Clarissa Ward. Os olhos azuis que nos mostram o pesadelo do mundo

O mundo pode discordar em muitos aspetos e, a opinião que temos das pessoas, é sempre muito subjetiva. Contudo, a coragem de Clarissa Ward é unânime. Após 15 anos a tirar o pano às histórias de sofrimento nas zonas de guerra, Ward tornou-se a principal correspondente internacional da CNN no Afeganistão, onde esteve até à passada sexta-feira. Mas…

Estamos habituados a assistir às tragédias a partir da televisão, sentindo tudo à distância. Mas Clarissa Ward, não. Na verdade, não devem de existir muitas coisas que a jornalista anglo-americana ainda não tenha reportado e presenciado… Desde mortes, a tragédias ambientais e prisões políticas…

Os seus olhos azuis já viram muitas coisas, já mergulharam em muitas calamidades e já beberam de vários outros olhares. Mas estariam eles preparados para absorver este cenário catastrófico que se instalou no Afeganistão e, por consequência, tem feito “tremer” todo o mundo?

Apesar de tapado com um hijab preto, o seu rosto tem sido corajosamente revelado durante a cobertura da CNN da situação em Cabul, após a tomada de poder por parte dos talibãs no Afeganistão, a 15 de agosto. “Já testemunhei todo o tipo de eventos malucos e implausíveis, mas nunca vi nada parecido com o que está a acontecer em Cabul “, escreveu a jornalista numa coluna do The Spectator na passada quinta-feira. 

Ward recebia diariamente pedidos de ajuda. Para muitos afegãos, o seu rosto foi o rosto americano mais próximo que tiveram em Cabul. “Ajude-me, por favor!”; “Para onde é que posso ir?”; “Como é que explico a minha papelada?”. Cartas e constantes abordagens na rua durante a sua maratona de 19 horas por dia. Como ajudar? O que fazer?

O seu profissionalismo, sensibilidade, força e coragem foram a resposta a isso: sob disparos, cercada por talibãs armados; recebendo ameaças e ordens para cobrir o rosto e sendo expulsa de lugares por ser mulher, Ward manteve-se firme. “Os jornalistas afegãos, que realizaram um trabalho tão corajoso e importante nos últimos 20 anos, não recebem este tipo de garantia [de poder deixar o país]. Não estou preocupada com a minha segurança, estou sim preocupada com a segurança deles ”, continuou. 

Ward em Cabul Estava no seu último ano de literatura na Universidade de Yale, quando os EUA sofreram os ataques às torres gémeas por parte da Al Qaeda. Talvez tenha sido esse o ponto de viragem na vida de Ward: o acontecimento, abalou-a de tal maneira que percebeu que o seu futuro não passaria pela representação, mas sim pelo jornalismo. O que a jovem não sabia, nessa altura, é que seria ela própria a reportar, 20 anos depois, em Cabul, a saída dos soldados americanos do Afeganistão e a tomada do controlo do país da guerrilha insurgente.

Um presságio, talvez. Contudo, a jornalista anglo-americana, que foi a responsável pela cobertura dos recentes acontecimentos, para o canal CNN, conseguiu, finalmente, deixar a zona de conflito na passada sexta-feira, num avião lotado da Força Aérea dos Estados Unidos, juntamente com 300 afegãos. E, as suas últimas fotografias postadas na sua rede social, Instagram, podem, muito bem, ser o reflexo da sua biografia. 

“Fazer reportagens nas ruas de Cabul após a conquista dos Talibãs foi uma das experiências mais extraordinárias da minha carreira. Estou com demasiada privação de sono para conseguir expressar-me por palavras, a única coisa que consigo dizer é que como jornalistas, ganhamos um lugar na primeira fila da história. Escrevi no meu livro On All Fronts sobre a experiência de passar algum tempo com o Taleban no norte, há alguns anos. Mas nunca imaginaria que tomariam a capital em questão de horas quase sem disparar um tiro”, escreveu há quatro dias, na descrição da fotografia onde aparece nas ruas de Cabul, com a sua equipa.

Na sexta-feira, “após duas horas de sono nas últimas 48 horas”, Ward e equipa da CNN, embarcaram num avião militar e a jornalista voltou a marcar esse momento: “Finalmente a apanhar um avião para fora de Cabul. O meu pensamento continua com todos aqueles que querem partir, que esperam há dias, ou que se escondem nas suas casas, com medo de partir”, escreveu numa fotografia onde se vê a lotação do avião e os rostos de centenas de afegãos incertos com o futuro que lhes espera.

Uma carreira "brilhante" Ward nasceu em Londres, em 1980, filha de pai britânico e mãe americana. 
Começou como assistente na Fox News, em 2003, tendo mais tarde coordenado a cobertura de acontecimentos como a captura de Saddam Hussein, o tsunami do oceano Índico, ou as mortes de Yasser Arafat (ex-líder da Organização para a Libertação da Palestina), e do Papa João Paulo II, em 2005.

Em 2006, Ward trabalhou como produtora, no terreno, para a Fox News, onde produziu a cobertura da Guerra do Líbano de 2006, o sequestro de Gilad Shalit e a subsequente ação militar de Israel na faixa de Gaza, o julgamento de Saddam Hussein e o referendo constitucional de 2005 no Iraque. Ao longo da sua carreira, conduziu entrevistas com figuras notáveis como o general David Petraeus, o então vice-primeiro-ministro iraquiano Barham Salih ou o Presidente libanês Emile Lahoud.

Na realidade, Ward nada sabia sobre a guerra, mas estava certa que se dedicaria ao jornalismo com o “único propósito”: cobrir zonas de conflito. 

Relembrando o seu princípio de carreira, a jornalista afirmou não ser possível afirmar que esta nunca pagou as suas dívidas, “porque não há degrau inferior ao da secretária de trabalho da Fox News”, afirmou numa entrevista concedida em 2020. Entrava à meia-noite e terminava às nove da manhã.

O seu ponto alto da maratona de trabalho era, como ela mesmo contou, quando “as batatas fritas com queijo chegavam por volta das três horas da manhã”. Quase dois anos após a invasão de Bagdade pelos Estados Unidos, os correspondentes da Fox estavam exaustos e era cada vez mais difícil de trabalhar. Ward, que ainda passava o tempo sentada à secretária da redação, implorava todos os dias ao seu chefe que a enviasse para o Iraque. E, quando esta tinha 25 anos, aconteceu: “Foi a primeira vez que realmente entendi que podia morrer durante o meu ofício”, admitiu.

Mas, apesar do risco, a jovem sabia que, a partir desse momento, pertencia a todos os lugares do mundo. Tal como confirma na sua localização do Twitter: “aqui, ali e em todos os lugares”.

De outubro de 2007 a outubro de 2010, foi correspondente da ABC News em Moscovo, onde conheceu o atual marido, com quem tem dois filhos pequenos, de três e um ano. Lá, cobriu as eleições Presidenciais que levaram Vladimir Putin à Presidência em 2012.

E, mais tarde, foi transferida para Pequim, como correspondente da ABC News na Ásia, onde reportou o terramoto Tohoku e o tsunami de 2011 no Japão. Também cobriu os conflitos no Afeganistão ao longo dos anos – em 2019, foi uma das primeiras repórteres ocidentais a cobrir a vida nas áreas controladas pelos talibãs no Afeganistão.

A carreira de Ward na CBS News começou como correspondente internacional, em outubro de 2011, onde cobriu eventos de enorme peso mundial: da guerra civil na Síria, à passagem do ativista de direitos civis chinês Chen Guangcheng pela Embaixada dos Estados Unidos em Pequim, e às negociações subsequentes entre os Estados Unidos e a China, sem esquecer a revolução ucraniana de 2014. 

Em 2012, durante um trabalho para o programa 60 Minutos na cidade síria de Aleppo, Ward e a sua equipa sofreram disparos de franco-atiradores e bombardeamentos aéreos. Em julho de 2013, a repórter esteve no Egito, filmando na mesma área onde a correspondente da CBS, Lara Logan, foi abusada sexualmente alguns anos antes durante a Primavera Árabe. Em outubro de 2014, Ward voltou à Síria clandestinamente para entrevistar dois jihadistas ocidentais sobre radicalismo.

Um ano depois, por fim, juntou-se à CNN e em julho de 2018, o canal nomeou-a principal correspondente internacional, sucedendo a Christiane Amanpour. Em 2020, Ward, esteve à frente do caso do líder da oposição russo Alexei Navalny durante anos, que culminou no seu envenenamento em agosto do ano passado e na prisão, onde se encontra atualmente. 

Os terríveis "ossos do ofício" Marie Colvin, jornalista do jornal britânico The Sunday Times, e o fotógrafo Rémi Ochlik, da revista Paris Match, foram mortos em fevereiro de 2012 na cidade de Homs, na Síria, onde estavam a cobrir a guerra civil, depois de um bombardeamento do exército sírio contra o edifício onde estavam e que era usado por jornalistas.

Pouco antes desse ataque, Colvin tinha prestado declarações a várias televisões sobre o que estava a acontecer: “É uma completa e total mentira dizer que eles só estão a ir atrás dos terroristas”, disse à CNN, acrescentado que o “exército sírio está simplesmente a bombardear uma cidade com civis com frio e fome”.

Foram as suas últimas mensagens ao mundo, falecendo no “campo de batalha”, que, para si, não era nada menos que “o seu local de trabalho”. Colvin tinha estado em zonas de guerra e conflito desde a Tchetchénia, Kosovo, Serra Leoa, Zimbabwe, Timor Leste ou Sri Lanka – onde os estilhaços de uma explosão levaram a danos num olho; desde então uma pala negra que usava tornou-se a sua imagem de marca.

No ano passado, a jornalista Lara Logan, ex-repórter do canal de televisão CBS News, revelou que foi violada por um grupo de homens enquanto cobria os acontecimentos da Primavera Árabe, há dez anos. Em entrevista à revista Newsweek, Lara disse que já tinha falado do seu caso antes, inclusive com meios de comunicação que, segundo ela, preferiram não noticiar o crime por questões políticas.

Lara estava a trabalhar na cobertura da renúncia de Hosni Mubarak, quando se viu no meio de uma enorme confusão: “Parecia-me que as pessoas estavam a comemorar, como se fosse uma multidão pró-americana. De repente, o nosso tradutor olhou-me com um olhar de puro terror e disse: ‘Corre, corre!’. Senti pessoas a tocarem-me entre as pernas. Fiquei bastante atordoada. O nosso segurança, Ray Jackson, o resto da equipa e outa multidão estavam a correr connosco, pensei que também estavam a fugir, mas enganei-me”, relembrou. 

“Lutei contra o ataque da melhor maneira possível durante 15 minutos, mas eles arrancaram-me as minhas roupas todas e violaram-me com as mãos, com mastros de bandeiras e com paus”, detalhou. A ex-repórter adiantou ainda que estava a lutar pelo seu corpo, mas que houve um momento em que desistiu e não aguentou mais”: “Era tão difícil respirar, havia tanta pressão na minha caixa torácica. Eles tentaram arrancar-me os membros. Eu caí e não me consegui levantar”, explicou.

Lara relembrou ainda ter sido jogada, por fim, para o colo de uma mulher, acabando depois por ser socorrida. Levada de volta para os Estados Unidos, a jornalista passou quatro dias internada, para recuperar de todos os ferimentos. Ao chegar ao seu país, recebeu uma chamada do então Presidente, Barack Obama e de Hillary Clinton.

Lara revelou ter contado sobre o crime a dois veículos de imprensa americanos que “preferiram omiti-la por questões políticas”. No ano passado, a ex-repórter sublinhou: “Não é possível fazer um movimento como o #MeToo (a favor das mulheres) e não dizer nada sobre uma jornalista mulher que foi violada e quase assassinada por vários homens”.