Por Felícia Cabrita e João Campos Rodrigues
Quando Paulo Nazaré se candidatou ao curso de Comandos, em 2016, não foi propriamente para fazer parte dos ‘bravos do pelotão’. Aquele que é hoje o principal arguido do processo Miríade cresceu nas ruas da Amadora, onde perdeu os escrúpulos, como tantos putos dos bairros problemáticos da periferia da capital. Tornar-se boina vermelha era uma forma de subir na hierarquia do gangue do bairro e aproveitar-se dos meios do Exército para enrijecer o corpo, aperfeiçoar-se no manejo das armas e fazer contactos.
Em pouco tempo, Paulo Nazaré mostra o seu calibre moldado nas lutas de gangues. Em setembro, numa prova do curso, dois dos seus colegas não sobrevivem a um golpe de calor e desidratação. Morrem, num escândalo que chocou o país. Outros instruendos são internados, mas ele escapa sem beliscadura.
Da mesma têmpera e de raízes semelhantes era Michael Oliveira. Com a Amadora como palco de uma adolescência agreste, travam um pacto que talvez nem a prisão consiga quebrar. Ambos passam pelos testes físicos e psicológicos com aprumo e são selecionados para a 2ª Força Nacional Destacada portuguesa na República Centro-Africana.
Paulo Nazaré e Michael Oliveira completavam-se. Oliveira era hábil, mas discreto, Nazaré tem paleio. Colocados na capital centro-africana, Bangui, em 2017, depararam-se com um país em ebulição. Também aqui as ruas eram uma tentação, por todo o lado se encontravam diamantes vindos de minas controladas por cruéis senhores da guerra, mercenários russos e políticos corruptos (ver páginas 8-9). A instabilidade criava um ambiente propício a «empreendedores do crime» e os dois comandos rapidamente se dedicaram a recrutar cúmplices.
Tu-cá-tu-lá com o mundo do crime, a dupla facilmente se integra nos gangues locais, aproveitando as estruturas das Forças Armadas ao seu dispor, incluindo voos militares, para colocar os diamantes em Portugal. E também entre os efetivos portugueses encontraram aliados.
Em seis meses, Nazaré e o amigo deixaram os alicerces de uma rede que conseguia funcionar mesmo na sua ausência. Alguns dos colegas de curso com quem o Nascer do SOL falou recordam o seu regresso ao regimento. Nazaré parecia vir de uma viagem feliz. Um praça fica estupefacto com a sua decisão:
«Disse-nos que tinha conhecido uma mulher rica na República Centro-Africana e que ia casar-se. Fez tantos sacrifícios para ser Comando e não chegou a estar na tropa um ano». Um seu superior reforça: «Deu essa desculpa para passar à disponibilidade, o que não é nada normal. Nunca mais o vimos».
Nazaré, fora da tropa, prepara-se para montar um esquema que sirva para o branqueamento dos diamantes. Lá dentro ficava Oliveira, que mantinha a ligação ao resto da estrutura militar.
Montado em grandes carros, o ex-comando de 22 anos dava nas vistas. Dinheiro é como mel, atrai parceiros rapidamente. Os diamantes eram escoados por via terrestre, através de Bruxelas e Antuérpia, na Bélgica. Nazaré não tem mãos a medir, aposta em novos negócios, como o tráfico de ouro e droga. Mas depois precisavam de lavar esse dinheiro.
Isso leva-o a arranjar cúmplices em entidades bancárias, para agilizar a circulação de dinheiro, a apostar na compra de bitcoins (ou moeda digital), recrutando testas-de-ferro e abrindo quatro dezenas de empresas de fachada.
Nazaré, em 2021, está com 25 anos. E já lidera uma organização criminosa com ligações internacionais, com mais de seis dezenas de elementos. Tornou-se tão proficiente a lavar dinheiro que até alugava os seus serviços de branqueamento a terceiros, como por exemplo empresários.
No entanto, os vícios de gangue fazem cair o império. Nazaré deixara para trás, na distante República Centro-Africana, um tradutor das Nações Unidas que servira de elo de ligação com os grupos criminosos locais. Não fora a ‘banhada’ de uns míseros cinco mil euros que dera ao seu cúmplice centro-africano e talvez Nazaré ainda estivesse em liberdade, desfrutando do controlo sobre uma rede criminosa com volume de negócios estimado nas centenas de milhões de euros.
Furioso por ser enganado, o intérprete denunciou o esquema ao comandante da 6ª Força Nacional Destacada, que informou o chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, que por sua vez passou o caso para as mãos da Polícia Judiciária Militar. E os investigadores puseram-se em campo, desenrolando o fio à meada criada por Nazaré, que acabaria detido quando passeava no centro comercial Vasco da Gama, no Parque das Nações, em Lisboa. No total, acabaram detidas 11 pessoas, incluindo militares, ex-militares e civis, com a investigação a manter 66 outros debaixo de olho.