Oseu casco imponente atingia 313 metros de comprimento (o do Titanic, por exemplo, ficava-se pelos 269 metros). Tinha capacidade para perto de dois mil passageiros, custara mil milhões de francos e conseguia cruzar o Atlântico em tempo recorde. O Normandie foi o navio mais caro, maior e mais rápido da sua época.
Na viagem inaugural, a 29 de maio de 1935, 50 mil pessoas acotovelavam-se no porto do Havre para o ver partir. Quatro dias e três horas depois era recebido por uma multidão de cem mil em Nova Iorque: ao alcançar uma velocidade média de 30 nós (55 km)/ hora, tinha acabado de destronar o navio italiano Rex, o anterior detentor da flâmula azul, que distinguia o navio de passageiros a fazer a travessia mais rápida do Atlântico Norte. Era a primeira vez que a França, cheia de orgulho nacional, obtinha o galardão.
Mas, talvez mais do que os números ou as proezas técnicas, o que impressionava no Normandie era o luxo principesco. Os melhores artesãos, carpinteiros, artistas, decoradores e arquitetos tinham sido contratados para o fazer brilhar sobre as águas como uma joia. Não era por acaso que lhe chamavam ‘o navio das luzes’.
Possuía courts de ténis, piscinas interiores e exteriores, capela, teatro e sala de cinema. O café grill à noite transformava-se em discoteca e no jardim de inverno havia uma gaiola repleta de pássaros exóticos.
O ponto alto era o grande salão de jantar da primeira classe. Mais longo do que a sala dos espelhos de Versalhes, com cujo aparato rivalizava, exibia mobiliário de mogno e pau rosa, com aplicações de bronze dourado. Os lustres tinham sido encomendados a René Lalique.
No Normandie, até as crianças tinham direito a tratamento VIP. Enquanto os pais se deliciavam com os mais requintados pratos da gastronomia francesa servidos em porcelana de Limoges, os filhos eram entretidos pelas suas amas numa sala de brincar cujas paredes estavam pintadas com desenhos de uma história cada vez mais popular entre os mais novos. Qualquer criança os reconhecia: eram Babar e os seus súbditos.
O primeiro livro da série fora publicado em 1931 e tornara-se um sucesso imediato. Contava como um pequeno e simpático elefante via a mãe ser abatida por um «malvado caçador, escondido atrás de um arbusto» e fugia para a cidade. Ali, encontrava a proteção de «uma senhora já de idade e muito rica». O pior já tinha passado. Babar acabaria por regressar à selva, onde os seus companheiros o coroavam rei dos elefantes.
O enjoo do pequeno Mathieu
Na origem desta história comovente do elefante órfão encontra-se um episódio real passado em 1930, e que é contado por Yseult Williams no livro O Esplendor dos Brunhoff, recentemente publicado pela Quetzal. Os protagonistas são o pintor Jean de Brunhoff, a sua mulher Cécile, pianista, e os dois filhos, o mais velho, Laurent (cinco anos), e o arisco Mathieu. Esgotados os dois meses de férias nas montanhas, perto de Chamonix, a família volta a casa. «No fim de agosto, apanham o comboio para Paris. No comboio, Mathieu come uma lata inteira de pasta de amêndoas», relata Iseult Williams.
É uma viagem atribulada, pois o pequeno Mathieu está tão mal disposto por causa da pasta de amêndoas que não pára de vomitar. Nem quando chegam ao lar, em Chessy (a zona onde se encontra hoje a Eurodisney), os pais têm descanso. «Da sala de música, onde os Sabouraud estão reunidos em redor do grande piano, ouve-se o choro do pequeno Mathieu no segundo andar. Farta daquilo, Cécile sobe ao quarto. Abraça Mathieu e procura um subterfúgio que lhe desvie a atenção das dores de barriga. Uma canção? Uma história, talvez? Cécile não têm o hábito de ler histórias aos filhos, muito menos de as inventar».
Ainda assim, desta vez abrirá uma excepção para acalmar o pequeno. Possivelmente inspirada por uma carta enviada do Quénia em que a sua amiga Gisèle Bunau-Varilla, casada com um aventureiro, descrevia uma caçada aos elefantes em 1928, inventa a história do simpático paquiderme.
«Sentado na sua caminha perto de Mathieu, o irmão mais velho, Laurent, fica interessado», continua Yseult Williams. «A sua mãe conta uma história absolutamente fascinante. Uma mamã elefante e o seu filhote a serem perseguidos por caçadores. Quando a mamã elefante é abatida, reina o silêncio no quarto. Os últimos soluços de Mathieu param imediatamente assim que o elefantinho órfão foge para a cidade grande, onde conhece uma velhinha simpática que lhe dá o seu porta-moedas…
Quando vai deitar-se, Cécile não imagina que acaba de escrever as primeiras linhas de uma história que em breve fará sonhar milhões de crianças em todo o mundo».
A história continuará a escrever-se – e a desenhar-se – na manhã do dia seguinte. «À mesa do pequeno-almoço, que dá para o jardim, os dois irmãos contam com pormenor a história do elefante ao pai. Jean, que tem sempre um caderno à mão, põe-se a desenhar uma, depois duas, depois três cenas. As crianças ficam em transe! Suplicam-lhe que continue. Jean promete continuar a história com eles no seu atelier, depois do lanche, ao fim do dia». E é assim que todas as tardes as crianças interrompem de bom grado a brincadeira para acompanharem a evolução dos desenhos e emitirem as suas opiniões sobre as personagens.
O elefante no chalé de inverno
Quando Jean recebe a visita do seu irmão mais velho, Michel, diretor da revista Vogue Paris, o elefante ainda não tem nome. Mas Michel encoraja-o a levar a história por diante e Jean reconhece que pode ser boa ideia. «No chalé onde se prepara para passar o inverno, ser-lhe-á impossível ter as suas telas, o seu cavalete, os seus guaches, os seus carvões, a terebintina…. Então, porque não usar todo esse tempo perdido em proveito de um formato mais pequeno e menos complexo de um ponto de vista logístico? Desta vez, Jean fica convencido!», escreve Williams.
Então com 30 anos, Jean de Brunhoff era o artista da família. Filho de um editor bem sucedido, decidira seguir a carreira de pintor depois de uma breve passagem pelo exército. Chegou ainda a conhecer a frente, no final da Grande Guerra de 1914-18. Regressado à vida civil, formou-se na Académie de la Grande Chaumière, em Montparnasse, Paris, sob a tutela de Othon Friesz, um dos responsáveis pela fundação do movimento fauvista.
Autor de paisagens, retratos e naturezas-mortas, Jean chegou a participar no Salon des Tuileries e no Salon des Indépendants. Mas à luz do que sabemos hoje, este percurso na pintura não parece mais do que um prelúdio ou um treino para as suas realizações na área da ilustração e do livro infantil.
Não são apenas as formas suaves dos jovens elefantes, ou as histórias em que os momentos de alegria confinam com episódios tristes, que nos enternecem. É até a própria caligrafia, as letras gordas e bem desenhadas de Babar – um nome que resulta da mistura de ‘bebé’ e ‘papá’ – tornaram-se sinónimo da magia e da inocência da infância.
«A devoção à família e as circunstâncias da vida que deram origem a Babar explicam a força e sinceridade que estão no coração das obras de De Brunhoff», escreve o maior autor atual de livros infantis, Maurice Sendak, no prefácio a As Histórias de Babar (ed. Relógio d’Água). «Estes livros são franceses no sentido tradicional, repletos de ideias consideradas antiquadas sobre os homens, as mulheres e os comportamentos», continua Sendak. «Mas, ainda assim, implicitamente, o foco é sempre a aprendizagem de uma criança (uma criança elefante) da liberdade individual e da personalidade através do domínio de si própria».
O ambiente em que se movimentava a família Brunhoff transparece sem margem para equívocos nalgumas páginas de Babar. Logo para começar, quando o pequeno elefante se dirige aos grandes armazéns e compra, com o dinheiro da sua protetora: «uma camisa com colarinho engomado e laço», «um fato de uma bonita cor verde», «um elegante chapéu de feltro», «e para terminar uns sapatos com polainas».
Os fatos, os chapéus, as roupas requintadas da burguesia são uma constante nos desenhos de Jean de Brunhoff. Afinal, não era impunemente que o ilustrador pertencia a uma família ligada às mais influentes revistas de moda da capital francesa: o irmão era diretor, como se viu, da Vogue Paris, e o cunhado, por sua vez, era editor da Le Jardin des Modes e, mais tarde, da Vu. Do círculo de relações da família faziam parte vultos como Christian Dior, Gabrielle Chanel e Yves Saint Laurent.
A par do lado quase frívolo do elefante elegante, há em Babar também lugar para a tragédia. Para começar, a morte da mãe do pequeno paquiderme; e, algumas páginas adiante, é a vez de o pai comer um cogumelo envenenado e não resistir, abrindo assim o lugar para a sucessão no trono.
Também a vida de Jean de Brunhoff foi marcada por um trágico sentido do fim. Quase ao mesmo tempo que criava os primeiros desenhos de Babar, descobria que tinha tuberculose – e daí as temporadas nas montanhas, onde os médicos esperavam que o sol e o ar puro pudessem ter um efeito terapêutico.
Pai dedicado e interventivo, também não é de afastar a hipótese de que as histórias de Babar, que produziu a bom ritmo entre 1931 e 1937 lhe servissem para se manter em contacto com os filhos nas suas ausências para tratamentos e talvez até para lá do seu desaparecimento.
«No seu exílio branco, Jean imaginou um reino para Babar e os seus súbditos», escreve Yseult Williams. «Em Célesteville, a cidade ideal do rei Babar, ‘o palácio do trabalho fica mesmo ao lado do palácio das festas […], o que é muito cómodo’, e a cabana do monarca é pouco maior do que a dos seus súbditos. A própria arquitetura da cidade favorece o progresso individual».
Mas quem não progredia era o ilustrador, que em 1936 começou a sofrer de fortes dores nas costas. Ou se progredia era para pior. Os médicos diagnosticaram-lhe por essa altura tuberculose óssea, que era mais agressiva e difícil de curar.
Jean de Brunhoff morreu a 16 de outubro de 1937 na clínica de Crans-Montana na Suíça, aos 37 anos. Mas Babar, de quem deixou cinco livros publicados e outros dois por publicar, continuou a viver.
Dez anos depois da morte do pai, Laurent daria seguimento às aventuras do elefante órfão, que conheceriam uma adaptação para televisão em 1969, um ano depois das revoltas estudantis. Já Mathieu, cuja indisposição tinha estado na origem de Babar, seguiria a carreira de médico pediatra. E Thierry, nascido em 1934, seguiria como a mãe a carreira de pianista, tornando-se depois monge beneditino.
Outros Casos
Matthew Paris
O multifacetado monge beneditino Matthew Paris representou em meados do século XIII este elefante que o Rei de França, Luís IX, ofereceu ao seu homólogo inglês, Henrique III. O manuscrito pertence atualmente ao Corpus Christi College, de Cambridge.
Poussin
O pintor francês Nicolas Poussin recriou esta cena das guerras púnicas: o general cartaginês Aníbal cruzando os Alpes montado num elefante. Com 37 destes animais, as forças de Aníbal estiveram perto de tomar Roma em 218 a.C., mas uma hesitação às portas da capital do império acabou por revelar-se fatal para o exército invasor.
Bernini
O grande escultor e arquiteto barroco concebeu um dos mais originais monumentos de Roma ao usar um elefante como pedestal para um obelisco egípcio encontrado num convento dominicano. A obra, terminada em 1667, pode ser vista na Piazza della Minerva.
Rafael
Hanno chegou a Roma em 1514, a bordo de um navio vindo de Lisboa. Oferecido por D. Manuel ao Papa, fazia parte, juntamente com muitos outros animais exóticos, da embaixada liderada por Tristão da Cunha. Teve uma vida curta, mas foi eternizado por Rafael, que o representou com o seu cornaca.
Rembrandt
Muitos artistas representaram com fidelidade as formas do elefante, mas nenhum conseguiu transmitir tão bem a rugosidade da sua pele como Rembrandt. O artista holandês viu esta fêmea, Hasken, em 1637. O animal, que fazia truques como segurar em espadas, colapsou na Piazza della Signoria, Florença, quanto tinha apenas 25 anos.
Machado de Castro
Na base da estátua equestre de D. José que se ergue no Terreiro do Paço, um elefante que representa a amplitude dos domínios do império derruba um escravo. Curiosamente, o autor, Machado de Castro, não foi admitido na inauguração deste marco da reconstrução da cidade após o terramoto, em 1775.
Porta dos Elefantes
Terminada em 1901, a Porta dos Elefantes, em Copenhaga, faz parte do complexo da fábrica de cerveja da Carlsberg. Os animais, quatro no total, representam os quatro filhos de Carl Jacobson e têm suásticas nos dorsos, símbolos destinados a trazer boa sorte.
Salvador Dalí
Na pintura Sonho Causado pelo Voo de uma Abelha ao Redor de uma Romã, de 1944, assim como n’A Tentação de Santo Antão (1946), surrealista espanhol representou elefantes equilibrados sobre pernas tão finas como antenas de crustáceos.
Peter Beard
No livro The End of the Game, publicado pela primeira vez em 1965, o artista norte-americano documentou como a falta de controlo de população dos elefantes no Quénia levou à morte de milhares e milhares de animais, pondo fim a uma espécie de Éden sobre a terra.
Max Ernst
N’O Elefante Celebes, de 1921, o pintor dadaísta alemão representou uma figura que tem qualquer coisa de máquina, um híbrido entre o possante animal e uma caldeira. O título aludia a uma rima grosseira muito apreciada pelos estudantes alemães.
Walt Disney
Baseado na história infantil Dumbo, The Flying Elephant, de Helen Aberson-Mayer e Harold Pearl, Walt Disney produziu o seu filme estreado em 1941. Conta a história de um elefante que é escarnecido por causa das orelhas demasiado grandes… que no entanto acabam por revelar-se utilíssimas para voar.
Delirium Tremens
Já considerada a melhor cerveja do mundo, adoptou como emblema um elefante cor de rosa. A origem desta mascote vem de um livro de 1913 de Jack London, em que o alcoólico John Barleycorn diz ter visto na sua alucinação «ratinhos azuis e elefantes cor de rosa».