Portugal vai ser um dos primeiros países do mundo a conseguir atingir a fasquia de 85% da população vacinada – por agora com a primeira dose. Está por dias e acontece em cima do regresso de milhares de alunos às escolas, muitos deles, adolescentes, também já com a primeira dose da vacina. Apesar da adesão massiva, a ideia de imunidade de grupo na população é afastada mesmo por quem chegou a admitir que, se o país chegasse a um patamar muito elevado de vacinação, o conceito poderia aplicar-se ao SARS-Cov-2 como acontece com o sarampo – em que 95% de população vacinada são um escudo contra surtos. Ao Nascer do SOL, o epidemiologista Manuel Carmo Gomes admite que é o seu caso: «Deixei de acreditar que o possamos conseguir nos próximos anos. Antes de termos uma situação controlada a nível global, e estamos longe disso, será muito difícil pensar em interromper a circulação do vírus. Por outro lado, estamos cada vez mais a perceber que as vacinas são eficazes contra a infeção, mas menos do que acontecia com a variante Alpha em que garantiam uma proteção de 80%/90%. Com a variante delta, temos uma proteção de infeção na casa dos 50%, sendo que tem uma contagiosidade muito elevada, comparável à de vírus que todos apanhamos, como a varicela».
Com o outono à porta, Carmo Gomes admite que existem pontos de interrogação sobre como vai evoluir a pandemia mas também a expectativa de que a proteção conferida pelas vacinas permita manter a epidemia controlada em Portugal e evitar uma forte sobrecarga nos serviços de saúde. Com alguma preocupação: o ponto de partida é menos folgado do que há um ano, quando o outono e abertura das escolas foram acompanhados de um recrudescimento da epidemia.
A 1 de setembro de 2020, estavam internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde 350 doentes com covid-19, 44 em cuidados intensivos. No final de setembro, seriam quase o dobro e no final do mês seguinte cinco vezes mais, quase 2 mil. Agora, o país está com 681 doentes com covid-19 internados nos hospitais, uma pressão que se manteve relativamente estável ao longo do verão e com 136 doentes em UCI, mais do que no início de outubro do ano passado.
Esta semana, o Ministério da Saúde apresentou às ordens profissionais as linhas orientadoras para a resposta no outono/inverno, que mantêm a lógica do anterior, mas o plano final ainda não foi divulgado. Como o i noticiou, há três cenários como pano de fundo, todos a apontar para meses de pressão no SNS, moderada caso não se verifique um aumento da transmissibilidade ou uma redução rápida da efetividade das vacinas.
Carmo Gomes considera que, com uma média de infeções diárias na casa dos 2 mil casos, o país parte para o outono com uma incidência mais elevada do que seria desejável, mas com uma percentagem elevada da população vacinada, o que proporcionalmente se traduz em menos casos graves e óbitos face ao que aconteceria com este nível de circulação do vírus no ano passado. Basta ver que que na primeira semana de setembro do ano passado o país estava com uma incidência de 45 casos por 100 mil habitantes a 14 dias e agora está acima dos 300. E mesmo com as vacinas, este verão, com muito mais infeções do que o verão passado, acabou por registar mais mortes relacionadas com a covid-19. Em julho e agosto morreram 656 pessoas infetadas no país, a maioria idosos. No ano passado, os mesmos meses, registaram-se 240 mortes associadas à covid-19.
Com o cenário de zero casos e zero mortes afastado, Carmo Gomes sublinha que o país está a entrar uma numa situação de endemia, em que será preciso manter a vigilância epidemiológica mas sobretudo a «disciplina» para tentar evitar perturbações no dia a dia, desde logo nas escolas. «A Direção Geral de Saúde aprovou regras muito cautelosas, o que continua a ser muito importante, nomeadamente o uso de máscaras em espaços fechados. Todos os países que se atreveram a libertar mais esse tipo de medidas tiveram problemas, desde logo o Reino Unido que está com um forte aumento de casos», diz.
Para o especialista, a questão do uso de máscaras ao ar livre, que o Parlamento terá de apreciar até dia 12 de setembro e que deverá cair, não é muito significativa. «Nunca fui um grande defensor do uso de máscara ao ar livre, a menos que estejamos a falar de grandes ajuntamentos ou situações em que as pessoas não conseguem manter a distância. A questão da transmissão coloca-se essencialmente nos espaços fechados», sublinha. Aqui, a recomendação mantém-se e Carmo Gomes sublinha que esta deve ser uma das principais preocupações das escolas. «Penso que é algo em que será positivo que os pais se envolvam, pressionando as escolas para que, se possível, exista um bom arejamento. Enquanto o tempo permitir, mantendo janelas abertas com uma pequena corrente de ar. Quando não for possível, tentar garantir que pelo menos antes de os alunos entrarem nas salas existe um arejamento.» Já quanto à flexibilização das regras de isolamento quando houver um caso positivo numa turma (em vez de irem todos os alunos para casa, poderão continuar com teste negativo), Carmo Gomes considera positivo, sublinhando que a avaliação caberá às autoridades e terá de haver bom senso. «Se forem dois casos numa turma, é uma coisa, se for um terço da turma infetada será outra».
Tendência é haver um aumento de infeções. E só um teste no arranque das aulas terá pouco efeito
Nos países onde as aulas estão a começar, a preocupação é semelhante: com mais contactos em espaços fechados, é provável que a circulação do vírus aumente. O alerta ouviu-se esta semana no Reino Unido ou em Israel, onde os alunos voltam à escola com a recomendação de testagem regular.
Em Portugal, o Governo aprovou uma operação massiva de testagem para professores, auxiliares e alunos do 3º ciclo e secundário, que está previsto acontecer a partir da próxima semana, autorizando uma despesa de 11 milhões de euros em testes. Um «varrimento inicial» que a Direção Geral da Saúde justificou com a necessidade de «quebrar qualquer cadeia de transmissão do vírus que possa ‘invadir’ o ambiente escolar». Para Carmo Gomes, a medida poderá ter efeito na primeira semana, mas pouco mais, pelo que não deve haver uma excessiva confiança na mesma. «Ou é algo a que se dá continuidade, ou o efeito benéfico vai-se diluindo. Os testes rápidos, para serem eficazes, têm de ser feitos duas vezes por semana», diz, admitindo a dificuldade e o custo de operacionalizar um programa desse género. «Não é claramente nisso que me estou a fiar para segurar a epidemia. Penso que a única forma de o fazermos será a nossa disciplina quotidiana e por muito tempo, manter a higiene, a questão do arejamento e quando houver sintomas que possam ser de covid-19, que com a variante delta são até muito idênticos aos de uma constipação, não levar as crianças para a escola ou não ir trabalhar», continua.
«O mais normal será todos apanharmos o vírus»
Sem imunidade de grupo e com a circulação endémica a confirmar-se, com maior incidência nos meses frios, Carmo Gomes sublinha que o mais normal e até desejável, para ir reforçando a imunidade, será a população, agora quase toda vacinada, indo tendo contacto com o vírus. Mas põe de parte a ideia de o isolamento acabar este inverno, da mesma forma que todos os anos milhares têm em gripe sem serem obrigados a estar em casa. «O facto de todos nós irmos tendo contacto com o vírus tem um efeito positivo, que é haver um reforço da imunidade. Por outro lado, sabendo que estamos vacinados, a probabilidade de ter a doença na forma de uma simples constipação é maior», explica.
Ainda assim, neste primeiro outono/inverno com vacinas, em que se tenta perceber a evolução da epidemia, o especialista considera que seria pouco prudente deixar o vírus circular sem qualquer restrição e num espaço de curto de tempo, o que levaria a uma pressão «tremenda» nos serviços de saúde. Que, tal como a população, terão também de aprender a lidar com uma nova doença que não vai embora.
A ideia de que nos próximos anos será impossível uma eliminação do vírus por via da vacinação e que o vírus continuará a circular, causando infeção e reinfeção mesmo entre vacinados, leva Carmo Gomes a considerar que uma vacinação universal com uma terceira dose pode ser ineficaz, por serem necessários contínuos reforços, devendo os reforços serem canalizados para quem mais pode beneficiar, enquanto os menos vulneráveis os obtêm pela via natural. Como na gripe.
Esta semana, a Direção Geral da Saúde aprovou uma dose adicional da vacina da covid-19 para doentes imunossuprimidos, seguindo as recomendações a nível europeu. Carmo Gomes, que pertence à comissão técnica de vacinação, adianta ao Nascer do SOL que a ideia de um reforço da vacina universal ou mesmo para todos os idosos não está para já em cima da mesa, mas a equipa está a analisar grupos populacionais específicos que, por maior exposição e complicações de saúde, possam beneficiar de uma terceira dose. Deverá ser o caso de idosos que residem em lares ou utentes de cuidados continuados, por exemplo. Carmo Gomes explica que o trabalho que está a ser feito visa perceber, mais do que se as pessoas têm ou não anticorpos específicos para o Sars-Cov-2, em que grupos populacionais existe uma maior frequência de doença grave, internamentos e óbitos mesmo com a vacina. «Aquilo em que a vacinação é mais eficaz é na proteção de doença grave e é nisso que temos de apostar».