Por António Silva Carvalho
É há muito sabido que, quando entidades oficiais repetem em público vezes sem conta uma determinada mentira com ar sério e convincente, se esta comunicação falsa for mantida ao longo dos anos, quase toda a gente acaba por, mais cedo ou mais tarde, acreditar na veracidade daquilo que lhe é dito, ou seja, deixam de ser capazes de distinguir a verdade da falsidade. Ora, o facto é que quase toda a gente no nosso país – inclusivamente quem escreveu a actual Constituição da República Portuguesa, foi efectivamente doutrinada para pensar, desde o 25 de Abril de 1974, que o PCP devia ser considerado um partido confiável e inofensivo, e que só os “fascistas” deveriam ser proibidos de participar no nosso regime democrático.
E de facto, parece ter sido preciso que surgisse no nosso panorama e discurso político alguém como André Ventura e o seu partido Chega, para que os outros partidos políticos pusessem em causa a admissibilidade de algum partido e a legitimidade de alguém como Ventura para poder ou não candidatar-se, por exemplo a deputado, a Presidente da República ou a representante de um município.
Ora, quanto a mim, a situação pouco clara e ambígua que existe em Portugal no plano constitucional não é nada salutar para o regime, e poderá até ser vista como um caso de humor negro que acabou por ser socialmente aceite pela nossa elite jurídica e política. Tentarei pois explicar as razões que me levam a dizer isto.
Todos aqueles que ideológica e politicamente alinham a favor das teses defendidas pelo PCP e pelo BE (os partidos portugueses mais “de extrema esquerda”) são pessoas cujos ícones ou modelos políticos encontram-se algures numa lista cujas figuras mundiais mais célebres foram Lenine, Estaline, Mao Tse Tung, Trotski, Pol Pot, Kim Il Sung, Ho Chi Minh, Fidel Castro, Hugo Chávez, e, para os portugueses, principalmente Álvaro Cunhal e Agostinho Neto.
Ora, qualquer pessoa que tenha um conhecimento mediano sobre História Mundial durante o século XX, tem a estrita obrigação de saber que, no século passado, houve no mundo dois regimes ideológico-políticos que, só à sua conta – porque houve também outros também tenebrosos -, mataram sem justificação aceitável nem incriminação expressa mais gente, e causaram mais sofrimento e destruição, do que em outra qualquer época histórica.
Um, foi o comunismo (que já foi também chamado “socialismo real”, “democracia” ou “ditadura do proletariado”), e os historiadores que mais o estudaram estimam que, em resultado da sua acção, o número global de mortes terá rondado 100 milhões de pessoas (para não falar nos outros tipos de crimes que cometeram, e cujas vítimas são muito mais difíceis de contabilizar) – de acordo com a volumosa obra colectiva “O livro negro do comunismo / Crimes, terror, repressão”, originalmente publicado em francês pela Ed. Robert Laffont, em 1997.
O outro regime, o nazismo, parece igualmente ter tido origem num perigosíssimo psicopata (neste caso, Adolph Hitler) e, embora tenha sido classificado por muitos como “o regime do mal absoluto”, em termos quantitativos das vítimas mortais que causou, acabou por ser menos mortífero que o comunismo, apenas por este regime ter sido entretanto vencido militarmente, não tendo tido portanto tempo para matar mais do que uns 25 milhões de pessoas.
O que parece mais paradoxal do ponto de vista português, e a meu ver representa sem dúvida um espantoso caso de estudo, é o facto de no nosso país o comunismo continuar ainda hoje a ser visto como totalmente compatível com um regime democrático em que os direitos humanos sejam respeitados, e a ser inclusive considerado, por pelo menos 5% da nossa população, como o único regime verdadeiramente exemplar –, ao passo que o PCP (descendente directo dos comunistas soviéticos) e o BE (com origem noutras versões do sistema comunista, como o trotskismo), tratam como seus piores inimigos quem quer que se atreva a confessar-se admirador do “horrendo ditador Salazar”, falecido há mais de 50 anos sem ter deixado seguidores (e que, tal como qualquer governante ditatorial ou autoritário, dispunha da ajuda dum sistema oficial de censura ao que era dito ou escrito, e duma polícia política, a PIDE, incomparavelmente menos perigosa e assassina que o KGB ou outras polícias congéneres comunistas), já que, em 40 anos de “poder absoluto”, a dita Pide terá morto talvez umas cem pessoas, em lugar de dezenas de milhões).
Perdoar-me-ão talvez (ou, muito provavelmente, não perdoarão) o facto de eu estar a comparar um “ditador de direita” (Salazar), portanto alguém muitíssimo mal-intencionado, com líderes de esquerda (os atrás referidos e outros), logo, gente bem-intencionada e cuja missão histórica consistia, alegadamente, em criar condições para que a humanidade passasse, toda ela, a só poder ter indivíduos bons, camaradas nobres e igualitários, num mundo ideal onde nunca mais fosse possível existirem homens que explorassem outros homens.
Ora, surpreendentemente, em vez de terem criado esse belo mundo novo dos “amanhãs que cantam”, alguns países houve em que se verificou a “perversão do poder absoluto comunista”, que, não obstante a lendária tolerância que caracteriza sempre esses regimes de verdadeira esquerda, resultou na mais gigantesca e incompreensível tragédia de todos os tempos – se somarmos os seres humanos exterminados na imensa China, na União Soviética, Coreia do Norte, Vietname, Cambodja, Europa de Leste, África (Angola e outros), Afeganistão, América Latina (Venezuela e outros), etc.
Até mesmo neste nosso brando e doce Portugal, durante o célebre PREC de 1974/75, quando o país teve um governo revolucionário liderado pelo general Vasco Gonçalves (ou “camarada Vasco”), comunista não assumido, tivemos claros sinais do que seria uma governação toda ela do PCP (o BE só veio a nascer mais tarde), que teria sem dúvida justificado uma guerra civil – a qual foi felizmente travada e evitada a tempo, quando, em 25 de Novembro de 1975, os militares dos Comandos (dirigidos pelo coronel Jaime Neves e sob orientação do general Eanes) abortaram a tentativa de golpe da extrema-esquerda, sem matarem ninguém. E os portugueses puderam, enfim, eleger uma nova Assembleia que daria origem ao primeiro governo classificado como democrático – em que o PCP teve a sua primeira decepção eleitoral, pois acalentava a esperança de ser um dos partidos mais votados e, incrivelmente, não foi.
É claro que, graças à decisão do MFA de conceder ao PCP o favor de não ser liminarmente excluído do recém-nascido “regime democrático português” (e de acordo com os dirigentes da então União Soviética, que nessa altura, aliás, só se mostrou interessada em ficar com o domínio das principais ex-colónias lusitanas em África, mas não do Portugal europeu), e graças também ao longo treino dialéctico que houve entre 1974 e agora, todos estes factos e sentimentos tornaram-se cada vez mais longínquos, “diferentes” e ténues. Chegou-se assim ao ponto de a generalidade dos portugueses (mesmo os que eram democratas genuínos já antes do 25 de Abril de 74, e não fictícios) ter deixado de pensar e de sentir que os “confrontos ideológicos” entre comunistas e não-comunistas, que no PREC tinham importância e acutilância enormíssimas para quase todos nós, foram-se esbatendo, e hoje já praticamente ninguém se preocupa, liga a menor importância ou diz uma única frase “desagradável” sobre estes assuntos. Por outras palavras: o longo processo de branqueamento do real perigo que o comunismo representava, precisou de muito tempo e teve de passar por numerosos conflitos e peripécias, mas, por fim, foi conseguido, de tal modo que a maioria dos portugueses está convencida que se trata dum regime e dum partido absolutamente inofensivos – tal como a própria Constituição, implicitamente, reconhece e confirma.
Pelo contrário – e isso é que me parece incompreensível e mesmo anedótico -, a nossa tão louvada Constituição atribui ao antigo “regime salazarista” uma perigosidade incomparavelmente maior do que aquela que teve (e, digo eu, continua a ter) o regime comunista, chegando ao ponto de interditar a existência legal, no nosso país, de um partido que confesse orientar-se por adesão a valores anticomunistas, nacionalistas e católicos semelhantes aos de Salazar, que designa acintosamente por “fascistas”- como se o Estado Novo tivesse alguma semelhança com os regimes criados ou liderados por Franco e Mussolini.
É por saber que existe, no actual sistema político nacional, esta situação que a meu ver é demencial e deliberada, e ter consciência da sua aparente falta de importância no nosso jogo político, que fiz questão de vir agora, quando estamos em vésperas destas específicas eleições legislativas, lembrar aos eleitores portugueses que a verdade das coisas não tem nada a ver com a imagem que os políticos dão dela nas suas declarações.
Por outras palavras: senhoras e senhores eleitores, por uma vez não se deixem enganar de novo quanto à pretensa bonomia que as palavras dos líderes do PCP e do BE deixam transparecer, pois é tudo falso, perigosamente falso. Não sejam deles cúmplices, a menos que estejam realmente conscientes do seu verdadeiro significado, e queiram colaborar nesses projectos de poder ínvios.
Quando o líder do actual PS, António Costa, a partir de 2015 escolheu o PCP e o BE como os únicos parceiros com quem aceitava governar, isso, só por si, definiu-o, como político que pretende governar o país com base em determinados valores ideológicos, que são os que conhecemos e não outros quaisquer.
Eu sei que, a partir de Sócrates, o PS passou a ter identidade bem diferente da que tivera desde que foi criado. Por muito hábil que Costa seja, e perito em endrominar as pessoas, é bom que ninguém se esqueça que ele, além de muitas outras coisas, foi durante anos o seu braço direito e, é claro, o seu mais entusiástico apoiante político. Isto não quer dizer que sejam muito parecidos como pessoas. Mas quer dizer que, cada um à sua maneira, ambos eles tendem a abusar do poder político que conseguem obter, e tornar-se, de um modo ou doutro, “donos disto tudo” – como tem realmente acontecido, e os exemplos abundam -, fazendo com que o poder judicial passe a estar submetido ao poder político e privando da indispensável independência as diversas entidades a quem cabem os mecanismos de regulação. E tendem, também, a rodear-se de ‘yes people’, que só por milagre serão as melhores escolhas para o bem da governação nacional.
Pelo menos num sentido, José Sócrates, embora a maioria dos portugueses (em que me incluo) esteja convencida da sua propensão compulsiva para a corrupção e a mentira, teve a meu ver uma faceta que acabou por dar melhor resultado: criou muitos anticorpos contra si, mesmo na comunicação social, daí que muitos jornalistas tivessem passado a ser capazes de se referir a ele, pela primeira vez, com a isenção e o sentido crítico que se esperam de qualquer jornalista que preze a sua profissão. Ao passo que Costa, sendo também, a meu ver, bastante medíocre como governante e primeiro-ministro, tem sido suficientemente habilidoso e cuidadoso de forma a ter sempre o apoio acrítico dos media, por piores que sejam as medidas que impõe. E acabou por fazer também muito mal ao país, talvez sem correr o risco de prisão, sempre com as suas sorridentes promessas não cumpridas e não cumpríveis, tendo deixado o país num estado cada vez mais na cauda da Europa, sem rumo nem esperança de melhorar, e uma sociedade sem saúde, capacidade crítica nem energia vital, além de, também, endividadíssima.
A avaliar pelas preferências que as sondagens de intenções de voto continuam a detectar nos eleitores portugueses (o que vale é que estas sondagens tendem sobretudo a induzir em erro os eleitores), o narcisismo e energia que são dissipados por A. Costa para manter o poder por todos os meios, e a sua capacidade propagandística, têm bastado para convencer milhões de portugueses. Ainda assim, tudo parece indicar que um número crescente de portugueses está finalmente a considerar, pela primeira vez, mudar o seu sentido de voto, cansados e fartos que estão de se tornarem cúmplices de um sistema político rico em jogadas sujas que os faz, por fim, sentir que será menos estúpido e mais saudável arriscar uma mudança de sentido de voto, optando por apostar antes em alguém que, sendo tudo menos um habilidoso amoral, tem (além de muitos outros méritos) a enorme vantagem de ser, pelo contrário, uma pessoa tecnicamente bem preparada e intelectualmente muito mais honesta e séria, frontal e não obcecada pelo poder a qualquer custo.