Começou a treinar aos seis anos. Sempre quis fazer triplo salto?
Numa entrevista anterior, disse que «aos seis anos tudo não passava de uma brincadeira», mas aos sete já treinava «corrida mais a sério». Nessa idade, ainda não sabia fazer triplo salto, só comecei a partir dos meus 14-15 anos. Comecei por conjugar o atletismo e o boxe.
Competiu pela primeira vez aos 16 anos quando viajou com o seu pai para Havana?
Costumava competir a nível regional. Aos oito anos, treinava com quem tinha dez.
Que memórias guarda desses tempos?
Boas! Antigamente, havia as cassetes e ainda tenho muitos vídeos dessa época. É bom recordar.
Já explicou que, quando era mais mais novo, queria fazer boxe ao nível da competição, mas o seu pai não permitiu. Ainda tem o ‘bichinho’ dessa modalidade?
Sim! Já aqui em Portugal, combinei treinar com um rapaz do Benfica, mas o meu pai disse-me que, nesta fase da minha vida, não convém sobrecarregar mais o meu corpo.
Normalmente, o triplo salto é encarado como uma combinação de três saltos sucessivos que terminam com a queda numa caixa de areia. Para si, este significado representa aquilo que nutre pela modalidade?
É a minha vida. Desde que descobri o triplo salto, nunca mais quis fazer outra coisa. Comecei por fazer comprimento, que é só um salto, e não triplo. Ele surgiu porque tínhamos de formar uma equipa para representar a minha região e não me qualifiquei para competir no comprimento. Sentei-me num muro com o meu pai e pensámos «O que vamos fazer?» e, nesse momento, passou um senhor que chamou as crianças do triplo salto. E disse: «Vou tentar». Dessa primeira vez, consegui saltar 12,92 m. E ganhei. Ainda tenho amigos dessa equipa. Eles continuaram a querer ser atletas, mas em Cuba é muito complicado seguir esta carreira. Se não tivesse o pai que tenho, se calhar não teria atingido aquilo que atingi. A minha mãe nunca esteve vinculada ao desporto, por exemplo.
Qual é o atleta que mais o inspira?
Não há ninguém que admire especialmente, mas gosto de alguns. As minhas referências são mais do boxe do que do atletismo.
Na sua infância, estava sempre na rua, a brincar com os amigos, a jogar beisebol, futebol e às caricas.
Tenho muitas saudades. Falo com os meus amigos da minha escola e do meu bairro. Alguns ficaram em Cuba, mas há quem esteja em Miami, nos EUA, e outro vive na Guatemala. Como agora vou entrar de férias, vou visitá-lo!
O seu pai era treinador de atletismo numa equipa em Santiago, enquanto a sua mãe vendia roupas na rua, bananas verdes, batata-doce, frutas e legumes. Tinha três irmãos mais velhos e uma levava-o aos treinos.
Ela também praticava atletismo e era muito boa, só que, uma vez, levou um empurrão de uma colega, caiu e estragou o joelho. Hoje em dia, consegue andar bem, mas nunca mais correu. Isto aconteceu quando ela tinha 16 anos, agora tem 36.
Ao pequeno-almoço comia pão com óleo e café, ao almoço um ovo com arroz e ao jantar é que se alimentava um pouco melhor. Nunca passou fome, mas muitas vezes além do pão, bebia água com açúcar, segundo vários órgãos de informação. Quais foram as maiores dificuldades que enfrentou?
A minha família ainda passa por dificuldades. Comia isso porque era aquilo que havia lá em casa. Bebia água porque quase sempre estava disponível, tal como o açúcar. Lembro-me de que a minha mãe fazia muito café e, atualmente, continuo a beber muito. Não um cafézinho, mas sim um copo grande! Chegou a ser o meu almoço também. Fiquei com manias do passado. Não almoço, por exemplo. Tomo o pequeno-almoço e o jantar.
Não sente fome por estar sujeito a um elevado esforço físico?
Estou habituado, passei muitos anos assim. Éramos quatro irmãos e havia dois pães, não tínhamos direito a mais: era metade para cada um e um copo de café. Aqui, as pessoas, convidam-me para ir almoçar fora e é complicado. Vou aos restaurantes, bebo um sumo, por exemplo, mas não como.
Mencionou que os atletas de Havana eram privilegiados, porque estavam na equipa nacional e durante os campeonatos, aqueles que chegavam de fora dormiam nas bancadas do Estádio Panamericano enrolados em cobertores. Havia uma cafetaria aberta 24 horas e compravam pão e um refresco para comer. Comer tão pouco e dormir de forma tão desconfortável não prejudicava a sua prestação?
É o tal hábito de que falei. Não nos deixavam treinar no centro desportivo, então, contornávamos os obstáculos. À noite, ficávamos no chão e, de manhã cedo, acordávamos e fingíamos que tínhamos vindo da rua. Para que as pessoas pensassem que estávamos a regressar. O meu pai ficava sempre connosco, tal como um dos meus irmãos que também treinava, mais velho do que eu quatro anos, mas ele já não treina. Foi tão difícil entrar no centro de Havana que ele desistiu.
A sua primeira grande vitória a nível internacional teve lugar na cidade de Barcelona no Campeonato Mundial de categoria júnior do ano 2012. Nessa competição, registou uma marca de 16,79 m, que significou também a quarta vitória cubana da especialidade. Em Espanha, sentiu que lhe davam o devido valor ou sentiu o mesmo que em Portugal, ou seja, que a modalidade não é tão apreciada como em Cuba?
Ainda salto pelos meus pais. Sinto que têm lutado muito para que atinja aquilo que tenho. É a minha forma de retribuir aquilo que fizeram por mim. Inclusivamente, deixaram de comer. Os salários, hoje em dia, são o equivalente a 25 euros. Antes, eram aproximadamente de 15 euros. Éramos seis pessoas, não havia dinheiro para tudo.
Em 2013, iniciou o seu percurso na categoria sénior, conseguindo o primeiro lugar na Liga de Diamante em Lausana com uma marca de 17,58 m. Depois de um terceiro lugar no Mónaco, apresentou-se ao seu primeiro campeonato mundial na cidade de Moscovo, tornando-se no medalhista mais jovem do evento ao alcançar, com apenas 20 anos, um salto de 17,68 m que lhe valeu a medalha de prata. O que sentiu?
No YouTube, há vídeos meus a saltar. O meu pai insistia que eu seria o melhor saltador de Cuba, mas, aos 19 anos, só tinha saltado 16,79 m. Era essa a minha melhor marca, portanto, as pessoas achavam que o meu pai estava maluco! Eu próprio não acreditava que conseguiria mais. Entre 2012 e 2013, saltei mais um metro. «Afinal, o velhote está certo», pensava eu! [risos]
Em 2014, no campeonato mundial em pista coberta de Sopot, na Polónia, obteve o terceiro lugar da final com uma marca de 17,24 m, conseguida na sua última tentativa. Depois, na Copa Cuba de Atletismo, conseguiu uma nova marca da competição, que remontava a 1985, ao saltar 17,71 m. Já no mês de fevereiro havia conseguido melhorar o seu próprio registo pessoal em Havana que constituiu, igualmente, a melhor marca do ano na especialidade, com um salto de 17,76 m. Quais eram as suas aspirações à época?
Ainda não pensava nos Jogos Olímpicos. Em Cuba, o pensamento acerca do atletismo é diferente: lá, pensamos em fazer grandes saltos e não em títulos. Ninguém pensa numa parte económica positiva. Aqui, pelo dinheiro que entra depois das competições, pensa-se muito nas medalhas. No meu país de origem, focamo-nos mais em superar as nossas marcas. «Vou conseguir saltar longe para os meus amigos saberem que sou o melhor», dizia eu. Era essa espécie de brincadeira que me fazia continuar.
Já disse antes que aquilo que sente é, basicamente, aquilo que o Cristiano Ronaldo sentiria se estivesse num país em que o futebol não é valorizado.
Imaginemos que o Cristiano chega a Cuba. Lá, não somos apaixonados por futebol. Ele ficaria a pensar «Sou o melhor do mundo e, aqui, ninguém reconhece que sou um bom atleta?». É isso que se passa comigo. Estou aqui, as pessoas dizem que sou bom atleta, mas menosprezam-me por ser de atletismo. Mas qual é a diferença? Não tem nada a ver se sou futebolista ou não! Por exemplo, há uns dias, em Zurique, havia 18 mil pessoas nas bancadas e os bilhetes custavam 85 euros. Em Portugal, nos campeonatos nacionais, quem é que assiste às competições? Os pais dos atletas. E a entrada é grátis!
Mas tudo mudou quando voltou dos Jogos Olímpicos.
Claro.
Esse reconhecimento é positivo mas, simultaneamente, algo triste porque ninguém o apoiou antes.
Queria que me tivessem visto nas outras competições. Em Espanha, são fortes no futebol, mas são loucos por atletismo! Na Taça dos Campeões Europeus de pista, por exemplo, as pessoas estavam tão entusiasmadas!
Os atletas teriam mais alento para treinar se o mesmo acontecesse em Portugal?
Penso que sim porque não se conformariam com determinados resultados. Não há pressão dos clubes, não há pressão dos adeptos… E as pessoas não lutam mais. Se tivesse nascido cá, a minha vida seria totalmente diferente.
Após o cumprimento de uma sanção por indisciplina, por ter-se negado a treinar com o preparador principal, retornou em maio de 2015, ao estabelecer uma nova marca nacional de 17,94 m, a 8 de maio, nas provas de pré-seleção para os Jogos Panamericanos.
Na verdade, ele não era o preparador principal e não houve bem essa sanção. Sempre treinei com o meu pai e, no centro, em Havana, havia um treinador e tinha de me adaptar aos mecanismos dele. Só que nada estava a correr bem, não tinha resultados. Falei com ele porque o atletismo é um desporto individual, enquanto se fosse futebol, havia mais colegas. Então, disse-lhe que tínhamos de mudar algo. Naquele momento, a meta de qualificação para o Mundial de Moscovo era 17,20 m e eu só saltava 16,56 m em competições nacionais. E ele não me queria ouvir. Ele é treinador, eu sou atleta, tinha de haver uma parceria. Reuni-me com quem estava acima dele e diziam «Vamos tratar do assunto» e eu fiquei à espera, mas treinei sozinho.
Durante quanto tempo?
Uma semana! O mais engraçado é que o próprio treinador, Ricardo Ponce, enviou uma carta para que me sancionassem. Dizia que não podia treinar sozinho. Passaram seis meses e alegavam que não podia treinar com o meu pai e tinha de voltar para onde nasci, Santiago de Cuba. Eu já tinha casa em Havana, morava lá. Puseram-me a treinar com um técnico de beisebol. Passaram seis meses.
Ele obrigava-o a jogar beisebol?
Não! Ele dizia «Treina com o teu pai porque eu não sei nada de atletismo». Passaram mais quatro meses e treinava mais ou menos às escondidas. Eu e o meu pai sabíamos que havia sempre alguém que nos via.
Depois, participou na Liga de Diamante, a 15 de maio, em Doha, superando pela primeira vez a barreira dos 18 metros, ao conseguir 18,06 m. De volta a Cuba, no Memorial Barrientos de 28 de maio, saltou 18,08 m, o que, aliado à conquista anteriormente referida, lhe valeu ser considerado o terceiro melhor atleta de triplo salto de todos os tempos.
Aqui já pensava nos Jogos Olímpicos. Pensava que tinha de mostrar que era o melhor. Como me tinham tirado do centro, estava com uma espécie de pensamento arrogante. Treinava com uma dedicação gigantesca. Quando voltei, fizeram-me um teste para ser novamente admitido e bati o recorde nacional! Saltei 17,94 m. Achavam que, como supostamente tinha estado dez meses a, não sei, jogar beisebol, não estaria em boa forma. Mas enganaram-se.
Agiam assim porquê?
Num regime ditatorial, aqueles que estão no topo da hierarquia acham que só eles podem ter sucesso. Por exemplo, na Medicina, o diretor de uma clínica acha que é dono da mesma. Vamos a um estádio, e outro dirigente acha que o estádio é dele. Temos de fazer tudo como eles querem: é assim ou vamos embora. Fiquei em Cuba mais um tempo e o meu pai conseguiu ir para a Suécia.
Tanto o Pedro como o seu pai sugeriram ao clube que ele o treinasse sem receber qualquer salário.
Precisamente. Quando cheguei a Portugal, uns dias depois, a Federação Portuguesa de Atletismo enviou um email à cubana e ninguém respondeu. Graças a Deus, há uma lei a nível internacional que pressupõe que o prazo de resposta é de trinta dias e, portanto, se esse tempo passa, quer dizer que aceitam. Ainda bem que não disseram nada! Um tempo depois, queriam que estivesse na seleção cubana. Aí até já pediam ajuda à embaixada! Antes, tinha estado na Suécia.
À época, tinha uma empresária que conhecia o Benfica. Chegaram a um acordo com o clube. Foi pesquisar informação sobre Portugal online. Que detalhes o fascinaram mais?
O tempo – estava na Suécia e queria fugir ao frio –, a língua – nunca soube falar sueco – e a comida. A única coisa que não sabia era a rivalidade que existe entre os variados clubes.
O seu pai foi da Suécia até à Alemanha, realizando uma viagem de 30 horas de carro, para ir buscá-lo, sendo que fizeram outras 30 para regressar. Foi aí que entendeu que a sua vida mudaria ou já estava certo disso antes?
Estava com receio. Não sabia aquilo que aconteceria. Queria ser atleta e, se por algum motivo as coisas não corressem bem, teria de optar por outra profissão. Na fronteira com a Dinamarca, a polícia parou o nosso carro.
O que perguntaram?
Não sei, não percebia nada! O condutor é amigo do meu pai e está lá há 25 anos. O meu passaporte cubano estava anulado e, por isso, esse senhor começou a mostrar aos polícias os vídeos do YouTube em que estou nas competições. E eles olhavam para mim e tentavam perceber se era realmente eu. Abriram a bagageira para ver aquilo que tínhamos, foi horrível. Estivemos nisto durante quase duas horas. Felizmente, ligaram para os chefes dos polícias e eles sabiam da minha história. Já tinha atingido 18 m. E deixaram-me continuar a viagem. Mesmo assim, na Suécia, tinha medo e só fazia o percurso casa-treino e treino-casa. Um dia, o meu pai quis que fosse comprar um queijo com ele e disse imediatamente «Não, não, fico aqui».
E manteve-se nesse registo até vir para Portugal?
Sim, estive lá quase dois meses e nem sequer conheço nada.
Optaram por vir para Portugal porque a oferta do Benfica era a melhor. Arrepende-se e preferia ter-se juntado a outra equipa ou voltaria a tomar a mesma decisão?
Em termos económicos, não era a melhor oferta, mas havia mais benefícios em termos da vida de atleta. Nesse sentido, o Benfica oferecia mais garantias. Hoje, voltaria a fazer o mesmo. Eu não vim para Portugal por problemas económicos porque já tinha contrato com a Puma desde 2013 e era atleta há vários anos. O dinheiro ficou na conta do amigo do meu pai, na Suécia, e, mal cheguei aqui, comprei um carro. Depois, comprei a minha casa.
É atleta do Benfica desde abril de 2017, mas somente em outubro de 2018 a Federação Internacional de Atletismo oficializou a sua nacionalidade portuguesa.
Não, recebi o cartão a 13 de novembro. As pessoas acham que foi em outubro porque, aí, o pedido já tinha sido aprovado. As pessoas sabem as notícias primeiro do que eu!
Ficou com uma cláusula de exceção, onde apenas podia competir com a camisola de Portugal nas grandes competições a partir de 1 de agosto de 2019. Isto incomodou-o?
Um bocado. E achei que havia alguém na Federação Internacional de Atletismo que estava a fazer alguma coisa para me impedir de avançar. Sabiam que ia competir por Portugal e seria campeão da Europa. Ficaram chateados. Havia o Campeonato da Europa, em 2018, e tinha colegas cubanos que competiram por Cuba. A cláusula indicava que tinha de competir três anos pelo meu país de origem, mas já tinha passado esse tempo!
Alguma vez se sentiu discriminado?
Sim. Mesmo hoje em dia, dizem que sou cubano e não português. Não ligo muito. Já passei por tantas coisas que, se as pessoas quiserem afetar-me, têm de se esforçar! Vai dar trabalho. [risos]
Adaptou-se bem ao país ou foi difícil? É o excesso de burocracia o problema que mais o incomoda por ser sempre preciso um e-mail, um papel, uma qualquer autorização para fazer seja aquilo que for?
Há uns dias, fui tratar do número de contribuinte da minha mãe. Ela não trabalha e sou representante dela. Disseram-me que tinha de levar o comprovativo de morada. E eu tinha, mas já estava caducado! Expliquei tudo, que esse comprovativo tinha sido tirado quando ela foi ao SEF. Levei faturas de tudo e mais alguma coisa e não consegui nada! Percebo que tudo tem de ser certinho, mas há coisas extremas. Já para tirar o cartão de residência, foi um problema. Tive de ser um bocado amargo e dizer «Sou o Pichardo. Está aqui o cartão do Benfica, mais isto e aquilo» e, aí, a senhora começou a agir de forma diferente. «Ah, és tu o Pichardo!». A minha mãe tem 59 anos e a funcionária insistia que ela tinha de trabalhar. O mais engraçado é que pedimos residência por um ano, mas, quando souberam quem sou, enviaram-me para casa o cartão permanente! O meu pai, que trabalha cá, no Benfica, não tem esse documento!
O que deve mudar na forma como Portugal encara o atletismo?
Devemos dar mais atenção não só ao atletismo, mas também às outras modalidades. Nem sequer peço que deem a mesma atenção que dão ao futebol.
O cerne do problema passa pelas decisões políticas ou tem a ver com a falta de entusiasmo dos portugueses?
É tudo. As pessoas conhecem um jogador suplente de futebol e não um atleta federado de outra modalidade. Isso choca-me porque acho que um bom atleta é bom em qualquer lado. Nunca vou aceitar que um jogador suplente seja visto como melhor do que eu. O Cristiano é o melhor do mundo: não porque joga à bola, mas porque é o melhor. Mas há outros jogadores com os quais as pessoas me comparam e dizem «Ele é melhor do que tu!». Não, não é, apenas ganha mais dinheiro do que eu.
Primeiro, viveu em Lisboa. Depois, comprou uma casa no Pinhal Novo e é lá que reside. Não gosta do rebuliço da capital?
Nada! No início, vinha aqui, ao Jamor, e os próprios treinadores não falavam comigo. Queriam apoiar o Nelson Évora. Isso é normal. Por exemplo, havia materiais para atletas federados e outros velhos para aqueles que não eram. As pessoas tratavam-me por cubano e não por Pedro ou Pichardo. No Estádio Universitário, na pista principal, havia um homem que queria que o Benfica pagasse 200 euros por dia para eu treinar lá porque não era português até competir por Portugal! No INATEL, estava tudo bem até ao dia em que apareceu um segurança fã do Évora. Tinha duas horas para utilizar o ginásio, entre as 12h e as 14h e a pista era usada à vontade. E ele complicou tudo. «O Évora é o maior» e tal. O mais engraçado é que o diretor do INATEL tinha colocado uma folha a autorizar a minha entrada na parede que estava atrás do segurança! Ele estava sentado e o papel mesmo perto dele. Tive de fazer uma reunião com o Jorge Vieira, da Federação Portuguesa de Atletismo, para ver se conseguia resolver a situação. Ele ligou para o Luís Liberato, da Câmara Municipal de Setúbal, que hoje é meu amigo, e foi assim que me mudei para lá.
O que tem a dizer acerca da polémica com Nélson Évora?
Ele acha que eu vim para cá crescido, enquanto ele veio para cá em criança. Então, ele tem mais direitos do que eu. Nenhum dos dois nasceu cá, mas ele formou-se em Portugal e eu não. No início, pensava que o problema tinha a ver com o Benfica, mas ele continuou a falar de mim e percebi que era comigo. Nessa altura, ele insistia que não tinha nada pessoal contra mim. Os colegas de equipa dele são cubanos, assim como o treinador, Ivan Pedroso. Ou seja, ele não entende que se falar mal de mim vou saber. Somos todos cubanos! Tudo se agravou quando obtive a residência.
Davam-se bem antes disso?
Não éramos amigos, mas cumprimentávamo-nos e até temos fotografias e vídeos juntos no Campeonato Mundial de Atletismo de 2015, em Pequim. Ele até me dava os parabéns na minha primeira conta do Instagram, quando eu ainda nem percebia bem a plataforma. Deve ter achado que queria apagar a história dele. Sou atleta, não o dono do Benfica ou do país. Aqui no Jamor, por exemplo, há fotografias dele e não minhas! Qual é o receio dele? Quer ser o único que ganha tudo?
Quando é que falaram pela última vez?
Lá está, antes de ter a residência. Ainda era oficialmente cubano e estávamos num meeting, em 2017, penso que em Lausana. As pessoas dizem-me para não prestar atenção àquilo que ele diz e faz, mas foi complicado. Só vim para Portugal. É esse o problema? Tenho de fazer comprimento ou mudar de modalidade por causa dele? Estou apenas a fazer o meu trabalho.
Foi proibido de voltar a Cuba durante oito anos. Continua a sentir-se magoado com o governo e as entidades desportivas?
Essa proibição ainda está em vigor. Para Cuba, continuo a ser cubano. Se quisesse voltar para lá, teria de ir à embaixada e recuperar o meu passaporte. Tiraram-mo, mas continuam a ver-me como cidadão de lá. Saí em abril de 2017 e em abril de 2025 poderia entrar, mas as coisas não funcionam assim: vão verificar se falei mal de Cuba, do regime, do Fidel Castro… Agem comigo como eu ajo com a minha filha: «Queres uma bolacha? Tens de te portar bem».
O seu tio Pio, que não conheceu, morreu numa emboscada a Che Guevara, acabando por salvá-lo. Como é que encara o panorama político de Cuba?
Teria de dizer uma palavra que não se deve dizer, mas… Não presta para nada. Costumo falar com os meus amigos pelo Messenger e alguns dizem coisas como «A Medicina é tão boa aqui». É boa!? Nem sequer há medicamentos! Pedem-me que os envie! E afinal é tudo incrível? Nos hospitais, não há água e aquelas camas… Enfim.
Os seus pais estão cá, mas os seus irmãos estão em Cuba. Lá, não há Internet em todo o lado como aqui.
Têm de ir a algum lado, como um pa
rque, e a velocidade da rede é horrível.
O que é que eles fazem? Agora, nada. Já fizeram o suficiente! Partilho o dinheiro que recebo com eles e os meus sobrinhos.
Têm quantos anos?
Uma tem 12 anos – costumo dizer que é a minha outra filha –, outro tem 11 e o mais pequeno cinco.
Quer trazê-los para cá?
É só papelada, não sei como conseguirei. Cuba está chateada comigo porque não reconheço a Revolução. Para eles, sou ingrato. Conheci um jornalista francês que foi a Cuba e tirou algumas fotografias a pessoas que encontrou na rua, fez-lhes perguntas sobre o país e elas disseram a verdade. Publicou o artigo. Nunca mais entrou lá! Chegou uma carta da embaixada cubana em França, à casa dele, com essa informação. O Governo é que tem de autorizar que as pessoas falem com os jornalistas, não têm a sua própria liberdade.
Começou a ser mais valorizado desde agosto?
É claro que sim, é normal.
A 5 de agosto, sagrou-se campeão olímpico do triplo salto. No primeiro salto, fez 17.61 metros. No segundo, alcançou a mesma marca. No terceiro, atingiu os 17.98. Mesmo assim, no quarto ensaio fez nulo, abdicou do quinto e no sexto, quando já tinha a medalha de ouro garantida, tentou o recorde olímpico e mundial. Está sempre a tentar superar-se e a ser e fazer melhor?
Tento sempre. Se consigo ou não… Não sei, mas não me resigno.
Teve cuidados redobrados durante a sua preparação para os Jogos?
Tinha de agradecer a Portugal com medalhas porque, aqui, as grandes marcas não são muito importantes. Então, entendi que os portugueses tinham de se sentir felizes comigo. E isso só poderia acontecer através do triplo salto.
Apesar de tudo aquilo que aconteceu, sentiu-se triste por não representar Cuba?
Não, nada! Há cubanos que acham que estou a negar o país em que nasci.
Parece que é mais o contrário.
Pois. Agora que ganhei os Jogos, apareço na televisão de lá e repetem que me formei como atleta em Cuba. Antigamente, era de onde? Cuba não me queria e não tinha a nacionalidade portuguesa. Questionava-me muito acerca de onde era.
A sua esposa é velocista. Tem corrido tudo bem entre vocês?
Nunca nos casámos, é minha ex-namorada. E é a mãe da minha filha, já não estamos juntos. A Rosalis Maria faz quatro anos em novembro e fica de segunda a sábado com a mãe e aos fins de semana comigo. Em casa, falamos cubano – não espanhol –, mas está a aprender português na creche.
Pretende ficar em Portugal?
Sim.
Mas já quis sair.
Quando não me deixavam treinar livremente, pois essa é a única coisa que peço. Preciso de um pequeno ginásio, como aquele que tenho em Setúbal, e uma pista. A Câmara Municipal tem feito muito por mim. Antes tinha de ir a casa fazer gelo e depois regressar e já nem isso faço.
A 9 de setembro, venceu a final da Liga Diamante, em Zurique, na Suíça. Conseguiu o melhor salto na sexta e última tentativa, chegando aos 17.70 metros. Qual é o próximo objetivo?
Agora, férias! Quero descansar um bocado. Na última competição, já sentia dores nos tornozelos. O triplo é muito forte e a pior parte é o treino, não a competição. É uma loucura e é impressionante como os nossos músculos e ossos aguentam a intensidade dos movimentos. Às segundas e terças salto, às quartas não faço impactos e às quintas, sextas e sábados volto a saltar. Apenas descanso aos domingos quando não há competições. Vou a conduzir sem sapatos para casa porque dói muito, não aguento!