Cavaco Silva. A defesa da preservação do Tabu
Foi ao final da tarde de uma segunda-feira desse dezembro sombrio que me desloquei, mais uma vez, ao gabinete de Cavaco Silva. Como o fiz outras segundas feiras do quadriénio em que ocupei a ala sudeste do velho mosteiro onde no silêncio da noite ainda se ouviam os monges a sussurrar. Normalmente limitava-me a ir lá depositar no secretariado o programa parlamentar da semana.
Foi com perplexidade que vi uma enorme mesa quadrangular, num compartimento adjacente ao das secretárias pessoais, a transbordar de cartas e postais arrumados em montes contíguos! Algo de anormal num espaço que pugnava pelo rigor e celeridade no combate à burocracia.
Da mesa não se vislumbrava o tampo, estavam ali milhares de missivas.
Na altura perguntei se se tinha transferido para S. Bento uma sucursal dos CTT?!
A resposta deixou‐me pregado ao chão: «… Nós recebemos isto todos os dias desde há um mês, mas ao final da tarde vai tudo para a máquina de triturar papel. Quem manda pode, tem que estar tudo rasgadinho antes do Professor sair e dar com este espalhafato. Mas dá uma trabalheira e ele havia de gostar de saber que ainda há tanta gente que, por esse país fora, o estima muito…!».
Não necessitei de perguntar de onde vinha a iniciativa, era entendível que o velho cariz decisório familiar, para o bem e para o mal, comandava aquele instinto defensivo e o futuro próximo do Cavaquismo.
Também aquele «desfazer de feira» me ajudava a ter cada vez mais a convicção / certeza de qual seria a sua decisão final, a tornar pública daí a umas semanas.
Aliás, numa das suas últimas autobiografias publicadas, Cavaco Silva clarificou o facto daquela importante decisão ter tido um cariz pluri familiar e de ter tido até a ver com pequenos factores desencadeadores e reactivos de um espírito já desencantado com o status quo.
Um deles, foi a notícia do Independente que o colocava na postura de um indesculpável não pagador de impostos, a propósito de um IVA do arranjo de uma casa de banho no modesto andar da rua do Possolo.
O Independente, Paulo Portas e o seu projecto político pessoal, foram muito mais determinantes na demolição do Cavaquismo que a oposição frontal, mas aberta e leal, de um adversário com ética chamado Mário Soares.
O que foi feito a ministros sérios e pedras-chave do Governo, como o eram Miguel Cadilhe e Leonor Beleza, entre muitos outros, não tem perdão e não é apagado pelo poderoso subsequente branqueamento ‘industrial’ de carácter do então jovem jornalista.
Infelizmente, a memória colectiva é curta. Às vezes até o é a dos que assim foram pessoalmente ‘chacinados’ e infamemente obrigados a afastarem-se da vida pública!
Os portugueses são frágeis e sempre preferiram o cómodo ‘perdão cristão’ à vendetta, mesmo que moderada e sem condenáveis excessos físicos. Somos assim há demasiados séculos. Dificilmente mudaremos.
Marcelo Rebelo de Sousa. 1979 – rua duque de Palmela, 37
Esta história passou-se a poucos meses das eleições legislativas de 1979, que haveriam de conduzir Francisco Sá Carneiro a primeiro-ministro.
Eu ia a caminho de Lisboa, acompanhado do meu diretor de serviço na Faculdade de Medicina, professor Joaquim Pinto Machado, de quem eu era assistente. Íamos no ‘Foguete’, era essa a designação do hoje apelidado Alfa Pendular. Na prática o mais rápido comboio de passageiros entre o Porto e Lisboa.
Na altura eu era assistente de Anatomia e íamos à capital reunir com José António Esperança Pina, o jovem professor dessa disciplina do primeiro ano médico, na então recém criada Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova.
No comboio preparávamos a reunião, que visava a organização de um grande congresso internacional que a Sociedade Portuguesa de Anatomia ia levar a cabo, em parceria com a sua congénere brasileira, no Funchal.
Entre a concentração no trabalho e o ruído do ’veloz’ comboio rápido, ouvi uma grande gargalhada três lugares adiante.
Debrucei-me discretamente para ver o que se passava e vejo um velho conhecido, Miguel Veiga, também ele inclinado sobre o banco que o precedia, falando sem parar perante o riso convulsivo de um conjunto de jovens raparigas.
Acabou ali a minha preparação da reunião académica e, com a compreensão de Pinto Machado, juntei-me à jovial e bem disposta tagarelice liderada pelo ilustre advogado portuense.
Foi assim até Santa Apolónia.
À chegada, Miguel Veiga fez‐me um desafio: «Não tenho com quem almoçar, aceitas vir almoçar comigo ao Pabe, é que à tarde tenho um encontro com o Francisco (Balsemão) e assim é só subir as escadas».
Como Pinto Machado também tinha um almoço aprazado e como a nossa reunião era só a meio da tarde, foi com agrado que apanhei um táxi e acompanhei Miguel Veiga até à Duque de Loulé.
Almoçamos, pois, no Pabe, que, com o Expresso por cima, constituíram durante décadas uma das maiores duplas icónicas, nobremente institucionais, na cidade de Lisboa.
Terminada a refeição, Miguel Veiga desafiou-me a subir com ele uns minutos. Quando chegamos ao corredor de acesso aos gabinetes da direcção, Veiga perguntou pelo ‘Marcelo’. Apontaram-lhe uma porta com um retângulo superior de vidro fosco, de onde ecoava um concentrado som do matraquear simultâneo de várias máquinas de escrever.
Veiga bateu à porta e foi abrindo-a. Em pé, com umas folhas na mão, estava Marcelo Rebelo de Sousa, que caminhava em círculos apressados ao mesmo tempo que ditava um texto.
Entrámos os dois na pequena sala e durante alguns minutos assisti a algo que os meus frescos e imberbes vinte e cinco anos consideravam sobrenatural: Marcelo tinha três secretárias com três máquinas de escrever, fazendo um triângulo equilátero entre si. No centro, sempre em movimento, sem uma hesitação, Marcelo ditava de um fôlego, com pontuação à mistura, três longos textos para o jornal de sábado.
Nessa tarde fiquei a saber que ele, para lá de ser o autor assumido da histórica segunda página do semanário, guia espiritual das elites dessa época, era também os outros dois desconhecidos e notáveis novos colunistas, que recentemente se haviam revelado nas últimas páginas do incontrolável semanário!
Nesse dia conheci finalmente o Marcelo diferente da maioria dos mortais. Na capacidade de concentração, na memória ímpar, na cultura geral consolidada. Um verdadeiro computador ambulante, avant la lettre.
Fiquei com a certeza que chegaria inevitavelmente ao topo. Só imaginei que seria muito mais cedo.
1996 – A noite do sobressalto dos sobretudos azuis
O grande avanço da neurociência ainda não resolveu cabalmente a inter‐pretação da fisiologia dos afectos. Seja do amor, seja da amizade.
No entanto, qualquer pessoa com experiência de vida sabe, por conta própria, que a lógica e a racionalidade não chegam para entender, mesmo que superficialmente, as razões que nos fazem gostar de umas pessoas, tolerar outras e mesmo detestar algumas mais.
Então na vida política, onde interagimos com centenas ou mesmo milhares de interlocutores, é que esse puzzle não é de todo decifrável.
No final da década de 80, desaguei na capital, no epicentro do dia a dia de uma larga maioria política que tinha vindo para ficar. Havia, pois, muitas oportunidades de convívio e de aproximação personalizada com colegas de partido e também com muitos adversários corteses e civilizados.
No entanto, ao fim de algumas semanas, entre dezenas de membros de Governo e deputados que desempenhavam, lado a lado, funções comigo, cedo ficou desenhado quem eram os meus amigos para uma geração. Muitos deles tornaram-se progressivamente em companheiros insubstituíveis. Amigos que se tornaram em amigos íntimos, parceiros de dez anos de uma parceria única.
Fernando Nogueira, Luís Marques Mendes, membros dos gabinetes de trabalho de ambos, como Carlos Chaves – hoje general na reserva – ou Conceição Frutuoso de Melo, só para enumerar alguns, fizeram desde cedo parte desse grupo.
Seria intelectualmente interessante dizer que se tratou de uma aproximação assente na proximidade ideológica, na mesma forma de entender uma militância de proximidade, numa sinergia de poderes ao serviço de um projecto de grupo, mas de facto nada disso justificava essa aproximação selectiva, que se traduziu por começar por uma inexplicável empatia que evoluiu para uma fraterna amizade.
Essa afectividade consolidou-se com a aproximação entre as respectivas famílias e colaboradores mais próximos. Foram dezenas os fins de semana em que confraternizávamos em família, com os nossos filhos brincando por perto em igual camaradagem.
Assim, foi uma ‘fatalidade’ óbvia que essa amizade, evidentemente numa lógica mais convivial, se estendesse a conhecidos e amigos de cada um de nós. Foi desse modo que se geraram rotinas e hábitos que se prolongaram por toda uma dezena de anos.
Os almoços em grupo na cave do restaurante Comilão, ali no coração de Campo de Ourique, as tardes a jogar futebol em frente ao estuário do Tejo, na residência oficial de Fernando Nogueira ou os alargados jantares de quinta-feira. É sobre esses que me vou espraiar um pouco mais.
Sob a tutela da liderança respeitável de Fernando Nogueira, reuniam semanalmente uma dúzia de convivas, cujo núcleo central se manteve constante ao logo do tempo e só ia tendo pequenos ajustes ao sabor das conjunturais remodelações governamentais.
Tudo começou em meados de 1988, com jantares religiosamente às 20 horas, ali perto do Parlamento, no coração de um dos velhos e emblemáticos bairros da cidade, na Parreirinha de Alfama.
O tal núcleo base era constituído por pesos pesados do Cavaquismo, como o eram Fernando Nogueira, Luís Marques Mendes, Eurico de Melo, Miguel Cadilhe, Silva Peneda. Constantes eram também as presenças de outros pesados protagonistas oriundos da área da Justiça, como o extraordinário juiz Marques Vidal – então director da Polícia Judiciária e o meu ‘primo’ Mário Mendes, outro prestigiado juiz, posteriormente o sucessor do primeiro. Logo a seguir, juntou-se ao grupo Laborinho Lúcio, que haveria de suceder a Nogueira na pasta da Justiça.
Nesses já longínquos tempos, principalmente no Inverno, os homens com este tipo de funções optavam por uma farda sóbria que cobria generosamente o inevitável fato e gravata. Mais ou menos modelo único, com mais ou menos botões e mais ou menos comprimento, tratava-se do incontornável sobretudo azul escuro.
Eu sei que hoje há muitos dos nossos sucedâneos que cultivam um ar mais fresco, sem esse sobrepeso aos ombros, até porque ele retiraria a visibilidade dos sapatos compridos e afunilados, das calças justas pelas canelas, dos fatos de marca esplendorosamente brilhantes, das gravatas floridas e garridas e até de um piercing auricular discretamente dissimulado. Uma bem justa e elástica camisola interior térmica é mais ‘in’ e evita o uso do ultrapassado casacão ajudando também a disfarçar a barriga, filha de tanta jantarada bem bebida.
Mas ainda bem que é assim, pois desta forma nunca terão histórias destas para contar. Têm um modo menos intimista e mais pragmático de olhar para a sua contacorrente. Vamos, pois, continuar a narrativa.
O grupo tinha um sector mais jovem e menos ‘institucional’, mas igualmente assíduo. Nesse escalão estavam mais meia dúzia de colegas de confraternização, entre eles, Calvão da Silva, Castro Marques, o major Chaves e eu próprio.
Numa dessas quintas-feiras, referencio-a no Inverno de 1989, salvo erro ou omissão a 16 de Novembro, uma semana exacta após a queda do Muro de Berlim, a chegada dos convivas atrasou-se em relação ao horário habitual e assim a mesa corrida com os magníficos enchidos, queijos e croquetes, que eram os aperitivos da casa, ia sendo desbastada pela gulodice das mesas mais próximas, pois naquela noite aquele oásis de tranquilidade estava completamente esgotado.
Esse atraso evidenciou-se ‘fatal’. Para além do dizimar das magníficas entradas, que nessa noite foram substituídas pela passagem direta ao prato principal, os cabides estavam todos ocupados, o que obrigou a que as albardas azuis se tivessem sobreposto, anarquicamente, umas sobre as outras, na única cruzeta disponível.
O jantar, até porque começou fora de horas para o que era o horário habitual, prolongou-se até ao início da madrugada. Embora fosse regra aquelas refeições serem um encontro de amigos em que a política ficava nas ruelas sombrias do bairro, naquele dia a euforia berlinense foi tema regozijante de diálogos.
Chegada a hora de partir, com o ‘clarim’ de aviso quase sempre ‘soprado’ pelo rigor do disciplinado juiz diretor, todos se dirigiram para o volumoso monte azulado junto à porta.
Cada um foi-se ‘fardando’, até porque a noite estava fria e húmida. Com os cumprimentos de despedida da praxe, cada um procurou o seu automóvel estacionado no largo arruamento adjacente à Assembleia da República.
Posteriormente, foi conhecido o incómodo e a estranheza com que alguns se haviam sentido espartilhados, imaginando que haviam exagerado no cabrito, com que outros achavam estranho estarem tão folgados e a verem mal a ponta dos sapatos. Imune só ficou Marques Vidal, o único com casacão alentejano, que assim escapou ao apocalipse da confusão que se prolongou pela noite fora.
Nessa madrugada em que muitos berlinenses do Leste terão ido, por vontade própria, pernoitar a Ocidente, essa liberdade de circulação foi cerceada à maioria dos ilustres amigos da jantarada de Alfama.
Muitos ainda dentro do seu veículo, outros ao abordarem as imediações da sua casa constataram que os seus bolsos ou não tinham chaves, ou comportavam uns chaveiros diversos daqueles que habitualmente reconheciam e manuseavam.
Também não é preciso ter grande memória para nos situarmos no tempo, um tempo sem telemóveis – com a excepção daqueles caixotes experimentais, fixos nos automóveis e que na maioria das vezes só exteriorizavam uma chiadeira inaudível. Havia sempre a solução de uma cabine pública próxima estar operacional, mas ministro anda normalmente sem moedas no bolso. Para além disso, muitos viviam sozinhos.
Salvaram-se os poucos que dormiam em hotéis ou os que tiveram um vizinho comiserioso que ficou honrado por ser acordado por um condómino ilustre e tudo fez para ajudar a desenrascar a situação.
Mas essa não é a parte simpática, que imortaliza o episódio.
Essa é a dos que tiveram de ir dormir à hospedaria mais próxima e até a de um ministro que baqueou de cansaço à porta da sua torre de apartamentos, trancando o carro e adormecendo como um anjo, mal esticado no banco de trás.
Reza a história que foi acordado pelas 7 da manhã por uma surpreendida empregada doméstica a bater no embaciado vidro do carro. Consta que a pobre senhora não acreditou na versão atrapalhada e ensonada do envergonhado e desgrenhado membro do Governo.
Mas tudo está bem quando acaba bem. Não houve zangas familiares graves e muito menos divórcios, nenhum polícia de turno surpreendeu quem se socorreu do seu veículo para um cochilinho e na semana seguinte reeditou-se o jantar normal, com as fardas já devidamente trocadas e no corpinho dos seus legítimos usuários.
Com uma única alteração. Todos arranjaram forma de lhes somar um pequeno, discreto e escondido adereço identificativo, que fizesse a profilaxia de outra noite ao relento.