Não é novidade nenhuma que os países do Médio Oriente, como a Arábia Saudita e o Qatar, têm regras estritas sobre vestimentas e comportamentos públicos. Os trajes típicos cobrem, a maioria do tempo, praticamente o corpo inteiro, e em especial zonas como os ombros e os joelhos.
Em dezembro deste ano, a festa mundial da Fórmula 1 chega, pela primeira vez, à moderna cidade saudita de Jeddah, mas o modernismo deste local cinge-se aos altos e brilhantes edifícios e a todo o luxo que o dinheiro do petróleo pode comprar. Em termos sociais, os sauditas mantêm uma posição muito conservadora, que se alastra àqueles que visitam o país. Para o Grande Prémio da Arábia Saudita, a organização do evento lançou, dois meses antes do apagar das luzes no circuito urbano de Jeddah, um ‘guia’ de vestimenta para os adeptos – e não só – do maior evento mundial do desporto automóvel.
Para as mulheres, por exemplo, recomenda-se que as mesmas não usem maquilhagem excessiva, e nada de roupas transparentes, roupas que fiquem acima do joelho, minissaias, vestidos sem costas, nada que mostre alças, roupas justas ou biquínis. Isto apesar do facto de, ainda que a corrida seja em dezembro, quando as temperaturas são mais amenas, a Arábia Saudita registar algumas das temperaturas mais quentes do mundo, tornando ainda mais difícil a aplicação destas restritivas regras.
No caso dos homens, as limitações são menos rígidas, mas os mesmos são recomendados a não usar bermudas, calções acima dos joelhos, tops e calças justas, nem a andar de tronco nu. Até os elementos das equipas técnicas que estarão no circuito, onde as temperaturas tendem a ser ainda mais elevadas, terão de cumprir estas regras.
As medidas – que se aplicarão também às outras modalidades do desporto automóvel que vão correr, em dezembro, em Jeddah – geraram polémica por todo o mundo, e Guillaume Capietto, team manager da Prema Racing, não hesitou em criticar o código de vestuário recebido, nas redes sociais, onde ironizou: “Como dizemos na França, é melhor rir-nos…”
“Se estou a perceber bem, como homem, não posso usar calções, portanto vou comprar uns kilts escoceses, já que só as mulheres é que não os podem usar”, brincou Capietto.
Mas o diretor técnico não se deixou ficar por aí, continuando nas críticas. “A Fórmula 1 vai a países controversos para fazer evoluir as mentalidades, segundo diz o slogan… pelo menos uma parte é verdade, as mulheres não vão ter de usar o niqab”, ironizou o líder da Prema. Note-se que as publicações entretanto desapareceram da página do Twitter de Capietto.
TEOCRACIA VIGILANTE Sobre o assunto, João Sedas Nunes, docente universitário na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa, não deixa espaço a dúvidas: “A aplicação ‘moderada’ da regra teocrática aos estrangeiros ocidentais e/ou privilegiados terá, sobretudo, uma função evocatória interna: a autoridade teocrática não será esbanjada em amenidades que configuram uma inaceitável tolerância.”
Sedas Nunes, em declarações ao i, refere-se ao “poder da oligarquia saudita”, e a como o mesmo “assenta muito numa teocracia hipervigilante de toda a dissensão ‘moral’”, sobretudo “dos próprios sauditas e, não menos importante, dos imigrantes no país”. O professor e sociólogo apela ainda a que não se ignore que “de uma forma ou de outra, todos somos compelidos a tornar o nosso corpo espaço de padrões corporais institucionalizados que integram a indumentária escolhida”, fazendo questão de assinalar que “a associação natural(izada) de calor a corpos mais descobertos não é, em si, pertinente”, utilizando o exemplo dos tuaregues para justificar este ponto de vista. “Os tuaregues defendem-se do calor extremo cobrindo o corpo totalmente com roupas escuras feitas de lã de camelo ou dromedário, dadas as propriedades de isolante térmico desta. À diferença, essas roupas não são justas. Muito pelo contrário. São largas, para propiciar que o efeito ‘aéreo’ de isolamento térmico possa ser gerado”, justifica o docente da FCSH.
Quando questionado sobre um possível “meio termo” entre as proibições de indumentária por parte dos sauditas, e da manutenção dos costumes ocidentais, ainda que em viagem, Sedas Nunes é taxativo: “Não há meio termo. Politicamente, a Arábia Saudita é uma sociedade de Antigo Regime. A modernidade, franqueada nas ideias de humanidade comum, igualdade, liberdade, a Cidade como lugar de cidadania política composta de direitos cívicos irredutíveis a quaisquer espartilhos religiosos, é estranha à Arábia Saudita”.
SENTIDO INVERSO Curiosamente, o ‘guia de vestimenta’ para os visitantes da Arábia Saudita surge ao mesmo tempo que, em Inglaterra, a direção do Newcastle United (que foi recentemente comprado por um consórcio saudita) fez um pedido oficial aos seus adeptos, através de um tweet, pedindo precisamente o contrário que os sauditas pedem para a F1: “O Newcastle pede gentilmente aos adeptos que evitem usar roupas tradicionais árabes ou coberturas para a cabeça inspiradas no Oriente Médio nos jogos, caso não usem normalmente essas roupas”.
mundial tapado O conservadorismo dos países do Médio Oriente não é recente, e faz parte dos concelhos aos viajantes que queiram descobrir estes lugares manter-se sempre ‘modestos’. Essa é a palavra-chave. Nas roupas, tapando joelhos, decotes e ombros, na linguagem, evitando dizer palavrões, e nos costumes, estando o álcool disponível praticamente só nos hotéis e em locais específicos, e sendo desaconselhadas mostras de afeto públicas. Se o circo da Fórmula 1 e da Fórmula 2 terão de se adaptar a estas regras, também os elementos do Mundial de futebol de 2022, que decorrerá no vizinho Qatar, estão ‘recomendados’ a cumprir determinadas normas de vestuário.
O Mundial, tal como o Grande Prémio da Arábia Saudita, acontecerá em dezembro de 2022, precisamente para evitar as altas temperaturas que se fazem sentir durante o Verão, naquele país do golfo Pérsico. Ainda assim, não se espera que os termómetros desçam dos 20 graus centígrados, e os adeptos terão de aprender a lidar com o calor sem recorrer a roupas mais ‘frescas’. Apesar de ainda não ter lançado nenhuma nota oficial relativa ao Mundial, o Qatar tem vindo, desde 2014, a promover uma campanha de sensibilização junto dos seus visitantes, alertando para a necessidade de se vestirem de forma ‘modesta’ ao visitar o país.