Zelensky
O mundo observa Volodymyr Zelensky, improvável herói da guerra na Ucrânia, com um certo espanto e admiração. Se o Kremlin saudou a subida à presidência deste antigo comediante – «parece ser um Trump ucraniano», escreveu a Al Jazeera em 2019, enquanto o Moscow Times previa que «no geral, Moscovo ficará satisfeito com o resultado das eleições ucranianas» – com entusiasmo, hoje Zelensky é um alvo a abater. Insiste em andar por Kiev, armado com o seu telemóvel, mostrando aos ucranianos que não fugiu, instando-os a defender a sua terra em discursos aclamados. Quem diria que o ator de 44 anos, que fez de Presidente na comédia Servo do Povo, venceu a primeira edição do Dança com as Estrelas ucraniana e deu voz ao ursinho Paddington teria estofo para liderar um país em guerra?
«O passado de Zelensky como ator e comediante é parte integral da sua gestão da situação», disse Samuel Woolley, professor de jornalismo na Universidade do Texas. «A política, particularmente a política atual, é um jogo de performance», frisou ao Washington Post, notando a consciência mediática de Zelensky, o cuidado em usar as frases curtas, ótimas para citações – «preciso de munições, não de boleia», reagiu, quando os EUA se ofereceram para o tirar de Kiev – e memoráveis.
É algo que o torna perigoso para o Kremlin. Este Presidente de origem judia, cujo bisavô foi assassinado no Holocausto, é acusado por Putin de ser estar nas mãos das milícias neonazis do leste. E culpa-o pelo falhanço dos acordos de Minsk, de 2014, que prometia autonomia aos separatistas, a troco do fim da guerra civil.
Pensava-se que o novo Presidente estivesse mais disposto a cumprir os acordos que o seu rival eleitoral, Petro Poroshenko, um oligarca nacionalista ucraniano, mas rapidamente se viu que não. A viragem foi associada à proximidade de Zelensky a Igor Kolomoisky – cuja emissora produziu o Servo do Povo, e que fugira da Ucrânia para escapar a acusações de corrupção, regressando menos de um mês após a eleição de Zelensky – e ao interesse deste em dar um golpe ao seu rival, Rinat Akhmetov, um oligarca ligado ao Kremlin, acusado de fazer parte da máfia ucraniana, dono de boa parte da industria em Donbass e do clube Shakhtar Donetsk.
Já a invasão russa teve o condão de unir as fações ucranianas. Poroshenko até exibiu a sua espingarda nas ruas, perante as câmaras da CNN. E o carisma e a habilidade mediática de Zelensky fará muitos outros se juntarem a si. «Não sou um ícone, a Ucrânia é um ícone», respondeu o Presidente, perante os jornalistas. «A Ucrânia é o coração da Europa», rematou. «É por isso que a Europa não se pode dar ao luxo de perder algo tão especial».
Putin
A guerra não é novidade para Vladimir Putin. Este antigo agente do KGB, tornado braço-direito de Boris Yeltsin, tomou as rédeas da sociedade russa com uma outra guerra, na Chechénia, obliterando a sua capital, Grosny, para se vingar dos separatistas, entre 1999 e 2000. Depois disso, viria a afirmar-se na arena internacional com a invasão da Geórgia – à semelhança do que vemos hoje na Ucrânia, com os separatistas russos de Donbass, justificou-a como sendo em defesa dos separatistas da Ossétia do Sul e Abkhasia – em 2008, e com a anexação da Crimeia, em 2014. Mas hoje, aos 69 anos, após mais de duas décadas de controlo indiscutível sobre a Rússia, Putin não tem que provar nada a ninguém. A preocupação é outra. «Putin parece completamente indiferente à sua aprovação nas ruas», tweetou Alexander Baunov, analista do Carnegie Center em Moscovo. «Não está a agir como um político que precisa de apoio do público, mas como uma figura dos livros de história nacional, que só quer saber da aprovação de futuros historiadores».
É uma tendência que vem de trás. Disciplinado, sonhando desde cedo entrar no KGB – começou logo a tirar um curso de alemão no secundário, já contando ir para a Alemanha de Leste, poiso incontornável dos espiões da Guerra Fria – e servir a ‘terra mãe’, Putin veria com aflição a queda da União Soviética, a perda do poder russo. Aliás, quando Yeltsin dá o golpe final na URSS, em 1991, Putin, ao ver os seus colegas na Câmara Municipal de São Petersburgo trocar retratos de revolucionários como Lenin por fotos do novo Presidente, não faz o mesmo. São imagens de Pedro o Grande, o imperador que fez da Rússia potência europeia, que decoram o seu gabinete, lê-se na sua autobiografia Primeira Pessoa, publicada em 2000.
Putin «ilustra a intrigante motivação a que chamamos ‘busca pela significância’», avaliou Arie Kruglanski, investigadora de Psicologia Sociopolítica na Universidade de Maryland, no Conversation. «O desejo humano por significância e dignidade é universal, mas muito poucos estão dispostos a arriscar tudo pela glória». É algo que se vê no discurso que precedeu a invasão, baseado no nacionalismo russo, na lenda da fundação do seu império, em Kiev. Putin não descansará até caminhar vitorioso pelo Mosteiro de São Miguel das Cúpulas Douradas, mais sagrada relíquia do império russo, ou às margens do Dnipro, à sombra da estátua do seu homólogo, são Volodymyr – ou Vladimir, em russo – o Grande, fundador do Rus de Kiev. E fá-lo-á «apesar dos graves riscos que o potencial fracasso coloca para a sua carreira política», garantiu Kruglanski. «Ainda assim, esta foi a escolha de Putin, de responder ao apelo de sereia da glória».