Q uem escrutinasse a minha biblioteca há dois anos ou três anos encontraria vários livros com papelinhos a despontar entre as páginas.
Se os tirasse da estante e os abrisse, veria esses papelinhos preenchidos por apontamentos, notas de leitura, transcrições – às vezes tantas e tão profusas que chegavam a fazer com que o livro ‘engordasse’ um pouco.
Até que encontrei numa papelaria antiquada um pequeno arquivador de plástico, uma pasta preta com divisórias e etiquetas. E os papelinhos saltaram para aí. Quando deixaram de caber no arquivador, distribuí-os por envelopes devidamente identificados. ‘Chernobyl’; ‘Fryderik Chopin’; ‘Napoleão’; ‘A vida quotidiana no Antigo Egipto’. Atualmente guardo-os numa caixa de bolos comprida, que originalmente trazia um duchesse de grandes dimensões. Por enquanto vai chegando para as encomendas.
A ssim, sempre que preciso de fazer uma pesquisa sobre um tema qualquer que já tenha estudado, abro a caixa dos bolos e tenho à mão tudo o de que preciso.
Mas há um problema: estas anotações obsessivas roubam-me tempo precioso de leitura. Há dias fiz as contas: cada página A5 bem preenchida leva-me cerca de meia hora. Será que posso dar-me ao luxo de perder tantas horas nesta atividade de monge copista? Não é raro sentir que estou metido numa espécie de prisão da qual não consigo libertar-me.
Que saudades da época em que ler era uma atividade puramente lúdica, em que me limitava a usufruir de um livro sem preocupações!
Durante anos foi assim. Só que, à medida que o interesse pela literatura se aprofundava, essa atitude passiva foi dando lugar a uma leitura mais inquisitiva. Esporadicamente comecei a assinalar passagens que achava especialmente bem escritas, a fazer pequenos índices, a sublinhar frases ou parágrafos interessantes, a corrigir pequenos erros tipográficos.
Até que um dia dei por mim a fazer longas transcrições para eventualmente usar mais tarde.
Nesse processo, os apontamentos tornaram-se quase uma obsessão – às vezes lembro-me daqueles japoneses que vão a Veneza ou a Roma e só estão preocupados em tirar fotografias.
Não serei o único. Um dia destes deparei-me com uma belíssima entrevista ao El País em que o grande crítico George Steiner, ao perguntarem-lhe o que era um judeu, se saía com esta definição: «O judeu é um homem que, quando lê um livro, o faz com um lápis na mão, porque tem a certeza de que pode escrever um outro melhor».
No meu caso, sempre achei que ia tirando apontamentos para dar algum sentido de permanência a uma atividade passageira. Ao contrário do que diz Steiner, não tenho a certeza de que escreverei um livro melhor do que aqueles que leio. Mas, bem vistas as coisas, talvez o facto de ler com o lápis em riste queira dizer que ainda não atirei a toalha ao chão.