João Jácome de Castro, médico endocrinologista, major-general à frente do Hospital das Forças Armadas e diretor de saúde militar, dirige desde o ano passado a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM). Com a pandemia a dar tréguas, reúnem-se por estes dias numas jornadas em Peniche para discutir as marcas na obesidade e diabetes destes dois anos centrados na covid-19 e os desafios para o futuro. No Dia Mundial da Obesidade, que se assinala esta sexta-feira, o médico de 58 anos sublinha que há novos tratamentos, mas mudar o estilo de vida é fundamental, o que exige planeamento e disciplina, aprendizagens caras a um militar de carreira. Sem querer comentar a guerra na Ucrânia, diz que os corpos da saúde militar estarão prontos para intervir se forem chamados a isso.
Assinala-se esta sexta-feira o Dia Mundial da Obesidade, considerada a epidemia do século XXI antes da covid-19 trazer de novo uma doença infecciosa para o centro das preocupações. Que marcas ficam para além dos ganhos de peso mais à vista?
Como muita gente tem assinalado, com o direcionar da máquina da saúde para a doença covid-19 deixou-se para trás outras doenças. Isto não é uma crítica: foi uma opção que provavelmente todos teríamos tomado e é fácil olhar para trás e dizer que naquele mês se podia ter feito mais consultas, mais cirurgias. Foi a opção tomada investir-se mais na doença covid-19 e não cabe agora assacar responsabilidades a ninguém porque estivemos todos a lutar pelo mesmo. Agora isso significa um atraso no diagnóstico, no acompanhamento e nas cirurgias e na obesidade isso é marcante. Outro lado é essa questão: o que aconteceu ao peso da população? O que aconteceu ao número de pessoas com diabetes? Demora algum tempo a termos esses dados, temos alguns estudos mas não temos essa análise completa.
Mas está convencido de que será visível um aumento?
Estou convencido de que vai aumentar um aumento da obesidade e da diabetes, sim. Agora o problema já existia: há muitas pessoas com obesidade e cada vez mais pessoas com obesidade e só isso do ponto de vista numérico e epidemiológico é algo que nos deve preocupar. E isso é tanto ou mais preocupante quando sabemos que ter obesidade é um fator grave para a saúde. As pessoas com obesidade têm um conjunto de doenças associadas importantes: doenças cardiovasculares, a diabetes, a hipertensão, a dislipidemia (colesterol elevado), maior risco de doenças malignas. Morrem mais cedo, vivem menos.
Quão mais cedo?
Um estudo norte-americano muito bem desenhado e com grande tempo de seguimento sugere-nos que as pessoas com obesidade vivem em média menos sete anos do que os seus pares, controlando os outros fatores de risco. Portanto, seguindo pessoas com mais de 40 anos, com os mesmos fatores de risco, pessoas com obesidade vivem em média menos sete anos. Mas, além disto, a obesidade tira muita qualidade de vida.
E não estamos a falar apenas da chamada obesidade mórbida.
Sim e isso é importante referir. Nós, médicos, às vezes temos a tendência de focar-nos nos aspetos clínicos mas a obesidade reflete-se em compromissos da vida social e de relacionamento muito para além da doença. As pessoas ficam mais deprimidas, faltam mais ao trabalho, os índices de felicidade são piores. Há estudos que mostram que pessoas com excesso de peso e com obesidade se sentem menos à vontade para entrar numa loja e comprar roupa, para trocar de namorado ou namorada, para ir ao cinema, para participar nas atividades das escolas dos filhos.
Um colega seu, o médico António Albuquerque, dizia esta semana que a obesidade foi relegada para segundo plano por ser considerada uma doença benigna. É uma ideia que tem raízes naquele provérbio de que gordura é formosura, num passado de maior privação alimentar?
Era algo dito meio a brincar, meio a sério, e o que sabemos é que há maior obesidade nos países mais desenvolvidos mas associa-se a falta de literacia e capacidade económica. Em Portugal temos estudos em que comparámos a evolução do excesso de peso e da obesidade desde os anos 60 até ao século XXI e verificámos que houve um grande aumento mas com esse gradiente socioeconómico. Nos países mais desenvolvidos, há mais obesidade mas as pessoas com mais capacidades económicas defendem-se melhor. E, indo ao encontro desse passado, pode também ser reflexo de as pessoas terem começado a comer mais e coisas a que não estavam habituadas como forma de afirmação social. Eu agora posso ir à pastelaria vou comer três bolos…
Era aquele hábito talvez mais anterior a estas crises de tomar o pequeno-almoço no café, um rissol ou um pastel de nata e uma bica, compensando infâncias em que isso não era acessível.
Sim. E quando quantificamos a situação percebemos a sua dimensão. Hoje o excesso de peso e a obesidade em Portugal afeta mais de 60% da população, sendo que em 30% são casos de obesidade propriamente dita. Mas como dizia há pouco, o melhor é falar do excesso de peso e da obesidade sem focar demasiado na obesidade mórbida. Ter quilos a mais, mesmo que não sejam muitos, muitos, muitos, já é mau. E se conseguirmos intervir mais cedo na história da doença, vamos ter maior probabilidade de sucesso.
Quando começa a doença?
Quando se tem excesso de gordura no organismo. A maneira mais fácil e clinicamente mais utilizada para o definir é a relação entre peso e altura, aquilo a que chamamos o Índice de Massa Corporal (IMC). Quando o peso a dividir pelo quadrado da altura dá um valor acima de 25 começamos a entrar no intervalo de excesso de peso. A partir de 30, temos a obesidade.
Quando se passa pela primeira vez essa linha é quando começa a história da doença?
Exatamente. E portanto temos cerca de 28% da população portuguesa com um IMC acima de 30 e teremos 65% a 67% com um IMC acima de 25, o que é uma brutalidade.
Quase se podia dizer que é hoje o normal.
É o normal no sentido matemático, mas não devia ser. Às vezes fala-se do peso ideal, se é mais assim ou assado e na medicina preferimos falar de um intervalo saudável. Mas a noção de peso ideal começa nos anos 30 e o primeiro artigo foi publicado na revista da sociedade dos atuários, as pessoas que calculam os prémios dos seguros. Já na altura o que eles constatavam era que havia uma relação muito importante entre o peso e aquilo que as pessoas custavam às seguradoras. O que sabemos é que mesmo no excesso de peso, quando o IMC passa o 27/28, o risco de doenças associadas aumenta muito, por isso temos de começar a intervir antes de isso acontecer. E se há pouco dizia que a obesidade se associa aos cancros, à doença cardiovascular, ao AVC, às pedras da vesícula, quando falamos da diabetes, que é outro dos grandes problemas de saúde deste século e que afeta os países desenvolvidos no geral e Portugal em especial, pensa-se que a obesidade seja o fator desencadeante de mais de 80% dos casos.
Contra o mito de que é apenas o excesso de açúcar que causa a diabetes, quando é tudo o que o corpo não converte em energia e se acumula em gordura que afeta o funcionamento do pâncreas.
Exato. A diabetes afeta cerca de 13% da população em Portugal e 20% a 30% terão pré-diabetes, o que é uma carga de doença elevadíssima. Sabemos que 90% das pessoas com diabetes tipo 2 têm excesso de peso. Portanto são problemas importantes, dramáticos e interligados. Mas acho que o desafio é olhar para isto pensando no que se pode fazer e aí temos um campo brutal para atuar e maneiras de ajudar as pessoas.
Dos impactos da pandemia nesta área, preocupam-no mais os atrasos na resposta à obesidade ou à diabetes?
Os doentes com diabetes talvez nos preocupem mais porque estão mais perto das complicações, já houve todo um caminho até aí. Quando chegam com diabetes, já estão a necessitar de mais intervenção. E isso só reforça a importância de intervir mais cedo. Porque sabemos que se intervirmos no início da diabetes, se conseguirmos que o doente perca peso com um estilo de vida mais saudável, a diabetes pode desaparecer. Fui educado como endocrinologista a pensar que as consultas de diabetes eram terríveis quando hoje podem ser muito eficazes se apanharmos os doentes cedo, se tivermos tempo para ver e falar com os doentes, estabelecer um plano agressivo. Vemos os doentes passados 5, 10 anos e em vez de estarem cheios de complicações, estão ótimos. Na área da promoção da saúde há muito a fazer. Temos feito imenso trabalho com as autoridades de saúde – Portugal foi dos primeiros países a reconhecer a obesidade como uma doença antes de ser considerada uma pandemia pela OMS – mas há margem para evoluir na literacia da população e hoje temos melhores formas de tratar as pessoas até em relação à obesidade. Acredito que passará por tratar mais cedo, mesmo conseguindo resultados modestos em números de quilos. Com isso vamos conseguir benefícios para a saúde, sabendo que esta é, além de todo o impacto individual, uma doença que acarreta enormes custos para a saúde. Se investirmos no tratamento da obesidade, a médio longo prazo vamos conseguir enormes benefícios: as pessoas vão ter menos diabetes, menos colesterol, menos hipertensão, vão gastar menos em remédios, vão ser menos internadas por AVC, menos internadas por enfarte do miocárdio.
Com a atual percentagem de população portuguesa com excesso de peso, e nas crianças um terço também têm excesso de peso, no futuro teremos ainda uma maior carga de doença crónica? Os idosos de hoje não eram obesos em criança.
Sim, tudo leva a crer que as coisas caminham nesse sentido.
Nos EUA, por exemplo, já se começa a sentir um recuo na esperança média de vida, antes dos recuos associados agora à pandemia.
Sim, admito que é o que, em termos conceptuais, faz sentido que aconteça. De facto muito leva crer que daqui a uma geração as coisas não serão aquilo que se pensava há duas gerações e que a evolução na esperança de vida sofra uma inflexão. Claro que não podemos ter a certeza, mas em termos de doença cardiovascular, diabetes, depressão, doença maligna, numa população mais obesa, a tendência é pesarem cada vez mais. É mais um alerta para mudarmos.
Há pouco usou uma expressão curiosa, talvez pela sua formação militar: as pessoas com maiores rendimentos têm maior capacidade para se “defender” da obesidade. O que o irrita numa ida ao supermercado?
Começando por responder um pouco à político desviando dessa questão, as pessoas defendem-se melhor tendo maior capacidade económica porque podem comprar comidas mais saudáveis, mais frutas, mais legumes, menos congelados, menos gorduras, porque umas coisas são mais caras do que outras. Agora, quanto ao que me irrita, o que mudava, o que proibia, não sou muito favorável a medidas muito restritivas. Acho que as pessoas devem ser educadas e instruídas. Devem saber escolher, mas não estou certo que a solução passe por proibir.
Mas sem ser preciso proibir, continuamos a ver as marcas e as grandes superfícies a aproveitar as fragilidades do cérebro para fins comerciais, por exemplo as zonas das caixas de supermercados agora já não têm só os produtos destinados a crianças mas caixas de bolos em promoção. É necessária uma maior regulação?
Isso sim, claramente. Sabemos que as prateleiras dos supermercados não têm todas os mesmos preços. Para pôr na esquina ou nas caixas pago mais aos supermercados. É uma área muito difícil, em que a saúde e as sociedades científicas têm de estar de braço dado com as autoridades e esferas de governação e ao mesmo tempo negociar com as grandes companhias.
O programa da Direção Geral da Saúde que conseguiu nos últimos anos uma redução do sal e do açúcar em muitos produtos fruto dessa negociação é um bom exemplo?
Sim, tem produzido grandes benefícios. Acho que devemos intervir nesse sentido, resistir à tendência proibicionista mas trabalhar em conjunto e capacitar as pessoas para decidirem melhor sem as condicionar demasiado, mas não as colocando num caminho que os marketeers sabem que as vai condicionar a comprar aquilo que não lhes faz bem.
É conhecida a máxima de não ir às compras com fome. Há mais algum truque que costume transmitir aos seus doentes?
Sim. Ver os rótulos das embalagens é muito importante. Aí a legislação também pode ser mais rigorosa nomeadamente quanto ao que são produtos light e diet, porque nem sempre é. Mas é isso: não ir às compras com fome, ler os rótulos e olhar para o carrinho e ver se existe um equilíbrio entre legumes, frutas, hortaliças, batata, grão, massa, arroz, etc.
Reproduzir aquela ideia de prato equilibrado no carrinho de compras?
Sim, conseguir o equilíbrio do prato no carrinho de compras. O Oscar Wilde dizia que é fácil resistir a tudo menos à tentação. O grande segredo é não ter as coisas à mão. Se entrar na cozinha e vir uma prateleira cheia de chocolates e bolachas, é difícil resistir. Se não vir aquilo e tiver frutas, pão, leite, é mais fácil alimentar-me bem e criar um hábito saudável. Porque o grande desafio dos regimes de perda de peso é precisamente a manutenção e isso passa por criar hábitos. É relativamente fácil entrar em restrição e dizer que durante algum tempo só vou alimentar-me de ovos cozidos, bananas, ou fazer a dieta do doutor não sei quê. Ao fim de quatro meses gastei uma pipa de massa ou não, geralmente infelizmente gasta-se, mas depois a pessoa não fica toda a vida a alimentar-se a ovos cozidos ou batidos. E às vezes é essa transição que falha, porque falta tempo nas consultas e as pessoas não percebem que fazer em casa uma sopa bem feita ou uma salada de frutas teria melhor resultado a longo prazo.
Nas jornadas que a SPEDM organiza por estes dias o primeiro painel é precisamente sobre as verdades e mitos dos planos alimentares. O que pensa que ilude mais as pessoas?
Essa ideia de dietas milagrosas em que se confunde a perda de peso com a manutenção. As pessoas têm de ter um papel interventivo nesta mudança. Não basta seguir. As grandes áreas em que trabalho são doenças da tiroide e obesidade. E se na tiroide o papel do médico é importante, na obesidade o papel do médico é relativo. O doente tem de perceber que vai ter de dar de si. É uma mudança de estilo de vida. Sabendo isto, que é preciso disciplina, hoje temos uma luz ao fundo do túnel que são fármacos melhores para ajudar a perder peso.
Continuarão a ser indicados apenas para fases mais avançadas?
Penso que serão úteis para fases mais precoces. Está neste momento a discutir-se a comparticipação destes fármacos e é natural que comecem por ser prescritos em condições específicas. Temos de ser realistas: uma coisa é eu pensar em como podem ser usados, outra é gerir os desígnios do Ministério da Saúde com um orçamento limitado em que é preciso definir prioridades e decidir se se vai vacinar contra a tuberculose, dar leite a quem não o consegue comprar, etc. Mais do que criticar temos de estar nisto de braço dado.
Que medicamentos são esses?
São medicamentos que foram investigados inicialmente para a diabetes, os chamados agonistas dos recetores GLP-1. Provavelmente a comparticipação será inicialmente para pessoas com obesidade e já com doenças associadas, mas acredito que terão interesse numa fase mais precoce.
Pode pensar-se que um dia medicamentos irão substituir as bandas gástricas?
As soluções cirúrgicas seguramente têm muito interesse em muitas situações mas não são uma panaceia universal. No limite, depois de se ser operado numa cirurgia de obesidade – e hoje em dia a banda gástrica já não é tão usada, mas fazem-se cirurgias de derivação em que se procuram soluções irreversíveis de diminuir o estômago e bypass do intestino – o que acontece é que as pessoas passam a comer de maneira diferente. A operação em si e a mudança da passagem de alimentos por certas zonas fazem com que sejam libertados ou deixem de ser certos mediadores hormonais, o que certamente terá influências que ainda estão a ser investigadas. Mas seguramente grande parte do resultado surge porque a pessoa, depois de ser operada, passa a comer de maneira diferente. Nem que seja porque, se comer de maneira errada, tem efeitos adversos significativos. E o desafio é esse: se conseguíssemos pôr a pessoa a comer de uma maneira diferente antes de ser operada, imagine-se o que não se poupava em termos de anos de vida, morbilidade, de complicações cirúrgicas, de custo de internamentos. Haverá sempre pessoas a precisar de ser operadas, mas com estes novos medicamentos será possível até perder peso antes da operação e melhorar o resultado operatório.
Esses medicamentos continuam a mexer mais com os mecanismos da saciedade e não tanto com o que os componentes do cérebro que levam algumas pessoas a ter mais apetite do que outras?
Os medicamentos atuais interferem com a saciedade mas estes já são diferentes. Na base do cérebro temos núcleos de saciedade e do apetite. Há uma experiência muito engraçada com gatos em que, a um gato, destruo o núcleo da saciedade e vou oferecendo alimentos apetitosos. O gato vai comendo e ficando gordo. Se destruir os núcleos do apetite, vou oferecendo a mesma comida apetitosa e ele não a quer: no limite, vai morrer por desnutrição ainda que lhe ofereça o melhor peixe. A questão é modelar isto. Estes novos medicamentos atuam por dois mecanismos, um direto e outro indireto. Um diminui o apetite e outro atrasa o esvaziamento do estômago e isto informa também o núcleo do apetite, diminuindo-o.
Voltando à tática militar, é a medicina a aproximar-se dos alvos?
(risos) A tática militar é muito importante, no planeamento e na coordenação. Adoro ser médico e acho que ser militar me tem ajudado imenso no desempenho da minha carreira. Dá treino no espírito de sacrifício e dedicação ao serviço público e deu-me a oportunidade de treinar aspetos críticos como o planeamento, a gestão, comando e controlo. É a pessoa pensar no que quer fazer e definir um caminho, o que é útil na abordagem de um caso clínico mas para além disso, na gestão de equipas e hospitais. E vimo-lo na pandemia, no brio do serviço militar no apoio ao SNS e ao país na resposta à pandemia.
Estão muito na moda dietas hormonais, personalizadas. Têm fundamento?
Fundamento admito que possam ter alguns, mas muitos desses testes de tolerâncias e intolerância não trazem nenhum interesse clínico.
Aquela ideia de que afinal não emagreço porque não posso beber café.
Pois, acredito que a esmagadora maioria desse tipo de testes não têm qualquer tipo de interesse clínico e que a motivação não será muito louvável.
Que vocação veio primeiro: a medicina ou o uniforme militar?
São duas coisas de que sempre gostei mas veio primeiro o uniforme. Descendo de uma família com dezenas de gerações militares, uma história com muitas centenas de anos. Fui para academia militar e achei que queria ser oficial de infantaria ou cavalaria, as armas combatentes, dos que vão para a frente. Depois acabei por sair, fui fazer o curso de Medicina e voltei a concorrer para as Forças Armadas como oficial do exército. Hoje em dia a saúde funciona de forma integrada nos diferentes ramos militares, felizmente na minha opinião, e acabou por ser um match entre a carreira da saúde e a carreira das armas. Sinto-me muito realizado. Gosto imenso de ser médico e gosto imenso de ser militar e, como dizia, acho que ser militar me ajudou a ser melhor médico pelo conjunto de valores que me transmitiu.
Nestes dois anos em que a saúde militar colaborou mais com a saúde civil, acredita esse espírito sai reforçado?
Sim. Nas situações de emergência de saúde pública as Forças Armadas são um parceiro indispensável para os países e serviços de saúde. Em Portugal tivemos esse exemplo, sob o comando do Almirante Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, com um testemunho de serviço público extraordinário. Para mim, como médico ligado ao meio hospitalar, foi um desafio extraordinário e aprendi imenso nestes anos. Uma situação destas, em que tivemos de nos adaptar rapidamente, lembra-me um bocadinho quando há 20 e tal anos, na guerra civil em Angola, Portugal projetou forças nacionais e participei na altura na criação de um hospital de campanha no meio de um conflito. Na altura muitos de nós íamos porque calhava a nossa vez e aquela experiência de aterrar ‘dentro do telejornal’ e viver e conviver com a desgraça do nosso semelhante é muito marcante na formação como médico.
E como pessoa imagino.
Sim e acho que todos os médicos deviam ser boas pessoas (risos).
Tem-se dedicado ao estudo da saúde operacional. Fica alguma marca destes dois anos de pandemia nos militares? Ouvimos falar de maior ansiedade, burnout.
Nas Forças Armadas temos um treino que nos ajuda a suportar melhor estas situações, havendo situações de stresse de guerra e sabendo que alguns fenómenos só mais tarde poderão ser melhor avaliados. Mas os militares de certa forma acabam por ser treinados para viver a adversidade e daí essa preparação para responder a situações de emergência e catástrofe. O INEM, que foi criado por um coronel médico, o coronel Rocha da Silva, está preparado para transportar a emergência médica a todo o tipo de cenários. Mas se for uma situação mais adversas, ou ‘todo o terreno’ como dizemos, são as Forças Armadas que têm essa capacidade e a saúde militar pode ser projetada ao mesmo tempo que cria a sua própria segurança e sustentação logística. Por exemplo quando houve as cheias em Moçambique, na Beira, levámos médicos, veterinários, logística, todas as valências. Há essa maior autonomia.
Intervir em guerra é sempre o mais duro?
Sim, é sempre o mais delicado. Temos tido médicos militares em muitos conflitos, em Angola, Moçambique, Afeganistão, Iraque, Kosovo, Sérvia.
É possível que venha a ser projetada resposta de emergência médica para a guerra na Ucrânia?
Relativamente ao conflito não faço comentários, mas naturalmente que o serviço de saúde militar está pronto para cumprir as ordens que forem determinadas pelo Almirante Chefe do Estado-Maior-General .
No rescaldo de uma pandemia, é um cenário que não antevia?
É uma situação pela qual gostaríamos de não estar a passar mas estamos cá para o que for preciso.