Vítor Ramalho: “Assistimos a um tsunami nestas eleições”

O ex-deputado socialista lamenta que partidos como o CDS e o PEV deixassem de ter representação parlamentar. Reconhece que estamos perante um Parlamento atípico e diz que o resultado de maioria absoluta do PS deve-se ‘ao mérito a quem se apresentou como candidato a primeiro-ministro e que é o líder do partido’. 

Para Vítor Ramalho é imperativo que a sociedade civil intervenha neste novo ciclo político e que o país aposte verdadeiramente em desígnios nacionais. A reforma da Justiça é importante, assim como a aposta na Defesa, sem esquecer o papel dos jovens e a ligação aos países de língua portuguesa. O também presidente da UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) recorda a sua amizade com Mário Soares e as diferenças que existem no PS. 

É membro da Associação Cívica Participar +, que chamou a atenção para a importância do voto nestas últimas eleições…

A Associação Participar + é transversal e pretende integrar personalidades de vários quadrantes – religiosos, civis, políticos – mas com uma característica comum, que é a de chamar a atenção para a necessidade de estabelecer uma estratégia para o país. Todas as pessoas que foram contactadas, que fazem parte da fundação e ao todo são 25, concordaram com este objetivo. Fizemos um manifesto e realizámos três iniciativas, todas com esta ideia de analisar quais são as prioridades para o país. O primeiro e o segundo colóquio abordaram questões controversas que o país tem e como pode ultrapassá-las e o terceiro sobre a juventude. Além disso, fizemos intervenções públicas, antes das eleições. A última foi no Nascer do SOL, em que fizemos um apelo à participação, que felizmente resultou. Também foi muito positivo que tivesse existido debates extensos – em termos de quantidade – para que as pessoas ficassem muito mais informadas. Foram 30 e tal debates, constatámos que as pessoas ouviram porque tiveram uma audiência enorme. Foi muito positivo.

Acha que contribuiu para que a taxa de abstenção tenha sido mais baixa?

Exatamente e, ainda por cima, em tempos de pandemia, em que havia cerca de um milhão de pessoas confinadas. Mas a Associação Participar + vai continuar a intervir e, agora mais do que nunca, pois entendemos que se justifica realizar iniciativas do mesmo tipo.

Está previsto fazerem algum apelo ao Governo no que diz respeito à estratégia para o país e que deverá ser levada a cabo pelo novo Executivo?

Não temos pretensão de dar conselhos ao Governo. Temos feito várias iniciativas, publicámos um caderno que, no fundo, é um livro, em que o primeiro prefácio foi feito pelo atual Presidente da República, o segundo pelo presidente da Assembleia da República e vamos solicitar ao primeiro-ministro que escreva o prefácio do terceiro, que correspondeu ao colóquio realizado no Porto. O que está em causa? A consciência de que a sociedade civil portuguesa não tem força. Há a necessidade de reforçar o contributo da sociedade civil portuguesa, relativamente aos temas que estão relacionados com os desígnios nacionais e que são constitucionalmente tutelados.

Desde logo, o problema da Justiça, que é fundamental, a questão da Educação e o problema da Defesa. São três temas que estão relacionados com os desígnios nacionais, sobre os quais temos uma posição que podem servir para debate e, nesse sentido, podem ser aproveitados pelos órgãos de soberania. Com as legislativas vamos iniciar um novo ciclo e para nós é completamente claro que haja a compreensão que este novo ciclo tem uma nova componente política e tem uma outra componente que resulta interna e externamente do nível económico e da afirmação de Portugal no mundo. Um novo ciclo porquê? Porque os sismógrafos falharam em toda a linha, por razões de vária ordem. Quando falo em sismógrafos falo nas entidades que fazem sondagens e o tsunami foi inesperado.

Porquê um tsunami?

Houve partidos, desde logo o CDS, fundador do regime democrático, que deixou de ter representação parlamentar. Esta onda telúrica resultante do tsunami levou a que um pilar da própria democracia desaparecesse em termos de representação parlamentar. Outro partido, Os Verdes, também deixou de ter representação parlamentar e um partido que foi muito importante na luta contra a ditadura, o PCP, de 42 deputados que teve em 1976, logo a seguir às primeira eleições, passou para 6 deputados. Ora, isso representa uma grande alteração do ponto de vista político, na representação parlamentar.

Também o próprio Bloco de Esquerda, que tinha 19 deputados – foi o máximo que tinha atingido –, passou para cinco. Ou seja, perdeu praticamente um quarto da sua presença representativa no Parlamento. Em relação ao PSD, apesar de ter tido largas dezenas de milhares de votos a mais do que nas anteriores legislativas, perdeu um líder coerente e sério, que não se serviu da política para fins pessoais, que estimo e de quem sou e serei amigo. Além disto, o que se passou também? Passou a haver uma maioria absoluta e a representação parlamentar – além dos dois partidos que foram mais representativos: o PS e o PSD – sofreu profundas alterações, do ponto de vista da própria representatividade.

E singularmente porque é que houve uma alteração política significativa? Porque o terceiro partido mais votado é um partido populista que tem uma representatividade de tal ordem que ficou nesse lugar e entrou para o Parlamento mais um grupo parlamentar que antes não existia, que é a Iniciativa Liberal.

Estamos perante um Parlamento atípico…

É uma mudança muitíssimo grande relativamente ao que existia. Quanto à maioria absoluta do Partido Socialista, não podemos negar, de maneira nenhuma, o mérito que cabe a quem se apresentou como candidato a primeiro-ministro e que é o líder do Partido Socialista. Além do mérito enorme de António Costa, sou insuspeito e ele sabe disso, valorizo o que fez nesta campanha. Toda a gente dizia que ia dar mau resultado, mas ele não afrouxou. Mas agora o Presidente da República vai ter um papel diferente. Conseguiu no primeiro mandato apaziguar e criar distensão na sociedade portuguesa, agora o seu papel na fase atual é estimular estes desígnios nacionais do país e o acompanhamento disso é vital.

No entanto, perante este quadro de maioria absoluta, do ponto de vista da realidade nua e crua dos factos, é óbvio que a vigilância ou a fiscalização por parte dos partidos que estão na oposição é mais débil do que aquela que existia, como é evidente. A própria constituição estabelece princípios, como o de reserva relativa da Assembleia da República e que pode ser do Governo essa competência, desde que haja autorização e essa pode ser dada pela própria maioria. Ou seja, algumas matérias de competência relativa da Assembleia da República podem passar com simplicidade a serem matéria do Governo.

Há de facto um risco, tal como aconteceu em outras maiorias absolutas que houve no país em determinados períodos, que o Governo, suportado pela maioria da mesma cor, passe para o partido que o sustenta. E a oposição, que neste caso é mais fraca, do ponto de vista de representação poderá, não por alcançar essa representatividade na Assembleia, mas alcançar na rua. Isso quer ao nível da extrema-direita, representada pelo Chega, quer naturalmente pelos partidos mais à esquerda do Partido Socialista.

Essa contestação será inevitável?

É por isso que, a meu ver, é muito acertado e mesmo justo que, num quadro muito difícil, haja um diálogo com todas as forças políticas. Quando ocorre um tsunami – e houve um tsunami – e como nenhum partido representa a totalidade da nação, numa situação destas como é que se acode? Procurando que todos os cidadãos e pessoas respondam à recuperação da reposição do edifício do futuro. E o que deve conter esse diálogo? Desde logo, devemos responder à reposição da eficácia do aparelho de Estado e dos serviços públicos que foram afetados pela pandemia. A pandemia não afetou apenas a saúde, também determinou a afetação dos serviços públicos, debilitando não só esses serviços, mas também o próprio Estado. 

Acha que se este último Governo tivesse tido ministros do PCP e do Bloco de Esquerda teria evitado esta crise política?

Não era possível, porque para haver a entrada de membros de outros partidos tinha de haver uma coligação formal do Governo, o que nunca aconteceu. 

Estava à espera que o PS vencesse por maioria absoluta?

Como este Governo tratou bem a pandemia, o povo português reconheceu esse trabalho nas eleições. Agora há que abordar questões que são determinantes. Primeiro porque o papel do Estado não pode ser negligenciável, segundo porque há domínios que o próprio Estado tem de salvaguardar, desde logo, naquilo a que se chama de bazuca. Ou seja, tem de haver um acompanhamento rigoroso, transparente e fiscalizado. E isto tem a ver com o Estado e obviamente também com a pandemia. Quer queiramos ou não, os serviços ficaram mais debilitados. Se me perguntar em todos os setores? Digo que sim.

Isto é uma tarefa de monta, mas há outras tarefas de monta que têm de ser feitas e que estão relacionadas com a necessidade, também por efeito do tsunami que agravou esta situação de natureza pública, que é o de cuidarmos das pessoas. Desde logo, cuidarmos da juventude. Os jovens têm baixos salários, são pessoas hoje muito habilitadas – quando se diz que são a geração mais preparada de sempre é verdade – e, por outro lado, têm que atender o futuro e o futuro está nos jovens.

Até porque, Portugal tem uma média etária muito elevada, cuidar dos mais velhos é óbvio, preservar os direitos que eles também têm é obvio, salvaguardá-los é óbvio, mas é preciso igualmente olhar para a juventude. E isso implica saber falar aos jovens, captá-los, abrir os partidos, além da própria juventude partidária, que não pode estar fechada em si.

O que não tem acontecido até agora?

Nas funções que exerço tenho tido experiências verdadeiramente ricas do ponto de vista do contacto com os jovens. Sou socialista e penso que serei até morrer porque defendo os princípios socialistas, mas quando um jovem familiar meu que é da Iniciativa Liberal me solicitou para debater com Cotrim de Figueiredo, antes da campanha, aceitei fazê-lo. Falei sobre o que é o socialismo, porque os jovens que têm hoje 20 anos, 30 anos, 40 anos não viveram o 25 de Abril, nem a razão disto tudo.

Foi um debate muito interessante, obviamente contraditório porque nós socialistas somos liberais políticos, mas não liberais económicos e verifiquei que há esta necessidade de debate com a juventude que não pertence aos partidos ou que pertencendo é de outros partidos. O debate foi muito rico porque perceberam seguramente aquilo que disse e, pelo menos, se não estão de acordo ficaram a conhecer realidades novas. Vou dar outro exemplo: há um movimento criado por jovens que se chama MCP (Movimento Cuidar de Portugal), herdado de um estratega militar já falecido, o comandante Virgílio de Carvalho, e vieram-me desafiar para um debate.

Disse que aceitava se escolhessem uma pessoa que não viesse dos socialistas e falaram-me de Jaime Nogueira Pinto. Aceitei, é uma pessoa do meu tempo, tem uma visão diferente e somos amigos. Fomos debater questões que estão relacionadas com a estratégia do país e quando perguntei porque é que vieram falar comigo, responderam que tinham convidado uma pessoa do meu partido, jovem, mas que não quis debater porque entendeu que o movimento é de direita, o que consideravam que não era verdade porque tinham jovens de vários partidos. Disse que era errado o que esse jovem fez e se porventura é do meu partido então condeno essa situação.

Isso revela que essa abertura relativamente à juventude deve ser cuidada e aprofundada, não deve ter tabus porque os jovens não viveram a democracia, como os mais velhos viveram. Já a conheceram como está e conheceram os defeitos que todas as democracias têm. Como dizia Churchill, é o melhor sistema, mas também é imperfeito. E essa prioridade deve ser grande porque é a partir daí que podemos olhar para o futuro. Se os nossos jovens continuarem a sair porque têm remunerações mais altas no estrangeiro cria-se uma situação complicada. Estas eleições o que é que possibilitaram? Os debates ressuscitaram o interesse da política, até nos jovens – não é por acaso que a Iniciativa Liberal teve o resultado que teve. 

Mas nem todos veem essa prioridade…

Tive sempre este pensamento. Fui durante seis anos presidente da Federação do Distrito de Setúbal, entre 2006 e 2011, e procurei chamar os melhores para o secretariado da Federação, pessoas que, na altura, não eram muito conhecidas e hoje são todas: Pedro Marques, Ana Catarina Mendes, Eduardo Cabrita, Eunice Pereira, Catarina Marcelino, Teresa Almeida, entre outros. São pessoas que por mérito próprio subiram. Mas tive essa preocupação, como também tive de fazer universidades de verão pelo Partido Socialista, como presidente da Federação, em que convidei pessoas, como Freitas do Amaral, Ângelo Correia, políticos de vários partidos.

Nessa universidade de verão, promovida pelo Partido Socialista, não houve nenhum partido que não tivesse sido convidado para assistir. Tudo para dizer que, nesta fase, o país tem de responder a desígnios nacionais que têm a ver com o seu crescimento e com respostas como olhar para o Estado e torná-lo mais eficiente por causa da situação que se criou, mas também olhar para a Justiça. Fui advogado e a Justiça não está mal, está muito mal.

Por causa da lentidão dos processos?

Não é só por causa disso. Toda a estrutura judicial portuguesa tem de ser pensada e antes de mais tem de ser feito um estudo de direito comparado entre o direito anglo-saxónico democrático e o sistema continental europeu dos países democráticos. Se essa comparação for feita, irão ver que as conclusões a que se chegam são diferentes umas das das outras. Evidentemente que os agentes judiciários, quer seja o Ministério Público, quer sejam os juízes, fazem o seu melhor. Todos fazemos o nosso melhor nas profissões que exercemos, mas quando o enquadramento não responde à história do próprio país e às razões das mudanças que houve, então isso é sinal que deve ser analisado. Um homem pobre em Portugal está desprotegido, se quiser litigar e defender um direito seu e se não tiver posses está desprotegido.

O apoio judiciário em Portugal é quase inexistente. Devemos chamar as coisas pelos seus nomes e acho que os políticos têm uma certa responsabilidade porque têm o voto do povo. E não deve haver nenhum problema nisso, em que as instituições devem gozar de independência, como são os tribunais, mas possam ser sujeitas a controlo de natureza política, pois não significa imiscuir-se.

Se reparar nos estudos de opinião que se fazem sobre os políticos, os partidos etc., hoje a Justiça está mais abaixo nas sondagens. Alguma coisa se passa. Isso tem de se mudar e essa mudança é feita através do diálogo, com inteligência porque a Justiça é a base da democracia. É aquela que salvaguarda os direitos das pessoas e o direito penal é um direito público, não é um direito privado. 

Outra estratégia que defende diz respeito a Portugal, enquanto país…

Nós Portugal o que somos? Somos um país com uma alma de gigante. Este pequeno país fala a quarta língua mais falada do mundo. A primeira língua mais falada do Atlântico sul, a quarta língua mais utilizada nas redes sociais. Isto é incrível e também é importante do ponto de vista económico e a isto ainda acrescente a importância de fazermos fronteira com o mar. É pelo mar que se fazem 95% das transações do comércio mundial. Então não é possível concertar esforços dos nossos países para se criar empresas conjuntas, em que todos beneficiem?

Um desses exemplos pode ser o caso dos contentores, outro será criar mecanismos de turismo para beneficiar todos os países. As zonas mais paradísicas do mundo são os Bijagós da Guiné, é São Tomé e o Príncipe, é toda a costa de Moçambique e a parte da costa da Angola, para não falar em Timor e no Brasil. Não é possível olharmos para isto e afirmarmo-nos através de esforços conjuntos? O regime fascista tinha uma companhia nacional de navegação, obviamente que o objetivo era outro mas também tinha turismo. Temos de pôr a fasquia alta.

Há uma frase de Keynes: ‘Quando se quer atingir um objetivo económico de longo prazo, a flecha e o arco têm que estar bem alto porque pela força da gravidade vai fazer pressão’. Ou seja, se pusermos a flecha alta e o arco para atingir um objetivo final sabemos que vai haver pressões de toda a ordem, até de natureza económica. Mas a política é um ato de coragem. Não apenas do ponto de vista do exercício da política, no sentido restrito do termo, mas no sentido do P grande.

E a este nível, em termos de afirmação de Portugal no mundo, temos de ser mais ousados, com uma conceção universalista e tolerante que é a conceção dos povos de língua oficial portuguesa. E não nos podemos esquecer que o decréscimo da população e a diminuição dos nascimentos para metade nos últimos quarenta anos implica com urgência celebrar acordos de imigração com países de língua portuguesa bem estruturados. 

Acha que o problema é a falta de vontade?

Temos tido outras prioridades e ainda não entendemos que, neste mundo global e em mudança profunda, quer queiramos ou não, o papel da Europa está-se a desvalorizar. Somos europeus e que mais-valia podemos dar se não aquela que resulta das relações com África e das relações ibero-americanas? Já viu o que é que aproveitaria a Europa? No início em que aderimos à União Europeia isso foi feito. Não é por acaso que João de Deus Pinheiro do PSD teve o pelouro das relações com países estrangeiros. Não é por acaso que a primeira cimeira Portugal-União Europeia-África foi feita pelo Governo de António Guterres. A partir daí sabe quantas cimeiras já foram feitas? Nove, porque a União Europeia percebeu que era importante.

Daí achar que devemos jogar com o mar. Neste momento, nas Nações Unidas está-se a discutir o alargamento da plataforma marítima continental. Se isso for aprovado, a plataforma marítima continental de Angola vai tocar com a do Brasil. Já viu a dimensão da plataforma continental marítima de Portugal com a Madeira e com os Açores? Passa a ser em todos os nossos países a quarta zona maior exclusiva do mundo. 

Portugal ganharia assim mais revelo em comparação com os outros países europeus…

Como é evidente. Esta questão da afirmação de Portugal no mundo é vital. Devemos cuidar disto e depois também devemos cuidar de quem nos representa nesses países. Isso é muito importante porque as relações com África são relações afetivas, não são relações mecânicas. É preciso conhecer pessoalmente as pessoas. Já tenho idade para dizer isso porque a minha vida agora é um pouco procurar transmitir o que aprendi, não tenho ambição nenhuma a não ser isso. Mas posso dizer que em Angola não há nenhum dirigente político angolano que não saiba que sou angolano.

Não me tratam como português quando chego, porque sabem que estive do lado deles quando doía. Isto é uma riqueza que vai desaparecer e sabe porquê? Porque as pessoas morrem. Tive tanto essa perceção que a primeira coisa que fiz quando cheguei à UCCLA foi reeditar todas as obras da Casa dos Estudantes do Império, que o SOL fez em parceria connosco. Editámos um milhão de livros, distribuímos por tudo o que é sítio. Ao publicar estas obras cria-se uma relação afetiva que fica para a história. É por essa razão que quando fui vice-presidente da Cruz Vermelha portuguesa, Maria Barroso foi convidada pela conferência episcopal da África Austral para ir a Moçambique.

A primeira zona de paz foi feita em Moçambique, antes dos encontros de Roma, e foi ela que fez, com o meu modesto contributo. E foi de tal maneira que o Presidente Chissano, com quem falei, e o Presidente Dhlakama, com quem também falei, estavam em guerra e fizeram o prefácio desse livro. E autorizaram os dois que a paz fosse possível ali. Havia a necessidade disso e havia necessidade que alguém que os conhecesse bem falasse com eles. Maria Barroso fez esse papel na Cruz Vermelha Portuguesa. Quando vê as fotografias da princesa Diana a desmontar umas minas – o trabalho de levantamento das minas foi feito a seguir à guerra em 2002 – em Angola foi feito pela Cruz Vermelha internacional, mas quem dirigiu isso foi a Cruz Vermelha Portuguesa a convite da Cruz Vermelha Internacional, com mais nove cruzes vermelhas de outros países, e acompanhei-a lá. Esse relatório deu lugar à desminagem em Angola.

Quando houve paz em Bicesse e quando vi que o mundo bipolar tinha caído, reuniu-me com mais quatro amigos angolanos de diferentes origens e disse: ‘a paz tem de vir para Portugal’. Desse encontro só estamos dois vivos. Na altura era consultor do Presidente Mário Soares e juntámos 2.500 personalidades na FIL, a 26 de abril de 1990, e este pano de fundo foi aproveitado por Durão Barroso e, bem, e Bicesse teve lugar. Sabe quem participou diretamente depois disso quando viu que estava a crescer? António Monteiro, que era chefe de gabinete de Durão Barroso, e Martins da Cruz, que foi meu colega de curso em Direito e era assessor diplomático do Presidente Cavaco Silva. E a paz veio mesmo para cá, feito pelo mérito depois do Governo. Nestas questões de desígnios nacionais não olho para Governos.

O meu colega Martins da Cruz sabe que não penso como ele e António Monteiro também, mas são meus amigos. Vim de Angola para cá com 16 anos, fui proibido de voltar a Angola por razões políticas, acabei soldado base a varrer paradas e já era licenciado em Direito e até advogado. Gosto muito da minha terra, tenho uma dupla pertença. Fui a única pessoa que passou por Governos portugueses e a pedido do embaixador estava em Portugal a comemorar o 4 de fevereiro. Sabe o que disse ao embaixador? ‘Estão em falta comigo’, porque sabe que sou angolano, mas também sou português. ‘Faça-me o favor de tratar o meu bilhete de identidade porque sou angolano e sabe que sou’.

Ele disse-me: ‘Tem mesmo razão’ e ainda lhe disse que ele sabia que falo com todos os partidos de lá e não faço distinções, e ele que respondeu que sim. ‘Sabe que escrevo para o Novo Jornal de 15 em 15 dias e digo sempre a verdade, pode não gostar o Governo, pode não gostar o Presidente da República’. Ele respondeu: ‘Sei porque lemos sempre os seus artigos’. Isto é outra outra questão, que é a afirmação de Portugal no mundo. 

Uma afirmação que tarda em ser cumprida…

Mas esta questão também tem a ver com a educação. Isto que estou a dizer tem de ser transmitida à juventude, ou seja, que somos um país sem complexos nenhuns. Não somos um quinhão da Europa, a nossa alma é universalista e tolerante, com comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Essa é a riqueza que temos. Temos de transmitir aos jovens a alma do que somos, do país que somos, sem complexos. Fui preso por lutar contra o colonialismo, não pode haver aqui complexos nenhuns.

Os jovens têm que perceber o que é o país, simultaneamente com a dimensão de darmos conhecimentos da evolução tecnológica do mundo, do perigo que há e da necessidade de serem apetrechados tecnologicamente. Não podemos estar a mudar os programas educativos ao sabor dos partidos que são o suporte do Governo. Todos os partidos têm de estar de acordo com isto, tal como deverá acontecer na Justiça e tal como na Defesa nacional. Por exemplo, fiz tropa, fui preso e reconheço a importância brutal da disciplina militar porque cria ordem no bom sentido do termo. Desapareceu o serviço militar obrigatório, tudo bem, é sinal dos tempos, mas não há substituto nenhum para os jovens? A Suíça tem serviço militar e é um país que não tem mar, nem está em guerra. Também tem Marinha e como não tem portos é no norte da Europa que têm o porto.

Estas coisas têm que ser ditas, têm que ser sabidas. A história é fundamental e significa educação, mas com exemplos concretos. Porque é que a afirmação da política externa é um desígnio nacional? Porque é que a Defesa também o é? Estou a dar exemplos concretos.

Diz que não devemos ter complexos, mas a questão dos Descobrimentos tem sido cada vez mais polémica…

Algumas sem razão nenhuma. Nem entro, por exemplo, pela destruição de estátuas porque isso é uma selvajaria. O radicalismo não existe só da parte do partido Chega. Há outros radicalismos de pessoas individualmente consideradas. Isso deve ser combatido. Não tenho complexos rigorosamente nenhuns. Sou anti-colonialista, acho que o ser humano é igual. A história não se renega, sendo boa ou má. Não se pode apagar a história, pode-se é analisá-la.

Por exemplo, numa estátua onde está o elogio deve-se mantê-la mas também se deve explicar quem foi aquele homem, realisticamente falando, sem complexos. Não se pode apagar a história. Acha que se pode renegar a mãe? Não se pode. Mas a pátria é nossa mãe também. Evidentemente quando se fala de personalidades colonialistas devem ser criticadas, praticaram barbaridades, não se pode nem se deve esconder. Mas isso não pode dar lugar a que essa gente seja abatida da história.

E a par destes desígnios nacionais que falou, também aponta outro, que é a reindustrialização…

Além da questão interna, do crescimento da economia, da valorização dos jovens e da valorização dos salários, há essa questão fundamental que é a reindustrialização deste país. Há escassos 30 anos tínhamos quase 90% do domínio nacional sobre a banca, tal como acontecia com as seguradoras. Neste momento, temos 7 ou 8%. Isto não pesa a nível internacional. Na fase da troika, com os exageros das privatizações do Governo de Passos Coelho, privatizou-se tudo e vendeu-se tudo aos estrangeiros. Isso não devia ter acontecido. Pode-me dizer que estava previsto na troika, mas não estava.

No memorando estava indicado que o país tinha que privatizar até ao limite de cinco mil milhões e citava várias empresas, como se entendeu que todas essas empresas eram para ser privatizadas não se olhou para os cinco mil milhões e privatizaram-se todas e deu um encaixe de cerca de 13 mil milhões de euros. O que temos de empresas estratégicas sob domínio nacional? Só temos as Águas de Portugal, na alta. E a Caixa Geral de Depósitos – com todo o respeito e que deve ser preservada como é evidente – hoje a nível internacional é uma banqueta. Tem que se fazer a reindustrialização. 

Acho que isso é possível? 

É. Pensando e ver em quais os setores em que deve ser feito. Por exemplo, o Estado tem disperso uma série de participações, então é necessário fazer uma conceção estratégica para ver o que pode ser preservado ou recriado. Não é fazer como o Bloco de Esquerda, que diz ‘vamos renacionalizar tudo’. Isso não é possível. Como é que o país pode ter uma relação sólida e económica com os países de língua oficial portuguesa se não tivermos empresas estratégicas que podem intervir na energia ou no saneamento básico nesses países? Isso é feito hoje felizmente ainda pelas empresas privadas que restam e espero que continuem, como a Mota, ao nível das obras públicas.

Outro exemplo, uma das obras emblemáticas de Angola – a chamada Variante de Cubal – assenta em 17 pontes por onde passa o caminho de ferro de Benguela. Essas pontes foram dirigidas por um discípulo de Edgar Cardoso, que era o meu irmão, que morreu há dois anos e era engenheiro civil. Essa obra está na capa do livro das cem maiores obras feitas por Portugal no estrangeiro. Marcos Ramalho tinha 27 anos quando dirigiu essa obra e quando começou os americanos disseram que seria impossível ser realizada no prazo que estava fixado. A obra foi encurtada três meses. Esta realidade tem de ser recriada. Temos de ter ambição e este é o momento.

Era muito próximo de Mário Soares e chegou a escrever uma livro a recordar essa amizade. Acha que atualmente faltam políticos com essas características?

Fala-me de um homem com quem privei muito e fui amigo. E ele correspondeu sempre à amizade que lhe dei. Conheci muita gente política no estrangeiro e nacional, mas nunca conheci ninguém como Mário Soares. No outro dia, na publicação do número zero das obras dele pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, o Presidente Marcelo, que esteve presente, deu a entender isso.

Vou dizer o que ele me dizia e isso diz tudo. Quando lhe perguntei como tinha subido tão novo e quando havia pessoas de referência na oposição, ele respondia: ‘Toda a gente sabe que havia e que eram superiores a mim, provavelmente mais inteligentes, mais capazes, não tinham era uma coisa que era determinante na política, e nunca se esqueça disso: a coragem e associada à coragem que sempre tive juntava outra coisa que nasceu dela: sempre entendi que um homem deve fazer aquilo que tem que fazer em termos do seu objetivo de vida pelo país, nunca hesitei, mesmo que ficasse sozinho’. Por isso, pessoas como Mário Soares realmente são exceção.

E fazem falta pessoas assim?

Fazem muito falta. Lembro-me muitas vezes dele. Mário Soares não só tinha coragem, como era um homem que amava muito o seu país. Ele até era humilde a dizer isso. E mesmo quando era necessário tomar decisões contra a linha do partido não hesitava. 

Encontra agora um PS diferente…

É inevitável, o mundo mudou. Este mundo é diferente. 

Ocupou o cargo de Secretário de Estado Adjunto da Economia de António Guterres, tendo-se oposto ao ‘Orçamento limiano’. Uma questão que voltou agora a ser falada com a ameaça de chumbo deste Orçamento que depois foi chumbado…

Mas não se recordou que a única pessoa do PS que se opôs fui eu. 

Acompanhou de perto o Governo de Bloco Central, que também voltou a ser falado nestas eleições. Compreende a rejeição desta solução?

Nessa altura, quando Soares fez o Bloco Central, o país estava na bancarrota. Fez uma coligação e fez um referendo dentro do partido sobre essa coligação. O país estava de tanga, veio o FMI. Dois anos depois, o país estava a aderir à União Europeia e tinha preenchido os critérios todos. Foi um Governo fantástico. E Mário Soares deu instruções ao FMI que quem mandava em Portugal era o Governo português e que não havia entrevistas públicas de responsáveis. O Governo tomou posse em junho de 1983 e em 6 de junho de 1985 estava a assinar na Torre de Belém a entrada de Portugal na União Europeia.

Perfil e percurso

Vítor Ramalho nasceu em Angola e reclama a pertença a este país e a Portugal. Foi co-organizador do 1º. Congresso dos Quadros Angolanos no Exterior, em abril de 1990, antecâmara dos acordos de paz de Bicesse para Angola, que juntou na FIL, em Lisboa, 2500 individualidades e representantes ao mais alto nível de governo e partidos angolanos e do governo português.

Em 1975 foi convidado para Ministro do Trabalho de Angola, o que não se concretizou, dado o início da guerra civil, vindo, em 1984, a ser Secretário de Estado do Trabalho do governo do Bloco Central, presidido por Mário Soares, de quem veio a ser assessor na Presidência da República nos dois mandatos. Ocupou ainda o cargo de Secretário de Estado Adjunto da Economia de António Guterres, tendo-se oposto ao Orçamento limiano, razão por que declinou o convite posterior para ser secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro.

Com Maria Barroso exerceu o cargo de Vice-Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, contribuindo com ela para a paz na região de Ressano Garcia antes dos Acordos de Roma, tendo Maria Barroso escrito e divulgado a propósito o livro Viagem a Moçambique.

Foi deputado pelos círculos de Vila Real e Setúbal, dirigindo a Federação do PS em Setúbal, de 2006 a 2011, período em que integraram os órgãos federativos a que presidia, militantes mais tarde publicamente conhecidos que vieram a fazer parte dos governos de António Costa.

Em 2008 foi eleito secretário-geral da UCCLA em Assembleia Geral, de que fazem parte hoje 55 cidades de todos os países de língua portuguesa, sendo reeleito desde então.

Em parceria com o semanário SOL e como Secretário-geral da UCCLA, promoveu em 2014/2015 a reedição de um milhão de exemplares dos livros da Casa dos Estudantes do Império, extinta pela PIDE em 1965. 

É presidente da Direção da Associação Cívica Participar +, fundada em 2020 por personalidades civis, militares e eclesiásticas, com sensibilidades diversificadas e transversais na sociedade.