A regulamentação da dedicação plena no Serviço Nacional de Saúde estava anunciada para o conselho de ministros desta quinta-feira, mas o novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde aprovado pelo Governo promete ir mais longe nas mudanças na forma de organizar e gerir a disponibilização de cuidados de saúde à população. No final da reunião, Marta Temido apresentou as linhas gerais do diploma que vai agora entrar em discussão pública, substituindo o estatuto do SNS que vigorava desde 1993. Entre as novidades surge à cabeça uma mudança na liderança do Serviço Nacional de Saúde, que passará a ter uma direção executiva à parte do Ministério da Saúde, o que nunca existiu desde a criação do SNS em 1979. A figura existe por exemplo no Serviço Nacional de Saúde britânico desde os anos 90 e a “CEO” é desde julho Amanda Pritchard, numa estrutura em tudo idêntica à da administração de um hospital, com diretor clínico, enfermeiro-diretor e diretor financeiro, além de um estratega – e esta é uma das frentes em que o estado do SNS tem vindo a colher mais críticas internas nos últimos meses, à parte das questões laborais.
O Governo anunciou ontem que a direção executiva passará a ter como competências coordenar a resposta assistencial das unidades que integram o SNS, assegurar o funcionamento em rede – que Marta Temido disse ontem ser uma das ilações a tirar da resposta à pandemia – monitorizar desempenho, promover a participação dos cidadãos e utentes e representar o SNS. A forma de funcionamento e composição será definida por um diploma próprio, que o Governo se compromete a apresentar em 180 dias após a entrada em vigor do estatuto do SNS, sendo que se pretende que este entre em vigor com o Orçamento do Estado – no cenário de aprovação, a 1 de janeiro de 2022, o que remete para o segundo semestre do próximo ano a entrada em funcionamento desta estrutura.
Outra novidade prende-se com o compromisso de avançar finalmente com a organização dos Sistemas Locais de Saúde, estruturas de intervenção local e planeamento local da oferta de serviços de saúde que juntam parceiros do setor público, privado e social, previstas na lei desde 1999, e que nunca foram implementadas, tendo sido retomadas na lei de bases da Saúde aprovada com o apoio dos partidos à esquerda em 2019 – e que tem sido aliás motivo de manifesto de personalidades do setor. Na altura, foram pensados como forma de descentralizar o planeamento da oferta de saúde e facilitar o acesso por parte da população, convencionando resposta com diferentes estabelecimentos e juntando parceiros da Educação, Trabalho e Segurança Social e Ambiente e autarquias.
Dedicação plena obrigatória para lugares de chefia Passando então às mudanças relacionadas com recursos humanos, tema quente nas negociações do OE numa altura em que as várias classes profissionais têm greves convocadas a exigir melhores condições de carreira no SNS, o Governo estabelece duas modalidades para a dedicação plena, cuja forma de remuneração e outros detalhes diz que serão negociados com os sindicatos. Para já serão apenas para médicos, disse Marta Temido. Nenhuma retoma a ideia clássica de exclusividade, em que os médicos não podiam trabalhar de todo no privado para ter acesso a um melhor quadro remuneratório, mas a ministra da Saúde frisou que uma das modalidades será facultativa e outra obrigatória. A facultativa será para médicos que queiram aderir a um compromisso “assistencial” com o SNS, comprometendo-se com determinados objetivos – a definir – e recebendo em troca uma majoração salarial – a definir. Estes médicos não poderão ao mesmo tempo assumir funções de direção técnica, coordenação e chefia em instituições privadas ou sociais de saúde. Já para médicos que ascendam a lugares de chefia no SNS (e apenas para novas nomeações), o Governo diz que a dedicação plena será obrigatória e além de não poderem ter ao mesmo tempo lugares de chefia no privado e setor social vai ser definido um número máximo de horas semanais que poderão trabalhar fora do SNS. Medidas a negociar com os sindicatos, que até aqui têm recusado a ideia de uma modalidade de exclusividade obrigatória. Já o Bloco de Esquerda tinha proposto uma majoração de salários para a dedicação plena de 40%, aspeto que o diploma aprovado ontem pelo Governo não fecha.
Num ponto vai ao encontro das reivindicações à esquerda na negociação do OE: a proposta de Orçamento do Estado prevê que os hospitais tenham autonomia para contratações de substituição de profissionais mas agora o estatuto do SNS cria um regime excecional de contratação, em que os gestores e serviços do SNS recuperam a autonomia para contratar “em qualquer modalidade”, disse Marta Temido. Ou seja, assim sendo, acabam os pedidos de autorização a Finanças e Ministério da Saúde, que os administradores se têm queixado ao longo dos anos de ficarem pendentes durante meses. Por outro lado, firma o regime excecional de realização de trabalho suplementar com majoração de pagamento, também já previsto na proposta de OE para médicos nas urgências e que foi contestado pelos sindicatos por só prever aumentos de pagamento a partir da 250ª hora extra anual. Agora, o Governo envia tudo para negociação sindical e promete ainda ouvir o Conselho Nacional de Saúde e Associação Nacional dos Municípios num período de consulta pública do documento. Há ainda outra mudança prometida no diploma: as administrações e todos os hospitais passarem a ter um vogal não executivo representante dos trabalhadores, “por estes eleitos”, como existe por exemplo na ADSE. Na parte do relacionamento dos cidadãos com o SNS, que o Governo insiste que manterá a “centralidade” na resposta de saúde, fica também prometida maior participação nas decisões, em articulação com a futura direção executiva do Serviço Nacional de Saúde.