Como está o setor automóvel?
Está mau, porque os números que temos disponíveis até este momento mostram uma queda de 34% no primeiro semestre, quando comparado com o primeiro semestre de 2019, o que mostra uma situação muito difícil para os concessionários e para um setor que não teve qualquer apoio, nomeadamente, em termos de estímulo à procura, como tiveram outros setores e muito bem. E comparamos com 2019, porque não é possível fazê-lo com 2020, por ter havido um período de lockdown e não pode ser comparável.
Mas os últimos dados da ACAP apontavam para um crescimento de 18,1% nos primeiros sete meses…
Sim, mas esse crescimento compara com 2020, o que não se deve fazer, porque durante um mês e meio as fábricas estiveram fechadas devido à pandemia. E, apesar deste ano continuar a haver pandemia e de termos assistido no início do ano a um lockdown, achamos que a comparação tem de ser feita com 2019, porque é o ano normal antes da pandemia e também é assim que os outros países estão a fazer.
Quando vamos poder atingir valores pré-pandemia?
Estimamos que a partir do próximo ano se consiga atingir os valores de pré-pandemia. Pelo menos, é a nossa expectativa face aquilo que temos disponível.
A pandemia levou à não decisão de compra ou foi só porque os stands estiveram fechados?
Deveu-se a um conjunto de medidas. Esta crise pandémica teve impacto em toda a economia, mas houve setores mais afetados que outros. O setor do turismo e do alojamento foi diretamente afetado com a impossibilidade de deslocação, mas o setor automóvel surge logo a seguir, até porque somos um país onde o turismo – e muito bem – tem um forte peso.
E essa quebra também influenciou o setor do rent-a-car, ao assistirmos, só no ano passado, a uma redução de mais de 70% de vendas para este segmento, criando também um problema para o setor automóvel. Isto tudo junto levou a que o automóvel em Portugal e em outros países fosse também um dos setores mais afetados e prejudicados com a crise, levando a esta redução da procura de veículos novos.
No entanto, os portugueses conseguiram poupar mais…
Os portugueses que mantiveram o seu trabalho pouparam mais, mas depois não nos podemos esquecer da questão da confiança, porque não sabem como é que vai ser o dia de amanhã e o automóvel é o investimento mais elevado das famílias a seguir à habitação.
Portanto, os portugueses com expectativas negativas quanto ao futuro e quanto à evolução da pandemia – que agora felizmente parece estar a melhorar – leva as pessoas a terem alguma retração no que diz respeito à procura de automóveis novos.
E depois temos as empresas, que, como também não sabem muito bem o que se vai passar, acabam por adiar as suas decisões e isso afeta de algum modo a procura. E agora vem a questão do fim das moratórias, que também vai impactar bastante o setor de forma negativa.
O nível de incerteza continua muito elevado…
O que os outros países fizeram foi criar estímulos, nomeadamente o incentivo ao abate de veículos em fim de vida e outro tipo de medidas como incentivos para a renovação do parque automóvel, aproveitando esta crise não só para reduzir as emissões como também para estimular a procura por veículos novos, de baixas emissões ou de emissões zero.
E o mercado de usados?
A indicação que temos, embora estatisticamente não tenhamos dados tão comparáveis, é que, no ano passado, o mercado de usados reagiu de forma mais positiva, ou seja, houve uma maior procura. E isso deveu-se muito ao facto de as pessoas por causa da pandemia preferirem usar mais o transporte individual.
Falou na crise dos rent-a-cars. Esses automóveis não vão para o mercado de usados?
Não, porque no ano passado e no início deste ano, com a quebra que o rent-a-car registou em função da queda do turismo, o que aconteceu é que não se venderam esses carros novos para esse segmento que depois viriam para o mercado de usados ao fim de um período de utilização.
E em relação aos carros elétricos?
Têm vindo a ganhar terreno paulatinamente. Já não somos dos países da Europa com maior penetração, estamos até um bocadinho abaixo da média europeia, mas, em termos de incentivos, o valor mantém-se. Também aqui poderia haver uma atualização do valor como houve em outros países até a propósito da crise, mas de facto não houve. Ainda assim, tem havido um aumento das vendas, o que é positivo.
Qual é a quota de mercado?
Anda nos 5%. Depois há os híbridos plug-in. Essa é também a média da União Europeia, mas para haver uma redução das emissões tem de haver um aumento das vendas, porque, de outra forma, não se atinge os valores que a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu querem alcançar nos próximos anos.
Acha que os incentivos para os elétricos vão-se manter no próximo Orçamento?
O ministro já disse que sim, mas estes incentivos esgotam-se rapidamente. O que propusemos, e foi o que fez Espanha e outros países, é que a propósito da crise e da necessidade de descarbonizar houvesse um esforço em aumentar o valor do incentivo e o número de veículos a abranger. Isso também poderia ser feito em Portugal. Aliás, este ano foi descontinuado o incentivo para veículos de ligeiros comprados por empresas, o que até desincentiva a compra.
Outro problema diz respeito à autonomia.
Mesmo com incentivos, os elétricos são ainda mais caros do que o modelo convencional, o outro problema é a rede de carregamento. Ainda assim, muito se tem feito, mas há muito ainda a fazer. Pela primeira vez, a Comissão Europeia tem uma medida que impõe uma meta que se pedia há muito que é de ter mais pontos de carregamento por país. Até aqui, cada país fazia o que entendia. Agora, já há uma proposta de uma medida de haver pontos mínimos por país e por distância e isso será positivo de certeza.
Recentemente assistimos a uma demonização dos carros a gasolina e a gasóleo. Já passamos esta fase?
Acho que sim e temos que a ultrapassar. Temos carros elétricos, híbridos plug-in, híbridos a gasolina e a gasóleo de baixas emissões e isso é que importante em todo este processo.
Mas temos assistido à queda de vendas dos carros a gasóleo…
Têm vindo a descer as vendas em toda a União Europeia para os chamados eletrificados, porque é essa a tendência na Europa.
Os preços elevados dos combustíveis também ditam essa tendência?
É um delta importante e, mais uma vez, quando comparamos com Espanha ficamos sempre pior na fotografia, porque em Espanha há uma menor dependência fiscal.
Mas há quem diga que os elétricos poluem mais.
Portugal está bem posicionado, porque temos uma grande componente de energias renováveis e isso é importante na produção de energia, pois significa que temos uma energia mais limpa, o que é um fator competitivo e diferenciador em relação a outros países.
A dupla tributação que continua a existir também não ajuda o setor.
Não ajuda nada o sistema fiscal. Já falámos com o Governo para a necessidade de se fazer, de uma vez por todas, uma revisão da fiscalidade que incida sobre o automóvel. Este é um tema já antigo e, desde a reforma de 2007, que se tem vindo a falar que é necessário retirar carga fiscal no momento da compra do veículo. T
Temos uma carga fiscal sobre o momento da compra elevado e era altura de a retirar. É uma ideia com alguns anos, mas aguardamos que o Governo, passada toda esta situação de crise, se debruce sobre essa matéria e dê ao automóvel a atenção que merece e que não tem tido por parte do Governo.
A ACAP tem vindo a pedir um plano para apoiar o automóvel…
Insistentemente pedimos esse plano no ano passado, conversámos com o Governo, que ouviu as nossas posições, mas depois não conseguiu implementar esse programa. Mas não é por não nos ter ouvido ou por não termos falado. O Governo não teve capacidade ou não quis implementar qualquer plano para o setor automóvel, o que é lamentável, porque os Governos espanhol, francês, italiano fizeram-no, sem problema nenhum. O nosso Governo não o fez, o que nos deixou numa situação difícil face aos outros países que são nossos vizinhos.
E não o fez por não considerar este setor prioritário?
Há aqui uma contradição, porque a indústria automóvel é o principal setor exportador do país e, como tal, o Governo poderia dedicar uma maior atenção ao automóvel na sua globalidade: setor automóvel, fabrico, montagem, fabrico de peças e componentes e venda de automóveis.
É este o cluster automóvel que temos e achamos que o Governo não tem dado a devida a atenção a um setor que é exportador, que contribui com receitas fiscais como nenhum outro setor do país o faz e isso não tem sido tido em conta.
Ao contrário do que acontece com o Governo espanhol, ou francês e italiano – que avançaram com medidas que acompanhámos atentamente com os nossos congéneres –, o Governo português não deu nenhuma atenção ao setor automóvel como deu a outros setores económicos e, ainda bem que deu, mas gostaríamos que o setor automóvel também tivesse uma atenção por parte do Governo como têm outros setores da economia. Isso não aconteceu e lamentamos que tal tenha acontecido porque é um setor com uma grande importância na economia.
Daí já ter falado em persona non grata?
É quase um setor persona non grata porque contribui com um quinto das receitas fiscais. É o principal setor exportador do país e nunca vimos da parte dos governantes a atenção que merece.
Na última entrevista afirmou que, se não houvesse um plano de retoma para o setor, muitas empresas iriam encerrar. Já tem esses dados?
Não há dados concretos, mas temos consciência de que, não tendo havido esse plano, é com grande esforço que as empresas, sobretudo os concessionários, as marcas automóveis mantêm a sua atividade e os postos de trabalho. Em relação aos postos de trabalho, o Governo estabeleceu um plano de apoio à sua manutenção e isso de algum modo contribuiu para que se mantivessem para que as empresas continuassem a laborar à espera que a crise seja ultrapassada. Há empresas em sérias dificuldades económicas.
O layoff deu algum estímulo?
Sim. No ano passado, o layoff foi um balão de oxigénio muito grande, caso contrário teria sido muito mais complicado o processo para as empresas. O layoff foi de facto positivo e através da Confederação do Comércio acompanhámos bastante bem todo esse processo, mas a verdade é que o setor precisaria de um estímulo próprio como tiveram outros setores e este em outros países.
Até a Comissão Europeia recomendou nas suas deadlines dos PRR um plano de apoio à renovação dos parques automóveis, mas que não ficou consagrado no PRR português. O Governo não teve isso em conta e não previu uma verba própria para isso.
Uma das críticas que é feita é que a maioria da verba do PRR vai para a Função Pública…
Exato. Pedimos em conjunto com a nossa associação congénere espanhola, em setembro do ano passado, ao primeiro-ministro português e ao primeiro-ministro espanhol, medidas específicas para o setor. Sabemos que o tema foi objeto de análise na cimeira luso-espanhola que decorreu na Guarda, em outubro passado.
Em meados de novembro, o Governo espanhol anunciou que uma percentagem do PRR seria para este setor em específico: automóvel, indústria automóvel e renovação do parque. O Governo português até hoje não nos respondeu à carta. É a diferença de tratamento entre Portugal e Espanha. Nem sequer nos ouviu sobre o PRR, o que é lamentável, mas o Governo faz aquilo que acha melhor.
Sem falar da carga fiscal…
Exatamente, em que existe um diferença abismal entre Portugal e Espanha em relação ao que pagam os portugueses face ao que pagam os nossos vizinhos espanhóis.
E como está a produção automóvel?
Temos agora a braços a crise dos chips. Tivemos um crescimento face ao ano de 2020, mas também não se pode comparar, porque no ano passado houve uma situação de encerramento total de fábricas durante quase um mês e meio, mas estamos bastante abaixo face a 2019. Em junho face ao mês homólogo há uma descida de 30%, mas que se deve muito à crise dos chips.
Há quem aponte que um carro comprado hoje só poderia ser entregue em 2022…
Depende de marca para marca, também depende do modelo. Mas sabemos que estão a existir sérias dificuldades e constrangimentos por causa dos chips. É um problema que tem de se resolver. Sabemos que a União Europeia apostou muito para resolver esta questão e os EUA também investiram uma verba muito significativa para apoiar, mas enquanto não tiver resultados no terrenos teremos de conviver com esta situação.
Seria importante atrair novas empresas de fabrico automóvel?
É um tema recorrente, porque Portugal tem um verdadeiro cluster automóvel. Temos formação específica de vários institutos superiores para esta área. Temos do melhor da engenharia automóvel que há no mundo e temos também um setor que é muito importante que é o de fabricantes de componentes que é muito dinâmico.
Portanto, a atração de investimento estrangeiro é sempre um aspeto prioritário, mas para isso é necessário que o Governo dê uma atenção ao automóvel muito específica como dá o espanhol, para não ir mais longe, e em Portugal não notamos que tenha sido assim. E isto é realmente uma condicionante muito grande.
Poderia passar por incentivos fiscais?
Há uma série de pacotes que poderiam ser lançados, mas um país que ignora a renovação do parque automóvel como o Governo português faz, um país que não altera o sistema fiscal e é mais penalizador, não cria o ambiente propício ao investimento nesta indústria. Apesar de tudo, temos inúmeros projetos de investimento anunciados, não só no fabrico e na montagem, mas também naquilo que é a parte do conhecimento.
Há vários construtores que têm projetos em Portugal na área de engenharia e com empresas portuguesas que dão emprego a milhares de jovens portugueses. O investimento continua a existir e vem dar massa crítica ao país. É o caso de centros de conhecimento que daqui trabalham para toda a indústria automóvel. Às vezes não é visível porque não se montam carros, mas continua a existir essa aposta. Caberia ao Governo português ser mais amigo do automóvel, sei que é uma expressão vulgar, mas é necessário dar uma atenção maior a este setor que é o principal exportador e pagador de impostos.
Espera que o Governo seja ‘amigo’ no próximo Orçamento do Estado?
Tendo em conta os últimos anos, o que esperamos é que não haja surpresas desagradáveis de última hora, como tem acontecido, sobretudo no ano passado, na aprovação do Orçamento. A nossa expectativa não só não é elevada para reformas que consideramos positivas, como a nossa atenção está mais focada em tentar ver se não há qualquer medida prejudicial para o setor. No ano passado, fomos surpreendidos com a questão, por exemplo, dos híbridos no final da aprovação do Orçamento na generalidade. Isso é o que tememos porque é sempre um risco quando se discute o Orçamento.
Os híbridos perderam os incentivos…
Criaram mais dificuldades para a obtenção de incentivos aos plug-in e em relação aos híbridos – chamados convencionais – não conseguem cumprir tecnicamente as exigências que foram colocadas na lei. Perderam os benefícios e todos passaram a pagar a 100% o imposto, quando são carros que face à mesma versão a gasolina, por exemplo, têm uma emissão de CO2 muito menor. Isso é uma situação que também é um pouco contraditória.
Vão voltar a pedir o incentivo ao abate?
Essa proposta continua em cima da mesa. Temos falado com o Governo, quer com o Ministério da Economia, que é a nossa tutela, quer com o Ministério das Finanças, com quem temos mantido um diálogo aberto, e não há falta de propostas nossas. Até são bem recebidas, mas a concretização é que não tem acontecido.
E qual seria o valor desejável?
Achamos que o Governo poderia apresentar um valor à volta dos 2.000/2.500 euros, porque já era um incentivo para as pessoas poderem dentro de certas condições entregar o seu carro velho para abate e comprar um novo de baixas ou de zero emissões. Há estudos que foram feitos sobre essa matéria e está provado que se poderia tirar um carro que emite em média 170 gramas e substituir por um novo com as vantagens que daí advêm para o ambiente.
Essa medida não teria impacto nos cofres do Estado?
Não, porque poderia haver um retorno para o Estado, já que depois receberia pagamentos de IVA, IUC e outro tipo de impostos. Além disso, seria uma medida que poderia contribuir para a descarbonização. É sem dúvida uma medida que teria um retorno económico.
Como vê a polémica em torno dos carros importados, em que o fisco é obrigado a devolver o IUC?
O facto de não haver uma harmonização fiscal na Europa leva a estas diferenças de carga fiscal de uns países para os outros e havendo circulação livre de veículos, de pessoas e bens entre os Estados é natural que haja sucessivamente esses conflitos com a Autoridade Tributária, que umas vezes ganha, outras vezes perde. Aquilo que deveria haver era uma harmonização dos impostos nos vários Estados-membros para que os cidadãos pagassem a mesma carga fiscal e isso evitaria haver este tipo de contradições entre Estados.
E cria o precedente para que outros contribuintes também reclamem.
Sem dúvida.
Mas a ACAP é uma das principais vozes críticas em relação à importação de carros por considerar que envelhece ainda mais o parque automóvel.
Achamos que o envelhecimento do parque automóvel é um problema que temos e, se entram muitos carros com uma idade média de quatro ou cinco anos ou que se dê incentivos a carros com mais de dez anos, pode pôr em causa a renovação do parque automóvel. Se houvesse uma harmonização da fiscalidade já a situação se regularizava em termos europeus.
Qual é a atual idade média do parque automóvel?
Dos ligeiros de passageiros é 12.8 anos. Está acima dos 10 anos, que é o limite que se considera para um parque ser considerado em condições, seguro e ambientalmente correto. Se não houver renovação do parque e se entrarem carros no mercado nacional com quatro ou cinco anos vai envelhecer ainda mais.
Como vê a apostas das ciclovias? Põem em segundo plano os carros?
Como indústria automóvel, achamos que tem de haver uma certa co-habitação nos grandes centros urbanos entre o que é o interesse do automóvel, o interesse do peão e o interesse do ciclista. Sempre concordamos com a ideia de haver ligações e parques dissuasores para transportes, agora a perseguição pura e dura ao automóvel no sentido de restringir fortemente a sua circulação não concordamos, porque o automóvel é fundamental para a mobilidade e tem sido prejudicado.
As pessoas não andam nas cidades a passear, andam a trabalhar e têm de se deslocar. Nem todos andam de bicicleta. Nasci no meio de Lisboa e não andava de bicicleta porque não havia condições numa cidade com tantas colinas. Tem de haver uma atenção para todas as personagens que utilizam a via pública: peões, ciclistas e automobilistas para que possam co-habitar e as câmaras têm de ter essa ponderação.
E deveriam pagar imposto?
Pagamos muitos impostos e não queremos que outros paguem mais. Mas se calhar era uma forma de redistribuir a carga fiscal, desde que baixassem em outros setores.