A disciplina de Educação para a Cidadania e a chamada ideologia de género têm estado debaixo de fogo e até foram tema nos debates políticos entre os candidatos às eleições legislativas no próximo dia 30 de janeiro. O Nascer do Sol noticiou, a 8 do presente mês, que a Associação de advogados SaIL levou a cabo uma ação judicial contra o Estado com o intuito de remover todos os conteúdos ideológicos da Educação. Em sentido inverso, as associações pró-LGBT consideram que não faz sentido. E que a disciplina de Educação para a Cidadania deve manter-se obrigatória.
Alerta para doenças mentais “Do ponto de vista da saúde mental, a invisibilidade e a ignorância ou a negação da existência de pessoas não-cisgénero e não-heterossexuais é promotora de stress minoritário, com impactos negativos de forma transversal – maior risco de depressão, ansiedade, comportamentos autolesivos e tentativas de suicídio na população LGBT”, alerta Rui Ferreira Carvalho, médico interno de psiquiatria da infância e adolescência, terapeuta sexual e ainda sexólogo clínico. E é também por isso que a disciplina de cidadania, no seu entender, “é importante” – não apenas para a educação para a sexualidade, mas para educação como um todo. “É crucial promover um currículo transversal, baseado na evidência, pedagógico, e aplicado de forma semelhante em todos os estabelecimentos de ensino”, defende. Os currículos escolares “devem ser adequados e integradores, contemplando a informação científica mais recente, incluindo a componente psicossocial”, conclui.
Missão em defesa da liberdade Criada em 2020 para estabelecer uma rede de advogados e profissionais de outras áreas, tendo como missão a defesa da liberdade, a SaIL apresentou uma ação no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa exigindo que o Estado Português “seja intimado a remover todos os conteúdos que correspondam a uma programação da Educação segundo as diretrizes ideológicas da Teoria de Género”, lê-se num comunicado. Em causa estão os conteúdos educativos disponibilizados no site da Direção-Geral da Educação (DGE), como os ‘Guiões de Educação para a Cidadania’, que, “ignorando outras formas de ver a realidade”, pretendem “impor a tese de que o sexo biológico deve distinguir-se do género ou da identidade de género”. Algo que, segundo dizem os promotores da ação contra o Estado português, é entendido pelos defensores dessa ideologia como “mera construção social de caráter não binário” e “puramente dependente de uma opção subjetiva, que em nada deve ser afetada ou influenciada pelas características biológicas inatas”.
Cidadania não é só sexualidade Leopoldina Almeida, professora e coordenadora de Educação para a Cidadania do Agrupamento Escolar n.º 1 de Beja, considera “estranhíssimo” as pessoas e associações que se manifestaram contra a obrigatoriedade da disciplina e que se focam apenas na mesma temática: a sexualidade e a ideologia de género. “A disciplina de Educação para a Cidadania tem 16 domínios completamente diferentes, como Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Instituições e Participação Democrática. E a maior parte das alegações que eu vejo contra a disciplina só tem a ver com a questão de igualdade de género e da sexualidade. E estes temas são os menos tratados de todos os domínios. Acho que é uma obsessão”, diz ao i. “Quando olhamos de uma maneira para o tema estamos a ser ideológicos. E quando olhamos da maneira oposta não estamos?”, deixa a questão no ar para refexão. A docente conta que acha “ridículos” certos comentários que houve de que, com a disciplina, as escolas estão a tentar “incentivar as pessoas a serem homossexuais”. Leopoldina Almeida exorta que as matérias de direitos humanos não “se dão” – “trabalham-se”. As pessoas LGBT existem e, por isso, segundo diz, devem ser discutidas nas escolas.
Ação sem fundamento “Penso que a ação levada a cabo pelo SaIL não tem fundamento nenhum. A escola tem de ser ampla e inclusiva”, considera Manuela Ferreira, da Associação AMPLOS – uma associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género. “O conceito da ideologia de género apareceu nos anos 90 com a Igreja Católica, que queria – e quer – preservar a conceção que tem sobre o que é e o que tem de ser uma família. Mas essa é apenas uma visão da sociedade e não pode ser vista como uma verdade universal”, defende. E no que diz respeito à comunidade LGBT, Manuela Ferreira deixa claro: “As pessoas LBGT existem. Não podem ser apagadas da história. Indivíduos que levam a cabo este tipo de ações – como as da associação SaIL – têm a noção do quão mal estão a fazer a crianças que – por ouvirem este tipo de discursos – se sentem excluídas? Que ficam a pensar que são um erro de fabrico? Que ficam com medo de falar com os pais sobre o que sentem?”, continua. A AMPLOS considera, portanto, que é essencial falar sobre a identidade de género nas escolas, assim como é essencial a disciplina de Educação para a Cidadania. E tentar abafar a realidade desta comunidade, estimulando a negação destas pessoas, pode gerar “consequências muito graves” e, em muitos dos casos, “levam a doenças mentais e até mesmo ao suicídio”, diz Manuela Ferreira. “Estamos a falar de crianças e adolescentes. Estão-se a descobrir. Uma criança que não se sinta à vontade de falar com os pais, com os amigos, com os professores e pensam que elas próprias são um defeito é muito triste e doloroso para elas”, afirma. Por estes motivos, defende, a Educação para a Cidadania deve existir e tem de existir porque “a escola está, de facto, a formar cidadãos. E os cidadãos têm de respeitar as diferenças. E mais: olhar para a diferença como uma coisa boa e não como uma ameaça”, conclui.
E as ciências sociais? Também para Rita Paulos, diretora executiva da CasaQui – uma associação de solidariedade para a inclusão e bem-estar das pessoas LGBTI – a iniciativa do SaIl não tem nexo. “O que se pretende atualmente que seja transmitido na escola são factos científicos, sejam das ciências naturais ou das ciências sociais e humanas, e a apresentação da realidade tal como ela é”, começa por explicar. E a intenção que poderá haver de calar a diversidade “constitui em si uma posição ideológica limitadora sobre quem e o quê pode ser falado ou tem o direito a ser reconhecido”. Existe, portanto, “um juízo de valor degradante” de que existem temas “inferiores ou errados e que devem ser ocultados”. Mas para além disso, acarreta consigo um pressuposto de que “os jovens não sabem tomar decisões e posicionar-se perante a informação que recebem e que, portanto, essa informação deve ser escolhida e mediada por alguém para si. A história demonstra-nos que a falta de informação ou informação limitada sobre a realidade gera piores resultados do que a informação completa e decisões informadas daí derivadas”, defende Rita Paulos.
A ideologia de género A diretora da Casa Qui explica que “a ideologia de género em si não existe tal como descrita por quem criou o termo”. E deixa claro: “O género enquanto construção social com normas e papéis atribuídos de forma convencionada, em dada cultura, local e época, aos corpos das pessoas conforme a sua função na reprodução humana é um facto das ciências sociais humanas, como bem nos demonstrou a antropóloga Margaret Mead e outras pessoas na investigação científica posteriormente”. Mas quando se fala em Ideologia de Género, na verdade existem duas ideologias: aquela que cunhou o nome do termo, “ideologia de género”, e que “pretende ocultar a realidade e a existência da diversidade, com um pressuposto latente de que existe uma forma superior, única e correta de ser-se fêmea e macho e de relações entre estes dois corpos” e outra que, por outro lado, “que pretende que as pessoas possam ser elas próprias, independentemente das suas características sexuais, e que reconhece a ampla diversidade existente nas pessoas, inclusive em características essenciais para a sua felicidade e bem-estar como os afetos e a sexualidade, referindo-me aqui à orientação sexual, ou a liberdade de expressão da sua maneira de ser independentemente do corpo com que nasceram” – e que implica sejam oferecidas às pessoas de forma isenta, sem condicionamentos, as mesmas oportunidades de desenvolvimento das suas características, talentos ou gostos, como determinados tipos de brincadeiras ou vocações. Não o fazer, continua Rita Paulos, implica que “uma série de pessoas, por causa da sua genitália, se vejam frequentemente limitadas no desenvolvimento de competências em áreas dos estudos académicos, da esfera profissional, doméstica ou do lazer para as quais, dadas as suas características individuais, naturalmente iriam florescer”. E isto leva a uma “imposição” de normas e de papéis de género. Dito isto, sabendo-se então que existe esta construção social, é verdade admitir que em cada época, local e cultura existe uma “ideologia de género” tendencialmente dominante. Mas alerta: “Ironicamente, quem usa o termo ideologia de género para se referir à promoção da igualdade de género, de forma depreciativa, é justamente quem promove então a ideologia de género ainda dominante e tenta evitar que esta ideologia dominante seja substituída por uma ideologia sem restrições, regras e imposições às pessoas conforme o corpo com que nasceram”.
Disciplina é importante A explicação da diretora da Casa Qui serve para fundamentar o peso da disciplina de Educação para a Cidadania, que tem um papel “absolutamente importante”. Se concordarmos com uma democracia participativa, diz, e com a promoção dos direitos humanos, então é essencial “receber toda a informação e instrumentos necessários para o exercício da cidadania plena e informada e, acima de tudo, promotora do respeito, do diálogo e do reconhecimento e valorização da diversidade, sem noções de fórmulas únicas ou superiores em características que não têm em si impacto em pessoas terceiras”. Adicionalmente, a Educação para a Cidadania também capacita as pessoas “para saberem os seus direitos, para saberem se proteger em vários contextos da vida, para saberem organizar-se e para serem contribuintes para um melhor tecido social, para um melhor ambiente, para mais saúde e para a paz, só a título de exemplo”, defende.
Suicídio Recorde-se que os jovens da comunidade LGBT têm uma probabilidade três vezes maior de cometer suicídio. Uma tendência que tende a aumentar quando a família não aceita a sua orientação sexual, segundo dados divulgados o ano passado da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP).