as ‘etiquetas’ que categorizavam os sexos no continente europeu, conferindo às mulheres um estatuto legal inferior», explica Lurdes dos Santos na dissertação A igualdade de género em São Tomé e Príncipe: entre a realidade e a utopia, apresentada em 2015.
No trabalho, realizado no âmbito do mestrado em Estudos Sobre as Mulheres, a mestre explicita que «as mulheres que ocupavam um lugar fundamental na sociedade e na produção agrícola, foram relegadas para o lar e para as culturas de subsistência, perdendo assim o seu poder económico e a diminuição do seu estatuto social que era conferido pela idade, posição social e poder económico», enquanto «aos homens foi-lhes conferida a responsabilidade das culturas de exploração, o acesso às tecnologias, o direito a mais educação e formação e o direito à terra, como chefe de família».
Volvidos 46 anos da independência do país, a portuguesa Francisca Sequeira, de 29 anos, tenta reverter os estereótipos de género e a desigualdade existente entre os mesmos através do projeto SOMA Surf – Surfistas Orgulhosas na Mulher de África.
«Comecei sozinha. Trabalhava como assistente de bordo e sabia que ficaria sem trabalho mais cedo ou mais tarde então queria trabalhar das 9h às 17h. Conhecia muito bem S. Tomé e Príncipe e aquilo que me fez ir até lá foi o facto de ter voltado a surfar», conta a jovem que não esconde que, enquanto adolescente, deixou a modalidade para trás, atribuindo um lugar cimeiro a outros hobbies.
No entanto, voltou a dedicar-se a este desporto aquático e entendeu «no corpo e na mente» o impacto que o mesmo tem na sua vida. «Por coincidência, e por o universo funcionar em conjuntura, começou a aparecer muita informação sobre surf therapy e é aquilo em que consiste o meu projeto. É um método de intervenção que usa o surf como ferramenta de empoderamento pessoal e autoconhecimento», esclarece, deixando claro que não conhecia raparigas que surfassem no país, algo que espelhava o facto de serem relegadas para segundo plano em todas as vertentes.
«Elas próprias aniquilam-se e não conseguem ver um futuro. Sonhar e ter ambições são coisas que não existem. Quando lhes damos margem para sonharem e extravasarem emoções, vemos que não têm essa criatividade», narra com tristeza, adiantando que regressou a S. Tomé, pela primeira vez desde que teve a ideia de lançar o projeto, em setembro de 2019. Bateu a todas as portas e entendeu que somente existia um clube de surf – fundado por portugueses como a surfista Teresa Abraços, que foi uma das pioneiras do surf feminino em Portugal – e 47 surfistas do género masculino.
«Conheci a comunidade, as praias e, depois, organizei-me com eles e procurámos raparigas que quisessem surfar. Algumas já tinham sido identificadas, mas os pais não davam autorização», mas Francisca não desistiu e organizou uma «espécie de open day». Para isso, contou com a colaboração de Joana Andrade, uma das primeiras atletas a surfar a onda da Baixa da Viola, um pico de ondas grandes situado na freguesia da Maia, concelho da Ribeira Grande, na ilha de São Miguel, que esteve em S. Tomé durante dois dias a dar aulas e a partilhar a sua experiência com as jovens.
À época, conseguiram contar com a presença do Presidente do Comité Olímpico de S. Tomé que «adorou o projeto», algo muito benéfico para este ano, em que o surf foi reconhecido oficialmente como modalidade olímpica, havendo «muito interesse em desenvolvê-la».
Para além disto, a antiga assistente de bordo «já tinha ouvido dizer que os miúdos sentiam muito o abandono porque as pessoas fazem algo e depois vão embora» e, por este motivo, decidiu que não viraria costas às meninas com quem criara laços.
O flagelo da violência doméstica e sexual
Nos meses compreendidos entre setembro de 2019 e março de 2020, Francisca intervalou a permanência em Portugal com as viagens a S. Tomé. De duas em duas semanas, por ter facilidade em deslocar-se devido às funções que exercia na TAP, ia até à ilha. No entanto, tal teve um fim e tem tentado visitar ao máximo o país apesar das contrariedades.
«O objetivo é complementar o surf com outras atividades que levem ao desenvolvimento de vertentes como a da orientação vocacional ou a educação sexual. Muitas delas acreditam que os homens podem abusar delas ou castigá-las se não cumprirem determinadas coisas», destaca a fundadora do SOMA Surf, indicando que, no próximo mês de setembro, «outra ‘turma’ de 30 raparigas iniciará as aulas e a formação», contando com o apoio de centros de saúde locais, das escolas e da associação de psicólogos. Prova disso é a realidade descrita por Daniele Savietto num artigo de opinião, de 2014, veiculado no jornal Público.
À época, a então estudante de mestrado na Universidade de Coimbra esclarecia que um terço das mulheres de S. Tomé admitia ter sido alvo de violência física. «Pobreza, comportamento controlador do parceiro, consumo de álcool, escassa assistência legal e desigualdades sociais existentes entre homens e mulheres são apontadas como causas», escrevia a cronista, indo ao encontro do olhar de Francisca.
«O que acontece muito é que as raparigas deixam de estudar porque engravidam, desistem simplesmente ou chumbam. E, nessa altura, os pais praticamente expulsam-nas de casa», conta, adiantando que as mulheres acabam por trabalhar ou juntarem-se a homens muito mais velhos para sobreviverem. «A virilidade de um homem mede-se muito pelo número de filhos, então, oferecem-lhes guarida e comida em troca dos mesmos», explica, lembrando que o planeamento familiar não é um conceito aceite pela sociedade são-tomense.
A título de exemplo, no passado mês de fevereiro, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) analisou a situação em São Tomé e Príncipe. O país de língua portuguesa no oeste da África foi avaliado como parte do mecanismo de Revisão Periódica Universal, sendo esta a terceira revisão do país desde 2011, pois a igualdade de género ainda não foi alcançada.
No site oficial da ONU, é possível ler que a mesma se preocupa com a quantidade de mulheres com idades compreendidas entre os 20 e os 24 anos que entraram numa união marital antes de completar 18 anos. Por outro lado, «a proporção de mulheres de 15 a 49 anos que reportou violência sexual de parceiros e companheiros próximos nos últimos 12 anos também causa sinal de alerta».
É de referir que a Revisão Periódica Universal analisa a situação de direitos humanos de todos os 193 países-membros e estes têm de se comprometer a ter em consideração «os pontos ressaltados e a reportar sobre a situação dos direitos humanos no território».
«Não queremos mudar a forma como pensam e vivem, mas sim dar à mulher ferramentas para que perceba que não tem de depender de um homem e que tem vários direitos e deve lutar por eles», diz Francisca, realizando um paralelismo entre a passividade das mulheres e os passageiros que aguardam numa paragem de autocarros. «Estão numa paragem de autocarros à espera de que um as apanhe. Têm um papel muito passivo na sociedade», confessa.
«O surf representa muito os valores de empatia e entreajuda»
«Em fevereiro, convidei a Mariana Rocha Assis e a Joana Andrade para darem formação aos treinadores de surf porque ainda não havia voluntários», conta, admitindo que temia que os rapazes não aceitassem «a partilha de ondas» com as raparigas, não se sentindo confortável também com a ideia de que os progenitores das jovens poderiam não autorizá-las a sair de casa e a praticar um desporto habitualmente associado ao género masculino. Contudo, foi surpreendida.
«Tivemos uma boa aceitação e os surfistas locais não só adoram partilhar as ondas com elas como gostam muito de ajudá-las. Eles tiram as pranchas das carrinhas, levam-nas até à água… Até lhes digo para largarem as miúdas para elas serem mais independentes», avança, elucidando que os homens não encaram as raparigas como concorrência.
Apesar disto, o fantasma da violência está sempre presente. Muitos dos surfistas narram a Francisca que sugerem fazer passeios com as meninas, mas elas não querem. «Há muitas violações apesar de as coisas estarem mais controladas agora. Elas sentem que há adultos que as protegem», garante, recordando que a rotina das adolescentes são-tomenses passa por acordarem, irem buscar água, tomarem conta dos irmãos e estudarem se for esse o caso.
«A maior dificuldade que eu tenho é explicar às mães, que exigem mais das filhas, que as tarefas domésticas têm de ser divididas entre todos. Ainda não conseguiram ter noção da importância desta atividade para as filhas», lamenta. Por este motivo, quando as jovens têm más notas na escola ou não têm o comportamento esperado, o castigo é não terem oportunidade de frequentar as aulas de surf.
Apesar de lutar por uma vida melhor para as pupilas, Francisca não esconde que duas engravidaram: uma de 12 e outra de 14 anos. «O destino delas já está traçado à nascença». Porém há exemplos, como o de Fátima, de 18 anos, que mostram o poder da surf therapy que a portuguesa leva a cabo.
«Quer estudar Psicologia no Ensino Superior e vai ser a responsável pelo SOMA. Fará um trabalho mais administrativo e estará em contacto com os pais das próximas formandas», na medida em que as surfistas que terminam o semestre de formação acabam por ser «madrinhas» das seguintes. «Ao final de um ano, pretendemos que comecem a criar ações de empreendedorismo».
Em outubro, quatro destas raparigas virão a Portugal ter formação. Também começarão a receber bolsas de estudo, pois o SOMA está a fechar um protocolo com a Câmara Municipal de Cascais. Todos estes pontos são essenciais porque «a dificuldade é manter o projeto vivo». Deste modo, Francisca levou a cabo um crowdfunding.
A ex-assistente de bordo realça que os custos associados ao projeto são tudo menos baixos, principalmente, naquilo que diz respeito ao material necessário para a prática desportiva, como as pranchas de surf. «Quando sei que alguém vai a S. Tomé ou que certas empresas enviarão contentores, envio material. A quantidade de pessoas que se junta para ajudar é surreal. O surf representa muito os valores de empatia e entreajuda».
Para além da campanha de angariação de fundos e do apoio de particulares, o SOMA conta igualmente com o Comité Olímpico do país. «Fazem o máximo que podem, não têm muitos meios, e o Governo tem muitas mais organizações não governamentais para apoiar», reconhece a responsável que, a curto prazo, almeja ver resultados concretos do surf na vida destas raparigas.
«Espero que tenham um papel muito ativo na ilha e que haja maior igualdade de género. A longo prazo, quero expandir o SOMA para outros Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa», estando já a «preparar o caminho para entrarmos em Cabo Verde».
Depois de ter estabelecido aulas semanais para 30 raparigas de São Tomé, organizado limpezas de praia com a comunidade, investido na formação de treinadores de surf locais e organizado treinos de surf com duas surfistas portuguesas, participado no Simpósio Global da ISTO (International Surf Therapy Organization), palestrado sobre ‘empoderamento feminino através do desporto’ no 1º Fórum do Desporto de São Tomé, entre outros, «o sonho é imaginar mulheres a surfar ondas infinitas de justiça, união e sustentabilidade em África» para o SOMA.