Várias alunas que frequentam ou frequentaram o Campus de Gualtar da Universidade do Minho recorreram às redes sociais para denunciarem as tentativas de abuso e importunação sexuais das quais têm vindo a ser alvo desde 2008. A ativista dos direitos humanos Francisca de Magalhães Barros publicou, na manhã deste sábado, na sua conta oficial do Instagram, dois relatos que recebeu. "Venho por este meio expressar a minha preocupação em relação aos relatos de tentativa de violação e de assédio moral que têm ocorrido no Campus de Gualtar, em frente ao CP1. Este problema não é recente, sendo que já terá sido denunciado e discutido de forma intermitente entre o corpo estudantil desde 2017. Segundo os testemunhos, o modus operandi do agressor consiste em esconder-se no meio de um arbusto existente em frente ao CP1, masturbar-se para cima das pessoas que passam, chegando também a amarrá-las por trás numa tentativa de violação", lê-se num e-mail endereçado a Rosa Maria de Castro Fernandes Vasconcelos – professora associada do Departamento de Engenharia Têxtil da Escola de Engenharia da Universidade do Minho e, atualmente, Provedora do Estudante -, ao qual o Nascer do SOL teve acesso.
O segundo testemunho foi veiculado nas stories, da mesma rede social, de uma jovem estudante. "Boa noite. Sei que a maioria não me conhece e é bastante constrangedor falar no assunto, mas dado esta história eu gostava de partilhar o meu testemunho convosco. No passado dia 23/11 eu fui importunada sexualmente dentro da universidade, por volta das 22h. O sujeito esconde-se dentro de um arbusto grande (criou um buraco dentro do próprio arbusto) que existe em frente ao CP1 e quando há meninas a passar sozinhas ele agarra-vos por trás, o lugar tem muito pouca luz. Eu apresentei queixa e o caso foi entregue à Polícia Judiciária [PJ]", explica, adiantando que "nos serviços administrativos admitiram à PJ que recentemente estão a haver vários casos destes", no entanto, esta aluna terá sido a única a apresentar queixa formal até este sábado. "As outras meninas queixaram-se somente na universidade e eles não deram seguimento para a polícia, abafaram os casos", sublinha a rapariga que termina a partilha com um apelo: "Por favor, peço que se alguém conhecer alguma pessoa que tenha sofrido/testemunhado o mesmo dentro da universidade, contacte a PJ de Braga. Eu fiquei em estado de choque e com lapsos de memória, mas consigo dar uma descrição física exata dele", realça, divulgando que o agressor estará na faixa etária entre os 40 e os 50 anos e terá excesso de peso. "Os testemunhos de mais vítimas são essenciais para a investigação. Por favor avisem as vossas colegas/amigas e evitem passar lá e preservem a minha identidade. Não refiram o meu nome, pois tenho medo de que ele saiba que apresentei queixa contra ele e faça alguma coisa".
Contudo, esta situação não diz respeito somente a esta instituição de Ensino Superior. A título de exemplo, no artigo "Diana Lemos. Existe uma Diana que ficou naquela cama e outra que se reergueu a todo o custo", publicado no jornal i no final de julho deste ano, a estudante entrevistada deu a conhecer a tentativa de abuso sexual que sofreu a 24 de janeiro de 2019 na Unidade Residencial Maria Beatriz, no Campus do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL). Importa referir que, em novembro de 2019, foi divulgado o estudo "Violência Sexual na Academia de Lisboa: Prevalência e Perceção dos Estudantes". Este revelou que um em cada três estudantes universitários da região de Lisboa foi vítima, entre 2018 e 2019, de “violência sexual física”, mas poucos denunciaram as agressões. O mesmo se verificou através de um estudo realizado pela UMAR Coimbra – cujos resultados foram noticiados em maio de 2018 – acerca da violência sexual em contexto académico, tendo sido apurado que 94,1% das mulheres inquiridas foram alvo de assédio sexual, 21,7% de coerção sexual e 12,3% admitiram já terem sido violadas. Um terço das participantes já foram vítimas de 'stalking' (perseguição) e aproximadamente metade já tiveram contacto sexual não consentido.
Regressando ao estudo que concerne a realidade da capital, o inquérito contou com a colaboração de 995 estudantes da região de Lisboa, com idades compreendidas entre os 17 e os 30 anos, e as conclusões foram claras: a esmagadora maioria (93,2%) dos alunos já foi abordado no parque de estacionamento e 40,8% sentiram medo na paragem de autocarro ou estação de metro. Apenas um quinto dos inquiridos não foi alvo, pelo menos uma vez, de comentários ou olhares provocatórios de cariz sexual. À sua vez, mais de metade (72,2%) já se sentiu incomodado pela forma como olharam para si e 65,5% experienciaram, pelo menos uma vez, comentários de natureza sexual. A generalidade dos estudantes percebe estar perante violência sexual quando em causa há um contacto físico indesejado como ter sexo com alguém sem consentimento (97,6%), apalpar as nádegas de alguém sem consentimento (96,6%), coagir alguém a consumir bebidas alcoólicas ou drogas ilícitas e ter sexo com essa pessoa (91,1%). Também é igualmente relevante recordar que 86,2% dos estudantes entendem como violência enviar um vídeo, não solicitado, com conteúdo sexual, 82,1% fazer um comentário provocativo acerca da genitália, 71,1% enviar uma SMS sexual fora de contexto, 62,4% dizer piropos e 35,3% olhar fixamente para os seios de alguém.
Foi exatamente isto que aconteceu a Maria (nome fictício), cujas vivências foram narradas no artigo "Ninguém merece submeter-se a assédio para ter onde dormir" por Inês Batista, aluna do terceiro ano da licenciatura em Ciências da Comunicação. “'Levantei-me cedo para ir tomar banho e não havia água quente”. Maria sai do quarto no rés do chão em direção à entrada da Residência Lloyd. Dirige-se ao porteiro para saber se a caldeira está a ter mais problemas. Ele põe-lhe a mão na anca. Num estado de pânico, a aluna da Universidade do Minho apressa-se a submeter a reclamação da água, mas não sai sem mais um convite. 'Sugeriu que tomasse banho na casa de banho dele'. Não era a primeira vez que era assediada", escreve a candidata a ao Conselho Fiscal e Jurisdicional (CFJ) da Associação Académica da Universidade do Minho (AAUM). "'Nos momentos em que se dirigia para a sala de refeição, a estudante era, muitas vezes, surpreendida pelo porteiro. Este tinha o hábito de a seguir, meter conversa e insistir 'que lhe desse dois beijinhos'. Para o evitar, começou a lavar os pratos na casa de banho do quarto. Descreve, ainda, uma vez em que ficou presa no elevador. Foi o porteiro quem lhe abriu a porta. Estava a usar uma t-shirt larga e calções quando o homem inclinou a cabeça para espreitar por baixo da camisola. 'Deixei de conseguir andar com roupas curtas na residência'”.
Segundo o artigo, Maria terá sido "'submetida a uma mamoplastia de redução, devido ao desconforto físico que o peito grande lhe causava. Antes de recorrer à cirurgia, a aluna tinha dificuldades em dormir no colchão da sua cama. Deslocou-se à portaria para averiguar a possibilidade de troca por outro. O porteiro demonstrou muita curiosidade em saber quais as motivações do pedido. Após muita insistência, a estudante acabou por explicar e 'ele procedeu a fazer um discurso sobre como o peito é a coisa mais bonita que a mulher tem e que não devia mudá-lo por ser tão atraente para os homens'". A jovem permaneceu na residência entre setembro de 2019 e março de 2020. Nos Serviços de Ação Social da Universidade do Minho (SASUM), "'acompanhada por uma amiga, a aluna é ouvida por duas mulheres, que se mostram bastante compreensivas. Lamentam o sucedido e oferecem uma consulta com a psicóloga da UMinho. Contudo, há algo que deixa Maria muito desconfortável. 'Nós conhecemos a pessoa em questão, ele às vezes tem atitudes um bocado exageradas, mas não faz por mal', disseram". "'Ficou combinado que podia escrever a reclamação em casa e depois enviar por email para os SASUM. Contudo, negam-lhe a entrega da chave e do cartão da residência, por ser necessário 'verificar o estado do quarto'. Maria* escreveu 1499 palavras e só obteve resposta cinco meses depois. 'Questionámos o trabalhador sobre os factos alegados por si, que se mostrou bastante surpreso com a situação, dizendo que jamais teve intenção de ofender ninguém, nem a sua integridade, muito menos lhe causar qualquer desconforto', pode ler-se. Acrescentam ainda que 'nunca foram apresentadas quaisquer queixas deste tipo'.
Entende-se, assim, que as tentativas de violação não são somente levadas a cabo por um indivíduo que alegadamente não pertencerá à Universidade como por um funcionário da mesma. Ao Nascer do SOL, Catarina (nome fictício), uma aluna de mestrado, que também não pretende revelar a identidade por temer represálias, avança que "todos os testemunhos correspondem à realidade aterrorizadora que se vive no Campus", sendo que "é fácil para a direção ignorar o assunto, mas não para quem tem de frequentar aquele local diariamente sem saber aquilo que lhe pode acontecer". "Nunca fui vítima de nenhuma tentativa, mas tenho duas amigas que quase foram violadas e, até hoje, ficaram em silêncio. E isto não aconteceu agora, mas sim quando estávamos na licenciatura, em 2017. Acho que, se o tema começar a ser abordado, a universidade terá de tomar uma posição séria e não apenas aquela incompreensível que demonstrou no comunicado. Não somos apenas números ou pessoas que pagam propinas, mas sim alunas e alunos que merecem respeito e, acima de tudo, temos de estar em segurança. Estudar não significa estar em pânico e temer pela integridade física a toda a hora". Catarina refere-se ao texto que a Universidade do Minho partilhou na sua página oficial do Facebook na noite de sexta-feira. "Nas últimas semanas foram registados atos de exibicionismo de índole sexual, por parte de um indivíduo ainda não identificado pelas Autoridades, junto ao Edifício 1 do Campus de Gualtar. A Universidade do Minho (UMinho) está a envidar todos os esforços, em conjunto com a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia Judiciária (PJ), para resolver esta situação, tendo, entretanto, procedido ao reforço das medidas internas de segurança", esclarece, elucidando que a investigação está entregue à PJ e, em colaboração com a GNR, a Universidade está a proceder ao "aumento de vigilância ao Campus de Gualtar e suas imediações". "Na sequência do anteriormente exposto, pretendemos sensibilizar a Comunidade Académica para que as pessoas, fora do horário de funcionamento da UMinho, não circulem sozinhas no Campus de Gualtar e privilegiem as áreas com maior visibilidade e iluminação. Contamos com a compreensão e colaboração da Comunidade Académica em prol da segurança de todos".
Porém, esta sequência de crimes não se insere na janela temporal das "últimas semanas". Por exemplo, na caixa de comentários da publicação anteriormente mencionada, uma ex-aluna deixou o seguinte relato: "Esta odisseia já dura desde 2008, ano em que iniciei os estudos (e provavelmente até antes disso). Durante todo o meu percurso fomos reivindicando e exigindo maior investimento por parte da UM no que diz respeito à segurança dos alunos e alunas e, embora algumas medidas tivessem sido pensadas, nunca senti realmente que tivesse havido um verdadeiro investimento para atenuar estes problemas. É uma pena que estas situações sinistras se perpetuem no tempo através das gerações de estudantes sem que sejam verdadeiramente trabalhadas. A segurança dentro e nas imediações do Campus é um direito dos estudantes". "Mais uma vez, é um caso horrendo que me veio parar às mãos e que foi posteriormente confirmado pela Universidade", diz a ativista. "Visto que se passa desde 2008, existindo e-mails do corpo estudantil desde 2017, pelo menos, como é que ainda não está resolvido?", questiona com indignação. "Como é que estas alunas podem ter paz e algum sossego? Por aquilo que contam, não lhes foi dada nenhuma garantia de segurança ou de que estariam em segurança. A própria Universidade relata que são episódios que aconteceram nas últimas semanas", finaliza a também colunista do Nascer do SOL que, na quinta-feira, Dia Internacional Pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, lançou a campanha “#umpostsalvavidas!”.
Quem se encontra alinhada com Francisca é a deputada não inscrita Cristina Rodrigues. "Esta situação demonstra, uma vez mais, a desconsideração que existe pelos crimes de índole sexual e que, não coincidentemente, a maioria das vítimas são mulheres ou raparigas. A falta de atuação por parte das entidades responsáveis por assegurar a segurança das alunas não só resulta muitas vezes na revitimização destas como permite que os agressores continuem a sua prática, o que é absolutamente inaceitável", afirma, em declarações ao Nascer do SOL, aquela que exerceu funções enquanto advogada em nome individual e entregou, em outubro, um conjunto de iniciativas legislativas pela proteção das vítimas de violência sexual, lutando, ao lado de Francisca, para que a violação seja crime público ou que as declarações para memória futura possam ser obrigatórias, almejando, assim, mudar o panorama legislativo português naquilo que diz respeito a este ilícito. "É tempo de termos uma política de zero tolerância a este tipo de comportamentos que condiciona a vida das mulheres por todo o país. Uma em cada três mulheres já sofreu violência física ou sexual e estes números só se explicam pela inércia das autoridades nesta matéria, pela falta de aposta na educação sexual e pela desconsideração pelos relatos das vítimas. Espero, sinceramente, que a Universidade do Minho se esforce um pouco mais do que aquilo que consta no seu comunicado e que me parece manifestamente insuficiente".