E m tempos idos, na minha infância, havia um dia especial do ano em que o programa consistia em jantar numa das primeiras hamburguerias de Lisboa, o Big Apple, e assistir a uma sessão nocturna do Circo Chen ali ao lado, no Campo Pequeno.
A arena, que no verão se ensopava de sangue e era pisada por touros bravos, cavalos e forcados, naqueles dias de inverno recebia variadíssimos números. Um dos mais emocionantes era o dos trapezistas, que pareciam arriscar a vida ao som dos tambores com os seus voos vertiginosos. Mas o momento alto era sem dúvida quando, a uma ordem do domador de leões, se montavam as grades a toda a volta do recinto para os bichos não saltarem para a bancada.
Com a sua tenda de oleado, os seus fatos espampanantes e os seus animais tristonhos, o circo pode parecer a um adulto um espetáculo de papelão, por vezes até um pouco deprimente. Mas para uma criança pode ter qualquer coisa de maravilhoso.
Quais as origens desta estranha e cativante encenação? No livro La Fabuleuse Histoire du Cirque (Éditions du Chêne), Pascal Jacob conta que tudo terá começado nos arredores de Londres, numa tarde da primavera de 1768. Enquanto, não muito longe dali, a Revolução Industrial dava os primeiros passos, nas margens do Tamisa um soldado inglês acabado de desmobilizar fazia proezas na sela e fora dela.
Philip Astley tinha 26 anos e era um excelente cavaleiro, ágil, elegante, bem apessoado, com prática de cargas a galope – mas também com olho para o negócio. Pequenas multidões começaram a juntar-se para vê-lo fazer os seus truques equestres, enquanto o cavalo dava voltas e voltas no terreiro.
Mas lá está, Astley não era apenas exímio a montar. Sabia muito bem como rentabilizar os seus talentos. Não só cobrava bilhete como aos poucos foi melhorando as condições do seu estaminé. Primeiro vedando o espaço, depois com um estrado e mais tarde mandando construir um anfiteatro para as exibições. Para complementar o seu número, contratou saltimbancos e comediantes. Tinha assim, sem querer, dado origem ao espetáculo que conhecemos hoje.
A história do circo está cheia de personagens singulares, como o italiano Enrico Rastelli, um equilibrista conhecido pelo seu misto de simplicidade e rigor técnico; Grimaldi, considerado o primeiro palhaço; ou o capitão Wall, que lutava contra crocodilos. Um dos grandes génios do século XX, Charles Chaplin, parece ser herdeiro dessa nobre linhagem.
Mas se Philip Astley foi o inventor do circo, a verdade é que, como nota o autor do livro, as raízes desta arte são muito mais recuadas. Pascal Jacob evoca «os sacerdotes errantes de Cibele», que «percorriam as estradas da Grécia com os seus animais, macacos, ursos, lobos e linces, e apareciam nos locais públicos misturando as proezas dos seus parceiros às suas próprias façanhas de malabarismo e de acrobacia». E depois, claro, havia a arena dos anfiteatros de Roma, onde se encenavam combates sangrentos entre homens e feras.
E lá estamos nós de volta à praça do Campo Pequeno. A arena e a tenda, a corrida de touros e o circo. Vendo bem, não seria por mero acaso que esses dois espetáculos partilhavam o mesmo cenário.