Em circunstâncias normais, a publicação de um livro de crónicas nada teria de especialmente assinalável. Trata-se, no fim de contas, de resgatar do esquecimento, organizar e dar uma forma mais ‘encorpada’ a um conjunto de textos que poderiam até considerar-se ‘menores’ na obra de um autor. Tendo em conta que esses textos já conheceram publicação anterior, toda a iniciativa pode emanar o odor a requentado de uma refeição que já foi servida à mesa. Parece apenas uma forma de prolongar-lhes o prazo de validade.
No caso de As Crónicas de António Lobo Antunes (n. Lisboa, 1942), agora editadas pela D. Quixote, essa desconfiança poderia ser ainda mais fundada, dado que, dos 173 textos que reúne, a quase totalidade já tinha sido publicada em livro (apenas nove são inéditos).
E, ainda assim, dificilmente poderíamos imaginar a publicação de um volume mais rico, envolvente e capaz de nos interpelar – seja de que género for, seja em que língua for. Esta antologia de 600 e poucas páginas é para o leitor fonte constante de descoberta e deslumbramento.
Poderíamos começar por ilustrá-lo com um episódio de infância do autor aqui descrito. «Acho que a coisa mais importante que me aconteceu na vida foi uma viagem de cerca de um mês, a Itália, com o meu avô. O meu avô guiava e eu sentado ao lado dele, com um volante de plástico, fingia que guiava também. O carro era um Nash encarnado. O meu volante de plástico tinha, ao centro, uma bola de borracha. Apertando a bola emitia um som que na minha fantasia era uma buzina. O barulho do motor arranjava-o com a boca, de forma que não havia dúvidas de ser eu quem conduzia o automóvel. De vez em quando o meu avô fazia-me uma festa no pescoço. É engraçado mas ainda sinto os dedos dele».
As recordações mais ou menos longínquas – a casa dos pais, a Benfica da sua meninice, a passagem pela guerra de África entre 1971 e 1973, o hospital Miguel Bombarda, onde deu consultas até 1985 («mistura de filme de Fellini com o casarão da minha avó»), os amigos como Cardoso Pires, Artur Semedo ou Melo Antunes – são a matéria-prima de alguns dos textos mais brilhantes e comoventes. Lobo Antunes não parece precisar de mais do que escavar ou pescar no poço da memória para retirar, umas atrás das outras, histórias e personagens que brilham como pedras preciosas.
Outra matéria-prima privilegiada dos seus textos são os lugares e as pessoas humildes – ou mesmo rejeitadas. As coisas insignificantes, a que ninguém liga, mas a que ele confere um especial significado. «Demorava-me à tarde na oficina do sapateiro senhor Florindo, a bater sola, num cubículo rodeado de cegos sentados em banquinhos baixos, envolta no cheiro de cabedal e miséria que se mantém o único odor de santidade que conheço».
E, por fim, está lá quase sempre a presença da morte a rondar, a insinuar-se, a entranhar-se aos poucos nas coisas até acabar por capturá-las. «Chega uma altura em que a morte principia a conviver com a gente, se torna diária, íntima, existe no espelho da barba, nos nossos gestos, no modo de meter a chave à porta, entrar em casa, acender a luz, o sofá e os móveis de repente ali e a morte ao nosso lado, caladinha, usando o nosso corpo, a nossa tosse, a nossa voz, a pesar-nos por dentro», escreve em ‘Chega uma altura’.
Importa chamar a atenção para este aspeto pouco notado: embora Lobo Antunes de algum modo a tenha ‘renegado’, a sua formação em Medicina não deve ser alheia a esse conhecimento íntimo da morte, da doença, da tosse, dos humores do corpo e da sua anatomia.
Talvez algo de muito idêntico se tenha passado em relação à psiquiatria. Declarou por mais de uma vez a inutilidade desta disciplina – mas a sua escrita tem quase sempre algo de catarse. É o velho aforismo que se encontrava à entrada do templo de Delfos: ‘Conhece-te a ti mesmo’. Cada crónica podia ser o monólogo de um paciente a discorrer sobre a vida recostado no divã.
A propósito, atente-se neste título: ‘Crónica escrita em voz alta como quem passeia ao acaso’. Aqui afirma, sem rodeios nem receio de ferir suscetibilidades:«Talvez o Miguel Bombarda tenha de facto sido um grande maluco mas eu fui muito mais doido ao acreditar nos psiquiatras […] nos antipsiquiatras, nos psicanalistas, nos psicólogos, nesse enxame de patetas enfáticos erguendo das cabeças dos outros pomposos castelos de cartas e teorias sem humor».
E remata com: «Hoje acredito em pouca coisa. Não acredito nos psicanalistas nem nos intelectuais, mas acredito na Isabel [filha] quando diz: Gosto muito de si pai», uma passagem que parece ecoar um verso de Simon and Garfunkel (de cujas canções e poemas Lobo Antunes é, aliás, apreciador confesso):«I stand alone whithout beliefs, the only truth I know is you» (‘Estou sozinho e não acredito em nada, a única verdade que conheço és tu’, ‘Kathy’s Song’).
O seu rosto em cada página
Outra casta em que Lobo Antunes diz não acreditar, como vimos, é a dos intelectuais. Isso transparece no seu estilo despretensioso, sem pomposidade nem heroísmos, moderno mas sem modernices. Possui um virtuosismo próprio, uma honestidade que vai ao fundo das coisas e consegue que as palavras e o real se confundam, que haja uma identificação perfeita entre os nomes e as coisas. «Mesmo para parecer que não se tem técnica é preciso técnica», dizia Susan Sontag, e o trabalho oficinal de Lobo Antunes tem esse grande mérito de não alardear as suas qualidades, de não ser exibicionista.
Essa atitude está bem expressa em ‘O grande Borges’: «Não me importa o que visto, o que como, nunca bebi, não vou a jantares e devo ser aborrecidíssimo porque não me aborreço. Em criança brincava quase sempre sozinho: continuo a brincar sozinho dentro da minha cabeça, assistindo às coisas que se fazem e se desfazem continuamente nela».
Textos como ‘O grande amor da minha vida’, ‘A véspera de eu morrer estrangulada’ ou ‘A Feira Popular’ – na nossa opinião os menos interessantes, pelo exagero caricatural – mostram que nem tudo aqui é autobiográfico.
Ainda assim, este volume oferece, mais do que um vasto manancial para uma biografia, um retrato de corpo inteiro. Não são apenas as recordações do bairro e da infância, as histórias familiares, as memórias dolorosas de África, dos instantâneos do Miguel Bombarda, e ainda o que revela sobre os seus romances e a escrita (diz que desde os 13 anos que queria ser escritor e que começou por fazer piedosos sonetos a Cristo porque a avó lhe dava uma nota de vinte escudos por eles). Além desses aspetos factuais da sua vida, Lobo Antunes derrama-me em cada frase, é o seu rosto que vemos em cada página. E cada descrição do mundo onde se movimenta acaba por transmutar-se numa paisagem interior.
Uma das melhores e mais atmosféricas surge em ‘Sugestões para o lar’: «Os domingos cinzentos desbotam para dentro de nós: a luz do candeeiro doente, uma chuva doente, sons em bicos de pés numa cerimónia de velório. Alma molhada e cabisbaixa como um cão. Vontade de revistas velhas, livros antigos, jornais da semana que passou. Os cheiros mais presentes: o do tapete, o da roupa nas gavetas, o do almoço dos vizinhos no patamar. As laranjas da fruteira tentam em vão inaugurar a manhã. Vontade de mantas nos joelhos, uma paciência de cartas, Chopin em discos de setenta e oito rotações com os saltos da agulha a fazerem parte da música: a cada voltinha um soluço rachado aumentando a melancolia do piano. Lembrança de bules chineses, de velhos açucareiros de prata no armário com portas de vidro».
O escritor difícil, porventura intratável – «sou feito de cardos e há palavras que xei secar dentro de mim ou a vida secou» –, coexiste com o homem de uma sensibilidade rara, proustiana. Oque resulta numa mistura intrigante de franqueza brutal e ternura, de rudeza e docilidade, que dá à sua escrita o seu encanto inimitável.
‘O António é esquisitíssimo’
Apontámos como uma das características decisivas – poderíamos mesmo chamar-lhe uma das traves-mestras – destes textos a preferência revelada pelos lugares e as pessoas humildes ou até aparentemente insignificantes.
As tias de António Lobo Antunes não compreendiam esse traço da personalidade do sobrinho que se manifestava já em pequeno: «OAntónio é esquisitíssimo», «Onde terá ido buscar estes gostos?», «Não o educámos assim», comentavam.
E também o leitor se interroga por vezes: porquê esta atração pelas coisas banais – a bilha de gás, o naperon, o «dia meio cinzento, com nuvens feias, como se o houvéssemos fotografado com o dedo na lente», o bibelot, o restaurante de segunda ou terceira categoria? Não mereceria o nosso maior escritor melhor sorte, movimentar-se noutros meios?
«E eu com saudades dos meus restaurantezinhos de televisão junto ao tecto, o dono a limpar o balcão com um pano que conheceu melhores dias, o sujeito que vende a sorte grande, em vigésimos, mamar o seu cálice de cirrose ao balcão, de olhos a boiarem num vago álcool sujo e eu com saudades da arca frigorífica com revistas velhas em cima e a preta da cozinha a mexer-se ao fundo num atropelo de alumínios», ocorre-lhe, enquanto come o seu peixe num restaurante caro.
Apesar da sua condição social, ou por causa dela, Lobo Antunes parece ter ficado com horror ao requinte, ao supérfluo, aos sinais exteriores de riqueza.
Uma analogia com a pintura talvez não seja tão despropositada quanto pareceria à primeira vista. Nos séculos XVII e XVIII, em França, a Academia de Pintura codificou os géneros de pintura e hierarquizou-os. A pintura de história, representando episódios da Antiguidade clássica, era a mais enaltecida e apreciada nos círculos oficiais. Entretanto havia quem, ao arrepio das convenções, pintasse temas comuns ou pequenas-naturezas que se revelariam autênticas obras-primas. Mais tarde, outro grande criador assombrado por fantasmas, diria: «Vejo desenhos e pinturas nas cabanas mais pobres, nos recantos mais sujos».
Sabemos hoje que não é o tema que faz a boa ou a má pintura:é a composição, a cor e, acima de tudo, a qualidade da pincelada.
As pinceladas de Lobo Antunes, independentemente do tema, muito ou pouco importante, que retratam – a família, a guerra, as ruas de um bairro banal, o sapateiro, um restaurantezinho de segunda categoria – levam quase sempre a assinatura de um grande artista.
Para terminar: serão as crónicas um género menor? Bastaria uma passagem para o refutar: «Não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou». Talvez nunca ninguém tenha feito uma sobreposição tão feliz e tão justa entre velhice e infância.
Tal como o tema, também o tamanho pouco ou nada tem que ver com isso. No prefácio, Marcelo Rebelo de Sousa questiona precisamente: «Quem diz que, num génio, crónica é menos que romance?».
E está absolutamente certo. Ainda hoje, nos melhores museus por esse mundo fora, há quem fique surpreendido ao descobrir como são pequenas algumas das obras-primas da pintura.